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Biblioteca:Partido Comunista Brasileiro/XVI Congresso/1

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Resoluções do XVI Congresso do Partido Comunista Brasileiro

Resolução 1

Perfil do proletariado brasileiro

Relações de produção e formas de atuação da classe trabalhadora no enfrentamento ao capital

Introdução

Em termos históricos, o proletariado brasileiro, especialmente trabalhadores/as ligados/as à produção industrial, formou-se recentemente no Brasil, em função da inserção subordinada do Brasil em relação aos países centrais na divisão internacional do trabalho desde a colônia. A industrialização brasileira foi efetivada de forma muito tardia em relação ao continente europeu, cerca de 200 anos depois da revolução industrial na Inglaterra. Essa trajetória foi resultado de uma colonização predatória, na qual o Brasil funcionou como espaço de apropriação de recursos naturais e financeiros para a Metrópole portuguesa, com trabalho escravizado por mais de 300 anos (o Brasil foi o último país a libertar os povos escravizados). A colonização da América Latina constitui o processo de acumulação primitiva do capital, sendo a expropriação dos recursos naturais e dos povos originários elemento essencial para a expansão do capitalismo no mundo e para a acumulação de capital nos países capitalistas da Europa Ocidental.

Concomitante à organização do movimento abolicionista popular, uma das razões das classes dominantes para a abolição jurídica da escravidão no século 19 tem relação com a questão da terra. As terras brasileiras foram concentradas nas mãos de poucos desde a invasão do nosso território pelas metrópoles europeias, através das capitanias hereditárias e sesmarias inicialmente, até o estabelecimento da Lei de Terras em 1850, que legitimou a aquisição de terra unicamente por meio da compra ou da posse já existente. Essa Lei consolida a propriedade privada mercantilizada e a privação do acesso à terra ao povo brasileiro que nela trabalhava. O estatuto da terra privada e mercantilizada se relaciona diretamente com a transição do trabalho escravizado para o assalariado. Isso garantiu que os fazendeiros mantivessem as terras em cativeiro em troca da perda do tráfico internacional de pessoas escravizadas. A terra não seria mais “livre” para se tornar cativa como mercadoria pelo capital, constituindo assim a transição da renda capitalizada escravista para a renda capitalizada em terras e imóveis, relação que impacta a questão fundiária, de moradia e de formação do território brasileiro.

Ao longo do período colonial, o país foi proibido pela Metrópole portuguesa de constituir qualquer tipo de manufatura, exceto o engenho. Mesmo após a independência e a Proclamação da República, continuou no atraso econômico, basicamente como nação agrário-exportadora, porque as classes dominantes do período entendiam o Brasil apenas como um país com vocação agrícola. Mesmo reconhecendo ter havido processos industriais anteriores, com a instalação de indústrias de menor porte dedicadas centralmente à produção de bens de consumo correntes, o principal da industrialização no Brasil somente ocorre após o golpe de Estado liderado por Getúlio Vargas, que iniciou um processo de modernização conservadora e autoritária a serviço do capital, a partir de políticas direcionadas para a construção da grande indústria nacional, mantendo ainda a característica brasileira de um país agroexportador de riquezas naturais e matérias primas para as potências imperialistas.

A industrialização foi instituída a partir de um bloco de investimentos que incluía o capital internacional (seu centro dinâmico), capital estatal e capital nacional (o elo mais frágil), uma aliança de capitais que transformou o Brasil numa das poucas nações industriais do continente. O país internalizou os ramos industriais típicos da segunda revolução industrial, tais como a indústria automobilística, metal mecânica, plásticos, entre outros, mas num período em que os monopólios estrangeiros já determinavam o processo de internacionalização da produção e das finanças.

Portanto, a industrialização brasileira foi realizada como resultado de um capitalismo tardio, dependente e subordinado, em um processo de desenvolvimento feito sob a liderança das corporações transnacionais, que representavam o polo dinâmico do sistema econômico, com uma burguesia nacional associada de forma subalterna, que orbitava em torno da lógica dos interesses do grande capital internacional. O processo teve momentos diferentes, durante os governos de Vargas e JK. Em ambos existiam projetos nacionais, com graus diferenciados de prioridades, em que se associavam o incentivo às empresas privadas e a criação de estatais e a presença do capital estrangeiro no Brasil, que adquire maior força com o governo JK.

Afirmar o caráter dependente do capitalismo brasileiro não significa entender essa dependência como uma etapa a ser superada. Muito pelo contrário: nenhum programa desenvolvimentista, nos marcos do capitalismo, pode superar as contradições da realidade brasileira, marcadas pela centralidade da contradição capital-trabalho. A única alternativa histórica ao capitalismo dependente é a revolução proletária socialista.

Esses fenômenos históricos e processos econômico-sociais marcaram profundamente a formação do proletariado brasileiro. A industrialização, por sua própria natureza monopolista, sempre foi incapaz de proporcionar empregos para o grande contingente de pessoas que migrou para as cidades em busca de oportunidades. A abolição jurídica da escravidão, sem que a população escravizada, sobretudo negra, tivesse acesso à terra, provocou também, antes mesmo da industrialização, um êxodo rural, causando segregação socioespacial e dificultando a vida dos/as despossuídos/as nas cidades.

O Brasil transitou de uma economia agrário-exportadora para o capitalismo monopolista industrializado, fato que o coloca entre as 10 maiores economias do mundo, com capacidade de produzir internamente todos os bens e serviços de que o país necessita. O crescimento médio anual entre 1930 e 1950 foi de cerca de 6% e, de 1950 a 1980, mais de 7% ao ano. Trata-se, portanto, de uma estrutura produtiva madura, com uma indústria integrada e verticalizada, um setor comercial que alcança todo o território nacional, um setor financeiro com elevado grau de automatização, um setor de serviços moderno, em condições de atender a demandas nacionais, uma rede de logística à altura do processo de acumulação e redes de telecomunicação social com abrangência em todo o país.

