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A sagrada família

Da ProleWiki, a enciclopédia proletária
Revisão de 16h56min de 3 de janeiro de 2021 por Forte (discussão | contribs)

A sagrada família
Escrito emNovembro de 1844
Publicado 1ª vezFevereiro de 1845
TipoLivro
FonteEPUB

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Prefácio

O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo –, que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a “autoconsciência” ou o “espírito” e ensina, conforme o evangelista: “O espírito é quem vivifica, a carne não presta”. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito em sua própria imaginação. O que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura. Ela representa, para nós, a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental.

Nossa exposição se atém principalmente ao “Jornal Literário Geral” de Bruno Bauer – e seus oito primeiros cadernos estavam a nosso dispor –, porque é ali que a Crítica baueriana, e com ela o despropósito da especulação alemã como um todo, alcançam o ápice. A Crítica crítica[p 1] (ou seja, a crítica do “Jornal Literário”) torna-se tanto mais instrutiva quanto mais converte a inversão da realidade, empreendida através da filosofia, na mais plástica das comédias. Veja-se, por exemplo, Faucher e Szeliga. O “Jornal Literário” oferece um material à luz do qual também o grande público poderá ser informado a respeito das ilusões da filosofia especulativa. E é essa a finalidade de nosso trabalho.

Nossa exposição naturalmente é condicionada por seu objeto. Em regra, a Crítica crítica se encontra abaixo das alturas alcançadas pelo desenvolvimento teórico alemão. A natureza de nosso objeto justifica, portanto, o fato de aqui não avaliarmos esse mesmo desenvolvimento.

A Crítica crítica obriga, muito antes, a mostrar a validade dos resultados já disponíveis como tais, opondo-os aos resultados que ela alcançou.

É por isso que antepomos essa polêmica aos escritos propriamente ditos, nos quais nós – cada um por si, entenda-se[p 2] – haveremos de expor nossa visão positiva, e com ela nossa atitude positiva ante as novas doutrinas filosóficas e sociais.

Engels & Marx
Paris, setembro de 1844

Notas

  1. Em alemão: kritische Kritik. Para diferenciar o substantivo do adjetivo – em português ambos são escritos de maneira exatamente igual, ao contrário do que acontece no alemão –, manteremos o primeiro em maiúscula. Além da diferença, estará sendo mostrada a ênfase especial e a análise diferenciada – e crítica – que Marx e Engels dão à Crítica de Bruno Bauer e seus consortes.
  2. A autoria específica dos artigos aparece definida no Índice. A sagrada família é o resultado do trabalho conjunto de Marx e Engels e foi encaminhada a partir do segundo encontro dos dois pensadores, em agosto de 1844, em Paris. A contribuição de Marx é bem maior – e a avaliação é apenas volumétrica – que a de Engels, e reúne suas anotações acerca dos Manuscritos econômico-filosóficos bem como suas anotações acerca da Revolução Francesa. O livro é – descontadas as duas contribuições de Marx aos Anais franco-alemães (Deutsch-Französische Jahrbücher), quais sejam: “Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução” e “Sobre a questão judaica” – o único escrito rigorosamente filosófico do período precoce publicado pela intervenção direta dos autores. Obras como os Manuscritos de Paris (Pariser Manuskripte), Sobre a crítica do Estado de direito hegeliano (Zur Kritik des Hegelschen Staatsrechts, 1843, publicada apenas em 1927), de Marx, ou até mesmo A ideologia alemã (Deutsche Ideologie, 1846, publicada apenas em 1932), que os dois também escreveram juntos, seriam publicadas apenas postumamente. A sagrada família apareceria já em fins de fevereiro de 1845.

“A crítica crítica sob a feição do mestre encadernador” ou a crítica crítica conforme o senhor Reichardt

A Crítica crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela mesma massa. Foi tão grande o amor da Crítica pela massa que ela enviou seu próprio filho unigênito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. E eis que a Crítica se torna massa e habita entre nós, e nós vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigênito do pai. Quer dizer, a Crítica torna-se socialista e fala de “escritos sobre o pauperismo”. Ela não vê um assalto no fato de querer ser igual a Deus, mas apenas renuncia a si mesma e assume a feição de mestre encadernador, rebaixando-se ao nível mais absurdo – sim, ao absurdo crítico em línguas estrangeiras. Ela, que em sua pureza virginal e celeste, retrocedia assustada diante do contato com a massa pecadora e leprosa, dominou-se a ponto de dar importância a “Bodz” e “todos os escritores-fonte do pauperismo, marchando há anos passo a passo com o mal de nossa época”; ela desdenha escrever aos eruditos especializados e escreve para o grande público, afasta todas as expressões de caráter estranho, todo o “cálculo latino, todo o jargão corporativo” – tudo isso ela afasta dos escritos de outros, pois seria querer pedir demais desejar que a Crítica se submetesse, ela mesma, a “este regulamento da administração”. Todavia até mesmo isso ela chega a fazer – em parte, pelo menos – desembaraçando-se com admirável facilidade, se não das palavras em si, pelo menos de seu conteúdo; e quem haverá de acusá-la de fazer uso da “grande pilha de palavras estrangeiras ininteligíveis”, se ela mesma nos obriga a chegar a essa conclusão através de manifestações sistemáticas que dão conta de que essas palavras permaneceram ininteligíveis também para ela? Algumas provas dessa manifestação sistemática:

Por isso lhes são abomináveis as instituições do pauperismo.

