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Quem é o povo no Brasil? é uma obra de Nelson Werneck Sodré que apareceu pela primeira vez nos Cadernos do Povo Brasileiro da editora Civilização Brasileira. O texto abaixo é uma transcrição dessa obra atualizada para as novas normas ortográficas.
Conceito de povo
Poucas palavras têm um emprego tão frequente quanto a palavra povo. Na linguagem política, nenhuma a excede em uso. “Vontade do povo”, “interesse do povo”, “defesa do povo”, são expressões correntes, repetidas por quantos falam e escrevem. Como o ato político por excelência, nas democracias do tipo do Brasil, é o ato eleitoral, — quando são escolhidos os “representantes do povo”, — a realização desse ato, dos preliminares à apuração de resultados, corresponde a um período em que o consumo da referida palavra é mais intenso: todos os interessados dizem dirigir-se ao povo, apelam para o povo, proclamam os direitos do povo.
Esse uso imoderado, embora natural nas condições em que vivemos, por parte de pessoas as mais variadas, e dirigindo-se, também, aos grupos mais variados, deu à palavra povo uma significação tão genérica que a despojou de qualquer compromisso com a realidade. Na boca ou na pena dos homens públicos, hoje, — e claro está que isso não acontece somente no Brasil, — povo é uma abstração. Cada um é livre de atribuir à palavra povo o significado que bem imaginar. E, particularmente, incluir-se em pessoa naquilo que imagina ser o povo. Mesmo na linguagem política, — e é no plano político que o seu uso tem importância, — aquela palavra mágica, refrão a que todos se apegam, fórmula para todos os problemas, sésamo para todas as portas, não tem limitações, contorno, características.
Expressa, de modo vago aliás, todos os que participam da vida política, e mesmo a maioria dos que dela não participam. Ninguém aceitaria a sua própria exclusão do campo a que se aplica o letreiro povo. Todos se consideram povo. Uma secreta intuição, entretanto, faz com que cada um se julgue mais povo quanto mais humilde a sua condição social: é este um título, aliás, — e o único, — de que os desfavorecidos da sorte não abrem mão. Eles nada possuem, mas por isso mesmo orgulham-se de ser povo. Esse orgulho corresponde, espontaneamente, ao sentido da definição que liga o conceito de povo à situação econômica dos grupos, camadas ou classes sociais.
Algumas correntes, realmente, interpretando os fatos políticos, identificam o povo com os trabalhadores, e admitem que os trabalhadores constituem as massas populares, ou a sua maioria, sendo desprezíveis, no conjunto daquelas massas, os não trabalhadores. Outros, mais rigorosos, aceitam como trabalhadores e, consequentemente, como povo, apenas os produtores de bens materiais. É verdade, sem dúvida, que, em todos os tempos, em todas as fases históricas, os trabalhadores ou, mais restritamente, os produtores de bens materiais, constituíram, e constituem, a massa principal do povo, e desempenharam, e desempenham hoje, com mais forte razão, o papel fundamental no desenvolvimento da sociedade. Mas é também fato indiscutível que, em todas as fases históricas, e ainda hoje, na fase histórica que estamos vivendo, as massas populares abrangeram, e abrangem, camadas muito variadas da população, nelas compreendidas as que não produziam, e não produzem, bens materiais, e até mesmo aquelas que se distinguiam pela circunstância de aproveitar o trabalho alheio para se diferenciar das outras.
A ideia de que o povo é constituído apenas pelos produtores de bens materiais é uma inequívoca limitação, na grande parte dos casos, — no caso do Brasil, por exemplo. Há trabalhadores, na sociedade brasileira, e na sociedade de todos os países, que não podem ser englobados entre os produtores de bens materiais e, entretanto, pertencem ao povo. Os empregados não produzem bens materiais, nem os funcionários, nem os intelectuais. Seria justo excluí-los do conceito de povo? Parece que não. Por aí vemos que o critério econômico restrito não pode servir de base a uma conceituação aceitável e justa. Outros critérios, mais amplos, que englobam entre os trabalhadores também aqueles que realizam um trabalho útil à sociedade, e não apenas um trabalho que resulte na produção de bens materiais, seriam mais justos, sem qualquer dúvida. Mas não levariam ainda a um conceito exato de povo.