A ditadura empresarial militar aprofundou uma política associada e dependente ao capital estrangeiro, com o arrocho salarial institucionalizando uma economia de baixos salários, fenômeno que não foi revertido no período de retomada das liberdades democráticas. De qualquer forma, a industrialização e o posterior desenvolvimento de outros setores de atividade econômica resultante do processo de formação histórica da economia em território brasileiro criaram uma grande classe operária e um enorme proletariado. Basta dizer que a classe operária dobrou de tamanho entre 1970 e 1976, e o Brasil tem hoje um dos maiores contingentes do proletariado mundial, que está entre os mais expropriados.

O capitalismo avançou também aceleradamente no campo, através do agronegócio, constituindo uma agricultura com elevado grau de inserção de tecnologias de produção, transformando o campo brasileiro num dos maiores produtores mundiais de commodities para exportação, marcado por um forte efeito destrutivo do meio ambiente e alto grau de violência contra povos originários, quilombolas e campesinos. Tudo isso não representou a superação da dependência frente ao capitalismo internacional, muito pelo contrário, materializa um padrão de endividamento externo. Uma das características mais significativas desse processo é o fato de que o capital estrangeiro hegemoniza os ramos mais dinâmicos da economia brasileira, compõe ativos expressivos de empresas formalmente de propriedade de capitalistas brasileiros, produz e controla a tecnologia mais avançada empregada no país.

A não realização da reforma agrária fez parte do processo capitalista brasileiro, devido à reestruturação da produção agrícola baseada numa modernização conservadora, a chamada “revolução verde”, a qual tinha como base a concentração massiva de terras por meio dos grandes latifúndios e o uso intensivo de maquinário e insumos químicos, promovendo um êxodo rural presente até os dias de hoje. Tal êxodo ocorre devido à incapacidade de concorrência entre a agricultura familiar e a grande propriedade na busca contínua pelo avanço tecnológico ou em decorrência das desapropriações forçadas e grilagens de terra.

Esse conjunto de características forjou um novo perfil da sociedade brasileira e, especialmente, do proletariado. A migração do campo para as cidades foi de grande proporção: em 1940 a maioria da população vivia nas áreas rurais, enquanto atualmente mais de 80% da população vivem nas cidades. A expansão da indústria, do comércio e dos serviços nas cidades e o avanço das relações de produção capitalistas no campo proporcionaram a formação de grandes conglomerados urbanos, que hoje abrigam a maioria da população. Consequentemente, também se formou um grande proletariado urbano, especialmente nas regiões Sudeste e Nordeste.

Como o desenvolvimento econômico ocorreu sob o domínio dos monopólios e dos grandes proprietários de terra, com acumulação predatória e alta concentração de renda, as condições de vida e salário do proletariado brasileiro são dramáticas. Além disso, como a migração ocorreu de forma desordenada, sem que tivesse ocorrido a reforma agrária para fixar parte da população no campo, e a reforma urbana para ordenar o espaço nas cidades, formaram-se, nas metrópoles e grandes cidades brasileiras, milhares de favelas, cortiços e habitações precárias nas periferias, onde a pobreza e a miséria castigam diariamente a população e roubam uma parcela significativa da juventude, especialmente a negra, para a marginalidade social. É nessas condições que se insere o proletariado brasileiro.

Caracterizações da classe dominante no Brasil

No processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, formou-se uma classe dominante possuidora de todas as características genéricas da burguesia mundial e também profundamente marcada pela realidade colonial, sendo por isso orientada por características de dominação mais explícitas e menos matizadas. O entreguismo e um projeto de nação integrada de forma subordinada ao capital imperialista são partes constitutivas da classe dominante, fazendo dela dominante/dominada. Parte de seu projeto de integração nacional enraizou o racismo e o desprezo por diversos setores da população brasileira para consolidar uma unidade nacional de caráter burguês.

A classe dominante brasileira, com a transição da formação social escravista para o capitalismo, modificou e  dinamizou as características econômicas, sociais e políticas fundamentais do período anterior sem deixar de superá- las completamente em nome dos princípios liberais clássicos. Assim, a manutenção da população negra – antes  escravizada e agora “livre” para vender a força de trabalho – em análogas condições e locais de trabalho foi acompanhada da continuidade das práticas repressivas que os latifundiários escravocratas utilizaram na perseguição e opressão a toda e qualquer manifestação e resistência vindas dos/as escravizados/as. Os quilombos, as fugas das senzalas e a simples aglutinação de negros e negras libertos/as em centros urbanos sempre foram duramente reprimidos pela classe dominante brasileira. Com o desenvolvimento do capitalismo, essa conduta em relação à classe trabalhadora foi aperfeiçoada e incorporada nas práticas do Estado burguês.

Em vista do caráter brutal e violento da sua dominação de classe, as oligarquias brasileiras constituíram um forte aparato de repressão, para proteger a propriedade privada e impedir que as revoltas populares, presentes no nosso país desde a época colonial, fossem vitoriosas. A partir da Guerra do Paraguai, o Exército Brasileiro passa a ser um ator político nacional, posteriormente sendo protagonista do processo de proclamação da República, instaurando uma república burguesa sob tutela militar. Especialmente em momentos de crise, o poder militar brasileiro se mostra essencial para a manutenção dos interesses dos capitalistas, para os quais a chamada “questão social” sempre foi vista como caso de polícia.

Mesmo após a independência, a monarquia representante dos grandes proprietários de terra prolongou por mais de seis décadas a escravidão no país. Quando o movimento abolicionista ganhava um caráter de massas e os/as trabalhadores/as escravizados/as fugiam aos milhares das fazendas, sem que os latifundiários tivessem condições de reprimi-los/as, foi decretada a Lei Áurea pela princesa Isabel. Com a Proclamação da República e a queda da monarquia, as classes dominantes novamente encontraram uma fórmula para promover um pacto dos grandes proprietários agrários associados ao capital externo (com destaque para o capital inglês), que deu continuidade à política agroexportadora e atrasou por quase meio século a perspectiva de industrialização do país.