Uma lição de responsabilidade, na qual toda emoção do pensamento humano se converte na imagem da mulher de Ló.

Sobre a pedra que coroa este edifício artístico, de fato rico em convicções.

Este é o conteúdo fundamental do testamento político de Stein, que o grande estadista entregou antes mesmo de se despedir do serviço ativo do governo e de todos seus escritos.

Este povo não possuía ainda nenhumas dimensões para uma liberdade tão ampla.

Porquanto ele, no fim de seu escrito publicista, parlamentou com relativa certeza, assegurando que falta apenas confiança.

Ao juízo varonil que levanta o Estado, que sabe elevar-se acima da rotina e do temor pusilânime, que se forjou na história e se nutriu com viva intuição nas instituições públicas estrangeiras. A educação de uma beneficência nacional geral. A liberdade permaneceu morta no seio da missão popular prussiana, sob o controle das autoridades públicas.

Publicística orgânico-popular.

Ao povo, ao qual também o senhor Brüggemann distribui a certidão de batismo de sua emancipação.

Uma contradição bastante vivaz contra as demais determinações, proclamadas na obra com respeito aos dotes vocacionais do povo.

O egoísmo enfadonho dissolve todas as quimeras da vontade nacional com rapidez.

A paixão de adquirir muito etc., esse era o espírito que permeou toda a época da Restauração e que se integrou aos novos tempos com uma quantidade bastante significativa de indiferença.[1 1]

O obscuro conceito de significação política, passível de ser encontrado na nacionalidade prussiana de caráter rural, descansa sobre a lembrança de uma grande história.

A antipatia desapareceu e converteu-se em um estado de exaltação completa.

Cada qual a seu modo ainda expôs, nesta maravilhosa transição, a perspectiva de seus especiais desejos.

Um catecismo em untuosa linguagem salomônica, cujas palavras esvoaçam leves como pombas e se elevam – frufru! – à região do páthos e dos aspectos tonitruantes.[1 2]

Todo o diletantismo de um abandono de trinta e cinco anos.

As condenações demasiado vivazes dos cidadãos através de um de seus antigos comitês até poderiam ser aceitas pela tranquilidade de ânimo de nossos representantes, caso a concepção de Benda acerca do regime municipal de 1808 não laborasse por uma afecção conceitual muçulmana sobre a natureza e o emprego da ordem citadina.

E a intrepidez estilística do senhor Reichardt anda lado a lado com a intrepidez do raciocínio em si. Ele é capaz de entabular transições como as que seguem:

O senhor Brüggemann... ano de 1843... teoria do Estado... todo o probo... a grande modéstia de nossos socialistas... milagres naturais... exigências a serem expostas à Alemanha.... milagres sobrenaturais... Abraão... Filadélfia... maná... mestre-padeiro... mas porque nós estamos a falar de milagres, Napoleão logrou etc.

Depois dessas amostras, não é de estranhar – nem um pouco, aliás – que a Crítica crítica sempre ofereça uma “explicação” à frase que ela mesma considera um “modo popular de se exprimir”. Pois ela “apetrecha seus olhos com a força orgânica de penetrar o caos”. E, sendo assim, resta dizer que nem mesmo o “modo popular de se exprimir” da Crítica crítica pode restar incompreensível no final. Ela se dá conta de que o caminho dos literatos permanece torto, caso o sujeito que o trilha não se mostrar forte o suficiente a ponto de conseguir endireitá-lo e, por isso, atribui com naturalidade “operações matemáticas” ao escritor.

Per si se compreende, e a história, que prova tudo o que per si se compreende, prova também isso: que a Crítica não se torna massa a fim de permanecer massa, mas para libertar a massa de sua massificação massiva, ou seja, para elevar o modo popular de se exprimir na linguagem crítica da Crítica crítica. Este é o estágio mais estagiário da humilhação, quando a Crítica aprende a linguagem popular das massas e transcende esse jargão tosco para o cálculo superabundante da dialética criticamente crítica.

Notas

  1. As construções bizarras do senhor Reichardt são um dos pontos criticados com dureza por Engels, autor deste capítulo.
  2. Outro aspecto criticado é o nefelibatismo pseudo-poético de construções como a presente, cheias de pomposidade e vazias de conteúdo, até ridículas. A relação da “Crítica crítica” com a “massa” é ironizada com virtuosismo; a primeira está para o Deus cristão, que sente piedade ante a limitação da segunda, os mortais, ou seja, a massa.

“A crítica crítica” na condição de “Moinhotenente” ou a crítica crítica conforme o senhor Jules Faucher

“A profundidade da crítica crítica” ou a crítica crítica conforme o senhor J. (Jungnitz?)

“A crítica crítica” na condição de quietude do conhecer ou a “crítica crítica” conforme o senhor Edgar

“A crítica crítica” na condição de merceeira de mistérios ou a “crítica crítica” conforme o senhor Szeliga

A crítica crítica absoluta ou a crítica crítica conforme o senhor Bruno

A correspondência da crítica crítica

Caminho terreno e transfiguração da “crítica crítica” ou “a crítica crítica” conforme Rodolfo, príncipe de Geroldstein

O juízo final crítico