Antes do exame de um critério que possa levar a um conceito exato de povo, é importante assinalar que o conceito de povo não pode ser definido senão considerando as condições reais de tempo e de lugar. Povo, hoje, no Brasil, não é o que era há um século; não é a mesma coisa que nos Estados Unidos; nem o que é na China. A composição dos grupos, camadas e classes que constituem o povo muda ao longo do tempo, e varia de país em país, de nação em nação. Dentro de um mesmo país, a referida composição muda conforme a sociedade evolui: é pacífico que o operário brasileiro faz parte do povo, hoje. Mas há cem anos não havia operários, no Brasil. Isto significa que não havia povo? Parece que não.
Povo, há cem anos, era uma coisa, entre nós; hoje, é outra. Há cem anos, faziam parte do povo grupos, camadas e classes que, hoje, não fazem parte do povo. Uns continuam a existir, a ter um papel, mas deixaram de fazer parte do povo; outros se extinguiram, e por isso deixaram de fazer parte dele; terceiros surgiram mais tarde, e passaram a fazer parte do povo ou não passaram, conforme o papel social que desempenham. O conceito de povo evolui, portanto, muda conforme a sociedade muda. Mas é certo que tais mudanças não são arbitrárias e acidentais; e por isso há sempre critérios justos para se definir o conceito exato de povo em cada fase distinta.
Há, evidentemente, em todos os tempos, população e povo. Os dois termos designam a mesma coisa apenas na fase inicial da história humana, a da comunidade primitiva, quando não existem classes: povo é então toda a população. A divisão do trabalho assenta em condições naturais e não em condições sociais; assenta nas condições de sexo e idade: o homem realiza determinado trabalho; a mulher, outro; o velho, outro. É uma divisão natural: não torna alguns elementos mais ricos do que os outros, nem mais poderosos. Mas quando a sociedade se desenvolve, surgem as classes sociais e, com elas, a divisão social do trabalho: uns trabalham, outros usufruem do trabalho alheio. A partir desse momento povo já não é o mesmo que população: os termos começam a designar coisas diferentes. E não há, a partir de então, critério objetivo para definir o conceito de povo que não esteja ligado ao conceito da sociedade dividida em classes.
Daí por diante, até os nossos dias, povo será um conjunto de classes (ou camadas, ou grupos), ficando outras classes, (ou camadas, ou grupos) excluídas do conceito. Mas como as classes não são fixas e estáticas, e a situação de umas em relação às outras também muda, povo não significa sempre a mesma coisa, isto é, não tem sempre a mesma composição social, não agrupa sempre as mesmas classes. O conceito de povo, pois, — histórico como todos os conceitos, — não coincide com o de população. O vazio, o abstrato de que se reveste, no nosso tempo, na linguagem política usual, deriva da tendência a confundir o verdadeiro, justo e exato sentido do termo. A insistência na confusão visa a sonegar a realidade, esconder o fato de que a sociedade se divide em classes e que nem todas as classes estão incluídas no conceito de povo. Em cada fase histórica este conceito tem determinado conteúdo, refletindo a estrutura social vigente e na dependência das condições econômicas imperantes.
Nos fins do século XVIII, quando ocorreu a Revolução Francesa, o povo compreendia a burguesia, que usufruía o trabalho alheio, e os trabalhadores, da cidade e do campo, alémde camadas intermediárias; a nobreza feudal, contra cuja dominação se levantaram aquelas classes, não fazia parte do povo. Analisando a revolução de 1848, na Alemanha, ocorrida meio século depois, um historiador mencionaria, com justeza, que a contra-revolução temia “o povo, isto é, os trabalhadores e a burguesia democrática”. Na revolução russa de 1905 participa, como parte do povo, a burguesia rural, que detém, na época, segundo os dados da propriedade, a metade das forças produtivas no campo. Na luta contra o tzarismo, para derrocar a autocracia, participam, segundo um intérprete fiel, como forças capazes de conquistar a vitória decisiva, “o proletariado e os camponeses, desde que consideremos as forças essenciais e distribuamos a pequena burguesia agrária e urbana (que faz parte também do povo) entre uns e outros”.