O golpe de 1930, apesar do incentivo à produção industrial, do ponto de vista social demonstrou novamente a postura das classes dominantes, pois evitou a ruptura com as oligarquias e conciliou com a velha ordem, tendo organizado uma legislação que atrelou o movimento sindical ao Estado, proporcionando a emergência de dirigentes sindicais pelegos, fenômeno que continua forte até hoje. A industrialização, por sua vez, aprofundou o problema da renda e as desigualdades sociais, raciais e regionais, uma vez que o exército industrial de reserva, formado em grande parte pela população negra, pressionou os salários para baixo, assim como os centros dinâmicos da indústria foram instalados na região Sudeste, tornando vastas extensões do território nacional dependentes e associadas ao desenvolvimento dessa região. Importante destacar que esse movimento da burguesia, se por um lado possuía características particulares e se deu em meio à crise do mercado mundial à época, que diminuiu as exportações agropecuárias brasileiras, é também resultante do acirramento da luta de classes, sintetizada em linhas gerais pela crise geral do capitalismo e pela consolidação da URSS como horizonte tangível da classe trabalhadora no mundo.

A década de 1960 emergiu com dois projetos em disputa: as reformas de base, que reivindicavam um crescimento com distribuição de renda, e o projeto conservador, que visava ampliar a subordinação da economia aos circuitos do grande capital internacional. Período mais politizado e com maior mobilização dos setores populares que estavam colocando em risco a velha ordem, foi brutalmente derrotado pela interferência direta das classes dominantes e do imperialismo, resultando em 21 anos de ditadura, que implantou um modelo econômico antinacional e antipopular, sufocando brutalmente não só a luta pelas reformas democráticas, mas especialmente o movimento sindical, de forma a institucionalizar o arrocho salarial, instrumento que marcou os anos de repressão.

Com a emergência do movimento grevista e da luta democrática, as classes dominantes, diante da possibilidade de ruptura com o regime em meados dos anos 1980, novamente costuraram um pacto burguês para a continuação do modelo, no qual resultou a eleição de Tancredo Neves, e ainda deixou como herança os acordos com o Fundo Monetário Internacional, cujas medidas estiveram entre as principais responsáveis pela aplicação das políticas neoliberais na economia e o fim de um longo ciclo de desenvolvimento das forças produtivas que vinha desde os anos 30. A transição pactuada pelo alto, com a Lei de Anistia, também deixou sem resolver a investigação e a punição dos responsáveis pelos crimes cometidos amparados no terrorismo de Estado, parte do plano continental do imperialismo dos EUA, conhecido como plano Condor. Esta lei, ratificada pelo STF, deixou marcas duradouras e profundas no Estado até os dias atuais.

Mesmo com a transição democrática sendo costurada pelo alto com a burguesia e os militares, isso não significou a apatia da classe trabalhadora. Além da reorganização sindical iniciada a partir dos movimentos grevistas, diversas outras lutas foram articuladas entre os anos de 1970 e 80, que culminariam em uma forte intervenção popular durante a Constituinte de 1988. Citamos como exemplo a realização do I Encontro de Chefes Indígenas em 1974, que proporcionou a retomada de várias terras conduzida pelos próprios grupos, a exemplo das desintrusões das terras de Nonoai - RS, realizadas por trabalhadores/as que articularam o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o qual rapidamente se nacionalizou e promoveu importantes mobilizações nas décadas seguintes. Quanto ao movimento indígena, mais tarde se constituiria a APIB - Associação dos Povos Indígenas do Brasil.

Nas eleições de 1989, novamente a burguesia manobrou no sentido de evitar uma virada popular, manipulando os meios de comunicação em favor de Fernando Collor de Melo e sua política neoliberal. No entanto, a disputa política no interior dos setores burgueses hegemônicos levou ao seu impeachment e à eleição de Fernando Henrique Cardoso, que aprofundou de maneira radical a política neoliberal da breve era Collor, com a ofensiva contra direitos e garantias da classe trabalhadora, a contrarreforma da previdência e uma política de privatizações que praticamente passou para o setor privado nacional e internacional a preço de banana a maioria absoluta das empresas públicas, num processo eivado de corrupção.

Os dois mandatos de FHC contribuíram decisivamente para uma mudança importante na economia, bem como para uma nova recomposição das classes dominantes, cujas frações mais ligadas ao capital financeiro internacional, articuladas com a nova política do Estado, passaram a hegemonizar as decisões econômicas e políticas no Brasil. O novo projeto unificou a burguesia associada, disciplinou eventuais setores prejudicados com a nova política e derrotou a resistência dos/as trabalhadores/as. Os resultados desse processo foram profundamente danosos para o país e a classe trabalhadora, culminando em duas décadas de estagnação econômica. O crescimento médio anual na década de 80 foi de apenas 1,7% e, na década de 90, de 2,5%, resultados bem diferentes dos 50 anos anteriores (quando o crescimento anual médio foi de cerca de 6%), num momento em que novos ramos industriais como as tecnologias da informação, biotecnologia, engenharia genética, robótica, microeletrônica, entre outros, emergiam como setores dinâmicos da economia mundial capitalista.