Em diferentes fases históricas e em diferentes países, portanto, o conceito de povo corresponde a diferentes agrupamentos de forças sociais. Há uma composição específica para cada situação concreta; não uma situação eterna e imutável; povo não é a mesma coisa em diferentes situações históricas. Mas, evidentemente, encontra-se um traço geral, permanente, que atravessa a história e se repete em cada lugar, algo que existe em qualquer tempo e em qualquer lugar, quando se trata de povo e se procura definir o conceito, para compreender o papel dessa força social na vida política. Esse traço é o seguinte: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive.
As classes compreendem as parcelas da população que, por sua situação objetiva, têm interesses comuns a defender, na decorrência do “lugar que ocupam em um sistema de produção social, historicamente determinado pelas relações em que se encontram com respeito aos meios de produção (relações que, em grande parte, ficam estabelecidas e formalizadas nas leis),pelo papel que desempenham na organização social do trabalho e, conseqüentemente, pelo modo e pela proporção em que percebem a parte da riqueza social de que dispõem”. As classes são produto da história, e o lugar que ocupam é também historicamente condicionado. A história humana não passa do desenvolvimento das classes, das lutas e das mudanças nas relações entre elas. Em cada fase histórica, pois, em condições determinadas, certa classe, ou certas classes, agrupam-se num conjunto que se conhece como povo, e só é válido para tal fase.
Povo, assim, é algo que escapa à confusão e à abstração da linguagem retórica, cujo fim, consciente ou inconsciente, está em obscurecer o sentido concreto e o conteúdo social do conceito. Sua indiscriminação tem sentido demagógico evidente, em contraste com aquele conteúdo e com todas as formas de que se reveste. Numa sociedade dividida em classes, a população se reparte em classes dominantes, exploradoras, de um lado, e classes dominadas, de outro, aquelas que as primeiras oprimem, exploram e privam de direitos, inclusive e principalmente dos direitos políticos. Realizam essa exploração, entretanto, afirmando sempre que representam o povo. Estão interessadas, pois, em que o conceito de povo seja vago, arbitrário e confuso. Tão confuso que englobe exploradores e explorados.
A essa ambiguidade, que impede distinguir entre população e povo, junta-se outra, que impede distinguir entre nação e povo, conceitos que se referem também a coisas diferentes. Frequentemente, no que se refere a problemas internos, mas também no que se refere a problemas externos, ou de política exterior, as classes dominantes, que se dizem povo, afirmam, ao decidir sobre aqueles problemas segundo os seus interesses de classe, que o fazem em defesa dos interesses “nacionais”, na preservação dos direitos “nacionais”, e repetem amiúde a expressão “tradições nacionais”. Confundem, assim, os seus interesses com os interesses nacionais e supõem encarnar a vontade nacional, isto é, a vontade do povo. As classes dominantes, entretanto, inclusive porque minoritárias, não representam o povo, no geral, e nem sempre representam a nação, embora detenham o poder, dominem o Estado e proclamem a sua identidade com o que é nacional. Existe o deliberado propósito de confundir todas as classes e os seus interesses, como se estes fossem comuns e idênticos em todos os problemas, e a classe que detém a representação política fosse apenas a intérprete de todas as classes porque com interesses idênticos aos de todas elas.
É exato que em alguns casos, — e só o exame de situações concretas permitiria distinguir bem as características de cada um — as classes dominantes realizam o que é do interesse da maioria das classes, ou das classes majoritárias, mas isso não é uma regra e está longe de ser a regra. Acontece sempre, entretanto, quando o interesse da classe dominante é também defendido, preservado ou mantido. A Independência do Brasil foi um problema político que uniu as classes sociais brasileiras: realizando-a, a classe dominante de então representou o desejo e o interesse das demais, mas também o seu particular desejo e interesse. Logo em seguida, entretanto, ao empolgar o poder, deixou de representar o interesse de todas as classes, porque organizou o Estado de acordo com os seus interesses, exclusivamente. Ninguém pode sustentar que o interesse de um senhor de engenho da época fosse idêntico ao de seus escravos. Bastaria o fato de ser, um, proprietário de escravos e os outros, escravos, para tornar claro o antagonismo de interesses. Ao realizar a Abolição, a classe dominante teve também o apoio das classes dominadas, no Brasil, mas realizou-a quando lhe convinha como classe. São casos em que os interesses de um grupo aparecem como interesses comuns, e a classe dominante representa a nação, ao decidir por ela, porque representa, eventualmente, a vontade da maioria, embora seja, em número, minoria, e não tenha a posse do poder por vontade da maioria.