No início dos anos 2000 a sociedade brasileira optou, majoritariamente, por um novo rumo no modelo econômico e elegeu Luís Inácio Lula da Silva presidente da República. Mantendo o núcleo básico da política neoliberal e desenvolvendo-a em diversos aspectos (metas de inflação, câmbio flutuante, elevadas taxas de juros, superavit primário, autonomia operacional do Banco Central, inovações no sistema de seguridade social e criação do microempreendedor individual), o governo do PT, em consonância com as novas orientações do Banco Mundial e FMI e na esteira do aumento dos preços das commodities no mercado internacional, reorientou a economia no sentido do crescimento econômico, aumentou a influência das grandes empresas do setor industrial e do agronegócio, desenvolveu uma política exterior com autonomia relativa em relação aos Estados Unidos e incentivou o processo de integração na América Latina. Desenvolveu políticas de compensação social, como o Bolsa Família, aumentou o salário-mínimo e ampliou a inserção de jovens nas universidades. Mas essa política sequer representava 20% do que se pagava de juros para o capital financeiro nacional e internacional.

Além disso, a recusa em desfazer quaisquer dos retrocessos neoliberais dos governos anteriores barrou o enfrentamento às raízes dos nossos problemas sociais. O desperdício dos recursos públicos com a chamada dívida pública, em níveis muito superiores até ao do desgoverno tucano, a recusa em reverter o desmonte do Estado brasileiro realizado pelo PSDB (pelo contrário, aprofundando esse desmonte com mais privatizações e contrarreformas, como a universitária e da previdência), a não realização da tão prometida reforma agrária (que teve resultados mais pífios do que no próprio governo FHC), tudo isso levou a diversos resultados sociais negativos, como a estagnação dos salários gerais, a violência urbana que pouco se alterou e a redução de investimentos públicos essenciais, como na educação e na saúde, que no governo Lula receberam menos aportes do que no governo FHC. Ao povo brasileiro, que não viu melhorias nos aspectos mais cruciais da sua vida, restou um crescimento sem precedentes no crédito popular para o consumo, cuja explosão, em 2008, não por coincidência ocorreu paralelamente às altas na popularidade de Lula. A súbita sensação de riqueza, proporcionada por um salto consumista jamais visto no Brasil, foi vital para mascarar a fraquíssima atuação do governo nas áreas mais essenciais. Viu-se nos governos Lula, em suma, uma clara opção de recusa a uma política de independência de classe do proletariado e a um projeto anticapitalista.

A burguesia garantiu a realização dos seus interesses através da hegemonia exercida sobre os governos petistas, avançando cada vez mais em suas posições de classe dentro do pacto realizado no momento da eleição de Lula em 2002 até o ponto em que a administração de Dilma Rousseff, em seu último momento, pouco se diferenciava do neoliberalismo mais duro. Ao longo do período petista foram realizadas duas contrarreformas da previdência, promovidos leilões dos campos de pré-sal, editadas a Lei Antiterrorismo, a Lei Antidrogas, das UPPs, criada a Força Nacional de Segurança, havendo ainda o aumento da população carcerária. Foram enviadas tropas militares ao Haiti e ao Congo e impulsionaram-se práticas imperialistas de diversas empresas brasileiras no continente africano e na América Latina. Enredado nas contradições e ilusões de classe, o PT foi descartado pelas classes dominantes em função da crise econômica e política porque, na conjuntura de crise, seu pacto de conciliação de classe já não era mais funcional para o grande capital, que necessitava de mais agilidade para a realização dos ajustes estruturais no momento de crise.

Por fim, buscamos caracterizar que a qualidade da produção no Brasil vincula-se a um processo complexo vinculado a múltiplas determinações. Nosso país, forjado sob jugo colonial, assim como toda a América Latina, tem como papel na divisão internacional do trabalho a produção de riquezas para os países centrais. A partir disso, não nos enganamos com falsas ilusões em promover alianças com uma burguesia industrialista ou dita democrática para resolver a condição do país, elevando-o a um patamar de soberania nacional, democracia e desenvolvimento. Pelo contrário, compreendemos ser esta a característica singular da reprodução das relações capitalistas em nossa sociedade. E deste modo apenas há uma saída possível para a classe trabalhadora: a luta revolucionária.

A formação social e os entraves no processo de consciência da classe trabalhadora

O longo período da escravidão marcou profundamente as classes dominantes e está na raiz de grande parte do preconceito étnico-racial, do conservadorismo e da impunidade das classes dominantes brasileiras. Da mesma forma, a permanente repressão à organização independente dos/as trabalhadores/as e as constantes manobras, manipulações e cooptações por parte das classes dominantes sempre estiveram presentes, buscando impedir a formação de uma consciência de classe do proletariado, tarefa das incipientes organizações da classe trabalhadora. Com a abolição da escravatura e a transição para o mercado de trabalho livre, as classes dominantes encontraram ainda uma fórmula para dificultar a entrada de negros e negras no mercado de trabalho livre. Aproveitando-se de reconfigurações político-jurídicas e guerras (guerra de unificação e formação dos Estados nacionais da Alemanha e da Itália) e de transformações e crises econômicas (monopolização da economia, queda do ritmo de crescimento e impacto desagregador que a deflação de preços exerceu sobre as estruturas socioeconômicas camponesas) em curso na Europa, gerando grandes massas populares empobrecidas e proletarizadas, as classes dominantes conseguiram influenciar as autoridades brasileiras a subsidiar a imigração europeia, formando um expressivo exército de reserva que possibilitou o pagamento de baixos salários aos trabalhadores e às trabalhadoras livres.

Com a transição para o trabalho assalariado e a abolição da escravatura seguindo uma fórmula racista, aos/às ex-escravizados/as não foi garantida assistência social ou qualquer amparo estatal que lhes permitissem melhores condições de vida. Assim, foi em grande parte sobre a escravidão africana e indígena que se constituiu o proletariado brasileiro, e as contradições que residem na atualidade em relação a empregabilidade, taxas de mortalidade e natalidade, escolaridade dessa população resultam, essencialmente, desta origem. Porém, esse processo não ocorreu de forma espontânea ou involuntária: com o final do Império e início da República emergiram teorias eugenistas que apontavam a questão racial do Brasil como problema de seu desenvolvimento, e a solução indicada era o branqueamento da população via política estatal de extermínio dos povos indígenas e afro-brasileiros e sua miscigenação.