Mas, na maior parte dos problemas, e nos problemas fundamentais, o interesse das classes é divergente, quase sempre antagônico, e as decisões tomadas pela classe dominante e apregoadas como do “interesse nacional” são, na realidade, única e exclusivamente, do seu interesse de classe, ferindo o interesse das classes dominadas, inclusive privadas do direito de protestar contra isso ou, de qualquer maneira, do direito de fazer prevalecer os seus interesses. Há manifesta ambiguidade, politicamente determinada, no fato de investir-se a classe dominante do papel nacional, de defensora do “interesse nacional”. No caso brasileiro, essa ambiguidade se concretiza, por exemplo, quando a classe dominante exclui do direito de representação política extensas parcelas do povo, sob pretexto de serem constituídas por analfabetos; quando impõe tributos que oneram vencimentos e salários, tornando extremamente difícil a vida dos trabalhadores e da pequena burguesia; quando prefere aliar-se a forças estrangeiras, para defender os seus privilégios, temendo o povo mais do que àquelas forças, e por isso mesmo negando a essência do que é nacional.
Em política, como em cultura, só é nacional o que é popular. A política da classe dominante não é nacional, nem a sua cultura. Povo e nação não são a mesma coisa, na fase atual da vida brasileira, mas esta é uma situação histórica apenas, diferente de outras, uma situação que se caracteriza pelo fato de que as classes que determinam, politicamente, os destinos do país e lhe traçam os rumos, tomam as decisões em nome da “nação”, mas não pertencem ao povo, não fazem parte do povo. Interpretando uma fase da vida peruana, em conferência de 1888, um escritor daquele país disse: “Não formam o verdadeiro Peru os agrupamentos de criollos e estrangeiros que habitam a faixa de terra situada entre o Pacífico e os Andes; a nação é formada pelas multidões de índios disseminadas na banda oriental da cordilheira”. No Brasil, naquele ano de 1888, o da Abolição, seria considerado a sério quem afirmasse coisa análoga, que a nação era formada pelos negros libertos, pelos mestiços, pela massa de camponeses, pelos que de forma alguma participavam do poder, ou mesmo da representação, e de forma alguma participavam das decisões nacionais?
A norma de arrogarem-se as classes dominantes o direito de apresentarem-se como povo e como nação está fundamente ancorada na história. É que, até os nossos tempos, todas as revoluções, isto é, todos os grandes movimentos que alteraram a situação das classes sociais umas em relação às outras, consistiram em derrocar o domínio de determinada classe, que cumprira a sua missão histórica, substituindo-a por outra, que vinha em ascensão. Eram revoluções que substituíam uma minoria por outra minoria, e esta outra assumia o poder, dominava o Estado e transformava as instituições, amoldando-as aos seus interesses; era o grupo que se capacitara para o domínio e que exercia o domínio, tendo sido chamado ao domínio pelas condições de desenvolvimento econômico. Por isso, e somente por isso, quando da derrocada de uma classe minoritária historicamente superada, a classe minoritária historicamente nova conseguia a cooperação das classes majoritárias, ou, pelo menos, a sua aceitação pacífica. A forma comum dessas revoluções consistia em serem, todas, revoluções de minorias. A maioria se colocava, consciente ou inconscientemente, a serviço da minoria ascensional, e o conjunto novo que forçava a mudança (classe minoritária ascendente mais as classes majoritárias dependentes) constituía, para efeito daquela transformação histórica, o povo. E isso permitia à classe minoritária ascendente a norma de falar, no poder, em nome do povo, como se, realmente, o representasse.