A história da formação social brasileira carrega as marcas da escravização e do genocídio dos povos indígenas, que exerceram resistências de diversas maneiras ao regime escravagista e à imposição de uma religião, uma cultura e um modo de vida totalmente estranho às suas tradições. Dentre as principais lutas de resistência indígena vale destacar a Confederação dos Tamoios, liderada pelos Tupinambás no litoral carioca do século XVI, e a Confederação dos Cariris entre os séculos XVII e XVIII, que envolveu indígenas do Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba na chamada Guerra dos Bárbaros. Da mesma forma ousaram resistir ao trabalho escravizado os/ as africanos/as submetidos/as ao tráfico mercantil de pessoas que cresceu na mesma proporção em que se desenvolveu a produção de açúcar no Brasil.

Os/as africanos/as e afro-brasileiros/as desenvolveram uma longa resistência em todo o período em que durou a escravidão, nas mais diversas regiões do país. A experiência mais emblemática foi a formação dos quilombos, como o de Palmares, uma confederação de quilombos na Serra da Barriga, hoje Estado de Alagoas, que, com cerca de 20 mil habitantes, resistiu por cerca de oito décadas às tentativas de invasões militares, até ser totalmente massacrada. Além da organização quilombola, podemos destacar os vários registros das lutas dos/as escravizados/as e ex-escravizados/as ao longo do século XIX, a exemplo das paralisações na Fábrica de Pólvora de Ipanema pertencente à Coroa (1820), do Levante dos Malês na Bahia em 1835 e das insurgências contra Visconde de Mauá na fábrica da Ponta d'Areia em 1857.

O processo de transição do trabalho escravizado para o trabalho assalariado coincidiu também com a instalação das ferrovias, de pequenas e médias fábricas, especialmente têxteis, início da construção civil organizada, além de outras atividades econômicas. Esse processo ampliou o contingente do proletariado, aumentou de maneira acelerada a urbanização, criando grandes metrópoles e uma nova cultura urbana no país. Foi nesse contexto que as duas primeiras décadas do século XX presenciaram a emergência de várias greves por melhores condições de  trabalho e salário, uma vez que parcela expressiva dos/as trabalhadores/as eram crianças, não existia o salário- mínimo e as jornadas de trabalho eram muito longas.

Até meados da década de 1920 quase toda a organização, mobilização, bem como as greves realizadas no Brasil foram influenciadas pelos/as anarquistas, que para cá vieram com o processo de imigração. Os/as anarquistas fundaram as primeiras associações, cooperativas, sindicatos, organizaram movimentos grevistas no período, tendo comandado a primeira greve geral no país, realizada em 1917, na qual é importante destacar a participação expressiva e com protagonismo de mulheres trabalhadoras. Ao longo do território nacional as organizações de classe tiveram um duplo caráter: funcionavam como um espaço de socialização, proteção social com caixas de auxílio mútuo que permitiam acesso a médicos, por exemplo; em segundo plano exerciam um papel reivindicativo. Nesse período, São Paulo se consolidou como principal centro industrial do Brasil, com uma massa trabalhadora na qual a maioria era constituída de imigrantes. Com a forte repressão do Estado, os limites do movimento anarquista para o sindicalismo e os reflexos da Revolução Socialista na Rússia, o PCB, fundado em 1922, como expressão de um processo de amadurecimento organizativo e político de setores da vanguarda da classe trabalhadora, posteriormente se tornou alternativa real no interior do movimento social e político, tanto que passou a dirigir as principais organizações sindicais e, do ponto de vista político, entre 1927 e 1930, lançou candidatos através do Bloco Operário, depois BOC – Bloco Operário e Camponês.

O acirramento da luta de classes também foi sentido dentro do poder militar. Enquanto o alto escalão se dedicava a proteger os interesses das classes dominantes, em geral sendo composto por membros da elite, as patentes mais baixas das Forças Armadas eram compostas por jovens oriundos das camadas populares, em grande parte pobres, negros e negras. Muitos destes se solidarizavam com a situação de miséria das massas e se indignavam frente aos abusos sofridos dentro da corporação, a partir do que iniciaram uma série de rebeliões contra a ordem vigente. A mais importante revolta do movimento tenentista foi a Coluna Prestes, um movimento de insurreição armada que buscava o fim do regime oligárquico e a implementação de reformas sociais e democráticas, o que fez com adquirisse grande apoio popular conforme percorreu o país. Alguns anos depois, seu líder, Luiz Carlos Prestes, viria a ingressar nas fileiras do PCB, tornando-se dirigente nacional do Partido.

A efervescência que se verificava na sociedade em busca de mudanças ganhou novos contornos com a crise mundial de 1929, que impactou profundamente o Brasil em função da queda brusca dos preços do café, principal produto de exportação brasileiro. Seguiu-se a cisão no bloco oligárquico, abrindo espaço para a contestação da velha ordem e para que os tenentes desencadeassem a rebelião armada contra a República Velha em outubro de 1930, sob a liderança de Getúlio Vargas. Iniciava-se assim uma nova fase econômica, social e política no país, desencadeando um conjunto de mudanças que alteraram a fisionomia da sociedade brasileira e deram início ao processo de industrialização, com a associação subordinada da oligarquia agrário-exportadora à emergente burguesia industrial.

O regime decorrente do golpe de 1930 incorporou em seu arcabouço institucional um conjunto de reivindicações que vinham sendo feitas pelos trabalhadores desde a primeira metade dos anos de 1920: jornada diária de oito horas, férias, descanso semanal remunerado, regularização do trabalho juvenil e das mulheres, legalização dos sindicatos, carteira do trabalho, salário-mínimo, medidas que foram sistematizadas posteriormente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para controlar o movimento sindical, o governo dava amplos poderes ao Ministério do Trabalho e ainda podia intervir nos sindicatos de acordo com sua conveniência. Criou também o imposto sindical, instrumento através do qual os sindicatos, para sua manutenção e funcionamento, recebiam um dia de salário de todos os trabalhadores de sua base. Esses mecanismos contribuíram para a formação de um sindicalismo de colaboração de classes, atrelado aos patrões e ao governo, pouco disposto a promover a luta classista (ou seja, na perspectiva da independência de classe do proletariado).