Cada nova classe que passava a ocupar o poder em lugar de outra, também minoritária, via-se obrigada, pela necessidade política, para alcançar os fins a que se propunha, para defender os seus interesses, a apresentar esses interesses não como seus apenas, mas como os interesses comuns de toda a sociedade, os interesses do povo. E expressava esses interesses em termos ideais, apresentava as suas formulações e teorias revestidas do caráter de generalidade, as suas normas como as únicas racionais e dotadas de vigência absoluta e até do condão da eternidade. E moldava a vida social de forma conveniente, definindo como sagrados os seus interesses, fixados como se fossem da totalidade, protegendo-os com a lei e com a força, e tentando protegê-los ainda pelo costume; e definindo como crime tudo o que atentasse contra os seus interesses, punindo e perseguindo os que o cometiam, ou apenas punham em dúvida o seu caráter sagrado e eterno.
Mas, na realidade, nada é eterno, e o sagrado de hoje pode ser o sacrílego de amanhã. Passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas pelas minorias conscientes à frente das massas inconscientes. Chegou o tempo em que as revoluções sociais só podem ocorrer com a participação das massas, isto é, das classes majoritárias, até aqui caudatárias das classes em minoria; chegou o tempo em que não há revolução social sem participação do povo, não como alavanca de minorias, mas compreendendo os motivos de sua participação e exigindo função dirigente que lhe compense os sacrifícios. Estamos, pois, vivendo a última fase histórica em que uma classe dominante minoritária pode arrogar-se o direito de se incluir entre o povo, de afirmar que defende os interesses do povo quando na verdade defende apenas os seus interesses, de apresentar-se como intérprete de todas as classes, de definir-se como nação. A eternidade dos sistemas políticos já não é aceita por ninguém. Quando a humanidade alcança o desenvolvimento a que chegamos em nosso tempo, admitir como final determinado sistema político seria negar o progresso humano; seria o mesmo que admitir que os nossos conhecimentos chegaram à plenitude, constituem o fim dos conhecimentos. Seria negar a própria ciência.
Claro que há sempre um pensamento conservador,alimentado pela classe dominante minoritária, em afanosa busca de eternidade para a sua dominação e obrigada a explicá-la e a justificá-la. Isto acontece porque, frequentemente, as ideias se atrasam em relação à realidade: o conhecimento humano é condicionado pela ordem social e, portanto, entravado quando existem forças que buscam eternizar-se no poder. Conservadores são aqueles que não verificam quanto o processo histórico avançou objetivamente e quanto os seus conhecimentos estacionaram em situações precedentes. A separação entre a teoria e a prática social leva, finalmente, à perda de crédito, apesar do amplo e complexo aparelho de difusão de ideias e de conceitos. Quando a realidade nega objetivamente a validade de conceitos, conhecimentos, ideias e doutrinas, sua vigência está irremediavelmente condenada e não há propaganda capaz de salvá-la. Ora, a realidade política do mundo atual nega a eternidade do sistema em que as classes minoritárias se apresentam como povo, e aponta o seu fim generalizado e próximo. A realidade política do mundo atual afirma a presença do povo na história, como força motriz do desenvolvimento humano. E isso acontece porque o povo tomou conhecimento e consciência da necessidade de afirmar os seus direitos e defender os seus interesses, atingindo, portanto, à liberdade. Chegou à consciência da necessidade, que define a liberdade, após prolongado processo histórico, mas em condições diversas conforme cada país.
Todo país tem sua estrutura social peculiar, em dada fase histórica: as classes dominantes não são as mesmas em todos os países; as classes que constituem o povo também não são as mesmas. Para se definir o conteúdo do conceito de povo é preciso encará-lo segundo uma situação histórica determinada e segundo as condições concretas de cada caso, tomando como base a divisão da sociedade em classes. E é preciso não esquecer que o desenvolvimento social e o que se conhece, no curso desse desenvolvimento, como revolução, faz com que a composição das classes, e consequentemente a composição do povo mudem constantemente. Compondo-se de classes, camadas e grupos diferentes, o povo apresenta contradições internas. Admiti-lo como formando uma unidade é pura ilusão. Distinguir essas diferentes classes, camadas e grupos, e compreender as suas contradições não significa, entretanto, isolar umas das outras, mas situá-las devidamente. O critério justo sobre o conceito povo ajuda a compreender o papel das massas na história, particularmente na fase atual, e situa devidamente o complexo processo de desenvolvimento por que passam países como o Brasil, em que profundas mudanças estão ocorrendo e em que o mais importante aspecto do que é novo está, precisamente, na presença do povo na vida política.