Contribuiu para o ascenso do sindicalismo pelego e o consequente atraso da consciência da classe trabalhadora o estado de ilegalidade que o governo Vargas impôs à ANL (Aliança Nacional Libertadora). Com sua frente de massas posta na ilegalidade, o PCB adotou uma linha insurrecional, que desembocou na execução de uma revolta armada contra o governo. O Levante Antifascista de 1935 foi um ato que contou, principalmente, com o engajamento dos quadros militares do Partido, oriundos do movimento tenentista. Armados, porém sem apoio substancial das massas, os militantes foram derrotados pelas forças da repressão. Abateu-se no país a violência estatal sobre todo o campo democrático, em especial sobre o PCB, que, até inícios dos anos quarenta, viveria sob intensa repressão política, chegando a casos de extermínio físico de dirigentes e diversos militantes.

A população negra, por não ter recebido qualquer indenização após a abolição e não havendo esforço algum para a sua integração à sociedade republicana, ficou à margem do sistema produtivo, com oportunidades de trabalho extremamente precarizadas e mínimas condições de subsistência, resultando na formação das primeiras favelas. Quando da modernização conservadora na Era Vargas, a população negra foi proletarizada, mas herdou esse agravante da extrema desigualdade em relação à população branca trabalhadora. Essa ordem, voltada a superexplorar a força de trabalho negra e fomentar a divisão entre a classe trabalhadora, é muito útil ao capital.

Além disso, no Brasil, tal como em outros países colonizados e onde houve uso da escravidão do povo negro, a exploração da força de trabalho da mulher teve outras características. As mulheres negras e indígenas (estas eram minoria, porque o sistema escravocrata substituiu a força de trabalho indígena pela negra) não realizavam apenas trabalhos domésticos, mas também trabalhavam nos engenhos e nas fazendas, servindo diretamente na produção de riquezas para as classes dominantes dos países colonizadores.

Apesar das lutas constantes de mulheres em vários espaços, a divisão sexual do trabalho, mesmo ganhando novas características, ainda reflete socialmente as marcas do patriarcado. As mulheres continuam ganhando menos que os homens – sendo que as mulheres negras ganham menos que as brancas – realizam múltiplas jornadas, trabalham fora e ainda cuidam da casa, do marido e dos filhos. Quando estudam e se organizam politicamente essa jornada é ainda mais ampliada.

A industrialização e a formação do proletariado industrial

O processo de industrialização impactou fortemente a sociedade brasileira e, especialmente, a evolução demográfica e o processo de migração para as áreas que se tornaram polos industriais. Em 1940 a população brasileira tinha 41 milhões de habitantes, dos quais 80,5% viviam nas áreas rurais ou cidades com menos de 20 mil habitantes. O Rio de Janeiro, então a maior cidade do país, possuía uma população de 1,8 milhão de habitantes, enquanto São Paulo, 1,4 milhão.

A década de 1950 teve início com a política nacionalista do II período Vargas e fechou com o processo de industrialização de Juscelino Kubitschek e o Plano de Metas, que representou a formação efetiva do Estado industrial dependente e associado ao imperialismo e a constituição do proletariado fabril. Mesmo levando em conta que o principal organizador do proletariado brasileiro, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), atuou neste período na clandestinidade, ocorreram importantes avanços do movimento sindical na época, com o fortalecimento de grandes sindicatos operários, do sindicalismo nas empresas públicas, da organização dos/as trabalhadores/as no campo e de um expressivo movimento grevista de dimensão nacional, como a greve dos 300 mil em São Paulo, envolvendo metalúrgicos, ferroviários, têxteis, gráficos e vidreiros, entre outras categorias. Esse processo abriu espaço para a construção de organizações mais gerais dos trabalhadores, como o Pacto de Unidade Intersindical, embrião do futuro comando Geral dos Trabalhadores (CGT).

Entre 1940 e 1970, o Brasil mais que dobrou sua população, atingindo 93,1 milhões de pessoas, alcançando 146,8 milhões duas décadas depois, em 1991. Atualmente, o país possui 213,3 milhões de habitantes, mais de 80% vivendo nas cidades, segundo dados do IBGE. Em outras palavras, entre os anos 40 do século passado e os dias atuais, o Brasil transitou de nação agrário-exportadora para nação industrial e testemunhou uma explosão demográfica e transformação urbana, com a formação de grandes cidades e regiões metropolitanas com elevada densidade populacional, sendo que uma enorme parcela dessa população vive hoje em precárias habitações e sob péssimas condições de vida.

O processo de construção do parque industrial brasileiro provocou um conjunto de fenômenos novos na sociedade brasileira: a formação de uma classe operária concentrada na região Sudeste, especialmente no ABC paulista, berço da indústria automobilística, o polo mais dinâmico da industrialização; a criação de grandes empresas aumentou de maneira extraordinária o emprego industrial e a massa salarial, processo que também foi marcado pelo aumento real do salário-mínimo, que, nos primeiros anos da década de 1960, obteve seu maior patamar em termos reais. Ocorreu ainda o incremento da urbanização nas regiões metropolitanas dos polos industriais, o aumento do consumo de produtos industriais fabricados no próprio país e uma mudança cultural muito expressiva resultante da nova conjuntura nacional.

O conjunto de mudanças, demandas populares, interesses econômicos e lutas sociais explodiram na década de 1960 e se expressaram em dois projetos radicalmente opostos que se colocaram em movimento. O primeiro deles era o das “Reformas de Base”, iniciativas políticas e sociais que buscavam a distribuição da renda, democratização do acesso à terra por meio da reforma agrária, reforma urbana e outras medidas de caráter nacionalista e democrático, além de uma política externa independente. O outro projeto, na essência, buscava evitar as transformações econômicas e sociais profundas no país, para realizar um desenvolvimento econômico subordinado aos interesses do imperialismo, em especial, dos Estados Unidos. Era um momento de crise da reprodução do capital no Brasil, que se transformou em crise orgânica e abriu espaço para a contestação de toda ordem social brasileira, um risco que as classes dominantes não poderiam permitir.

Ao longo dos primeiros quatro anos da década de 1960 o Brasil viveu o momento de maior intensidade da luta de classes, com grande polarização política, disputa ideológica e geoestratégica em função da Guerra Fria. De um lado se situaram os setores populares, organizados em torno do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), dos Sindicatos e Ligas camponesas, da União Nacional dos Estudantes (UNE), dos militares nacionalistas, intelectuais e artistas, com firme apoio às reformas propostas pelo presidente João Goulart. O movimento popular estava na ofensiva, realizando grandes manifestações e greves ao longo do período. De outro lado, a burguesia, os banqueiros, os proprietários de terras, as multinacionais aqui instaladas e setores eclesiásticos conservadores, organizados em suas entidades de classe e organismos de fachada financiados pela CIA, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), conspiravam nas sombras. Para a burguesia e o imperialismo, a vitória das reformas de base significava não apenas a redução acentuada de seus privilégios seculares, mas também uma virada estratégica na geopolítica internacional, devido ao peso econômico, geográfico e populacional do Brasil na América Latina.

No contexto mundial dos anos 1940, 50 e 60, houve experiências significativas de lutas populares encabeçadas por variados segmentos políticos e camadas sociais. Os exemplos não se restringem apenas ao Brasil, mas também ao conjunto da América Latina, África e Ásia. Em termos de síntese, as propostas nacionalistas que ganhavam forma e força neste ínterim se condensaram nas políticas da CEPAL, no Panafricanismo, nas revoluções nacionais asiáticas e, com alguma radicalidade a mais, nas formulações dos Partidos Comunistas. No entanto, o condicionante da Guerra Fria, o espectro latente da União Soviética – como contraponto real à ordem social capitalista –, e, por fim, a vitória da Revolução Cubana aceleraram e radicalizaram a tese dos EUA – e de todo seu conjunto diplomático – de que o nacionalismo era uma fonte perigosa e, mais do que isso, poderia ser o passo intermediário para o socialismo. Em vista disto, todas as táticas de desestabilização dos governos, de financiamento de grupos autoritários radicais e, também, de formação de uma nova intelectualidade política e tecnocrática se puseram em marcha. Nas décadas de 1960 e 70 explodem inúmeros golpes militares, caracterizados centralmente pelo anticomunismo, momento em que se forja, por exemplo, o grupo intelectual ao qual o atual Ministro Paulo Guedes se associa, dos Chicago Boys no Chile de Pinochet.

O resultado dramático desse período de lutas foi o golpe empresarial-militar de 1964, que implantou uma ditadura que durou 21 anos e significou para a classe trabalhadora e o movimento popular a mais grave e extensa derrota desde o início da República. O novo governo passou a administrar o país através de decretos e atos institucionais, prendeu milhares de pessoas, centenas de sindicalistas e líderes populares, inviabilizou o direito de greve, realizou intervenções nos sindicatos, reprimiu as greves, impediu a atuação de um movimento estudantil crítico e independente, sequestrou, torturou e assassinou centenas de trabalhadores/as e implantou uma economia de baixos salários que elevou brutalmente a concentração de renda em favor da burguesia, o que, de certa forma, continua até hoje traduzindo-se numa das mais perversas heranças da ditadura. Entre 1964 e 1979 a ditadura promoveu 1.202 intervenções nos sindicatos, interferiu diretamente em 31 eleições sindicais, anulando pleitos, proibindo candidaturas e realizando 354 dissoluções de entidades sindicais. O governo realizou ainda intensa cooptação dos dirigentes sindicais e basicamente transformou o sindicalismo brasileiro em um organismo constituído majoritariamente por pelegos e assistencialistas.

O golpe de 1964 representou também uma derrota da estratégia nacional democrática, gerando, do lado das forças socialistas e comunistas, uma dispersão organizativa, tática e estratégica e abrindo uma lacuna na qual surgem novas organizações, que se apresentaram como operadores políticos de uma nova esquerda. Dentre tais organizações, muitas optaram pela resistência armada à ditadura, inserindo-se no contexto mundial de lutas por libertação nacional e pelo socialismo, buscando outras vias de superação do capitalismo. Essas experiências igualmente sofreram uma derrota militar e política.

O projeto da ditadura, a serviço do capital, de uma “marcha para o Oeste” no Brasil, resultou em uma onda de mortes e violações aos povos indígenas. A abertura de estradas e grandes construções na chamada “fronteira verde” da Amazônia destruiu terras dos povos originários e trouxe a morte a quem impusesse resistência. Foram práticas comuns o envenenamento de rios, campos de concentração, assassinatos por mercenários dos latifúndios e o contato forçado com as doenças do homem branco de povos que não possuíam a devida resistência biológica a estas enfermidades. A prioridade era o projeto de expansão capitalista, para o que a manutenção dos privilégios dos latifundiários, o extermínio dos indígenas e o espólio de suas terras estavam na ordem do dia. Essa barbárie foi feita com conivência do SPI – Serviço de Proteção ao Índio – e da FUNAI, fundada em 1967. Mais de 8 mil indígenas morreram nesse processo.

O terrorismo de Estado foi a ferramenta utilizada pelos governos militares baseados na doutrina de segurança nacional (lógica de combate ao inimigo interno) para a manutenção do poder. A tortura e o desaparecimento serviram como aviso à população do perigo de se revoltar contra o regime. A violência característica da burguesia brasileira,  sempre aplicada aos oprimidos e oprimidas, agora era generalizada. A ordenação política da ditadura empresarial- militar, tendo como ferramenta o terrorismo de Estado, manteve o país na miséria e subalternidade. A ditadura,  portanto, não se limitou à repressão aos centros urbanos, mas executou um projeto de dominação que afetou todo o país. Além disso, o terrorismo de Estado superou as fronteiras nacionais, se organizando no Cone Sul através da Operação Condor.

Ao mesmo tempo, a ditadura desenvolveu um intenso processo de industrialização no período que ficou conhecido como o “milagre econômico”, em que as taxas anuais médias de crescimento do Produto Interno Bruto cresceram acima de 11%. Esse processo foi realizado através de uma política que combinava crescimento econômico, arrocho salarial e repressão à classe trabalhadora e a qualquer tentativa de oposição, tendo ampliado a concentração de renda e a favelização da população migrante, inclusive dos trabalhadores industriais, em função dos baixos salários. No Sudeste, especialmente em São Paulo, aprofundou-se o processo de concentração populacional e da classe operária: em 1970 havia 70,58% de trabalhadores/as na região Sudeste e 16,92% na região Sul. Ou seja, 87,5% do operariado brasileiro estava concentrado nessas duas regiões. Havia cerca de mil empresas com mais de mil operários/as cada, seis no setor de transporte com mais de cinco mil empregados e 12 empresas industriais com mais de 10 mil operários/as. A classe operária dobrou no país entre os anos de 1970 e 1976.

Mesmo com a forte repressão iniciada com o golpe empresarial-militar de 1o de abril de 1964, aconteceram importantes tentativas de greves de resistência, como de ferroviários (RJ) e mineiros (MG) e as históricas greves dos metalúrgicos de Contagem (MG) e Osasco (SP) em 1968. A repressão fez o movimento sindical submergir por cerca de uma década. Ao longo do período de defensiva houve resistência espontânea das mais variadas formas e até mesmo greves mais organizadas, mas sem a abrangência e impactos políticos e organizativos na consciência operária como a primeira grande greve realizada pelos operários da Scania, em maio de 1978. No período de defensiva, operários e operárias resistiram realizando operação tartaruga, se recusando a fazer horas extras e faltando ao trabalho, fazendo greves por atraso de pagamento ou reivindicando antecipações salariais. Apesar de isoladas e com pouca coordenação sindical, tais lutas significaram um processo de acúmulo que viria explodir em 1978. Em 1974 sindicalistas do PCB organizaram uma greve nos transportes que paralisou parte expressiva da cidade de São Paulo.

O movimento operário retornou com força em 1978, com as greves operárias do ABC paulista, que se espalhariam por todo o país como um rastilho de pólvora envolvendo praticamente todas as categorias de trabalhadores e trabalhadoras, apesar da enorme repressão policial que atingiu não só os locais de trabalho, mas também os bairros onde residiam operários e operárias e até mesmo templos religiosos. Para se compreender a abrangência do movimento grevista, pode-se constatar que, no final de 1978, mais de 500 mil trabalhadores/as entraram em greve no Brasil, número que foi mais que multiplicado por seis em 1979, quando mais de 3,2 milhões paralisaram suas atividades laborais.

O movimento grevista rompeu o ciclo do medo, incorporou milhões de trabalhadores e trabalhadoras à luta de classes aberta, contribuiu para a derrota da política salarial da ditadura e foi decisivo para o processo mais geral de reorganização do proletariado e enfraquecimento do sindicalismo pelego, tanto que em 1981 os/as trabalhadores/as já encontraram forças para realizar o I Congresso Nacional das Classes Trabalhadoras, cujo evento seria o embrião para a posterior construção da Central Única dos Trabalhadores, entidade formada em 1983 pelo sindicalismo mais combativo do país à época e que viria a se transformar na maior central sindical brasileira. O movimento grevista teve um papel decisivo na luta pelas liberdades democráticas, abriu espaço para a conquista da anistia a presos e presas políticos/as, contribuindo de maneira decisiva para o fim da ditadura. Com a retomada do movimento operário estava aberta uma nova trajetória na vida política do país, mas também a burguesia iniciava uma nova ofensiva que viria a ter impactos estruturais na organização e nos direitos da classe trabalhadora nas décadas seguintes.

Reestruturação produtiva e neoliberalismo

Em fins da década de 1960 e início dos anos 1970, o modo de produção capitalista entrava num processo de queda nas taxas de lucros e consequentemente de crise. Nesta nova quadra histórica, buscando recompor os níveis das taxas de lucros, o sistema realiza a reestruturação produtiva, com a adoção de políticas neoliberais, também devido à hipertrofia da esfera financeira, que se transforma num lócus de absorção de capital monetário. Tal processo deu início ao que se denominou de financeirização, fenômeno que não nega o imperialismo, tampouco o papel da categoria do capital financeiro, muito pelo contrário, coloca como protagonistas as formas fluidas de capital, como o capital portador de juros e o chamado capital fictício.

Enquanto o movimento operário avançava no Brasil na década de 1980, nos países centrais a crise de superacumulação e a reação do capital para recompor a taxa de lucro resultavam em uma nova etapa do capitalismo: o neoliberalismo. Estavam sendo introduzidas mudanças profundas tanto na gestão da produção no interior das fábricas, quanto na economia global, com as políticas monetaristas e neoliberais, desenvolvidas a partir dos Estados Unidos e da Inglaterra, e que viriam a envolver todos os países capitalistas ligados à economia líder. Implantou-se no chão das fábricas a automação flexível, produção por célula, a administração por stress, a produção sem gordura, a reengenharia, o chamado aperfeiçoamento contínuo e qualidade total, a polivalência operária, a intensidade no trabalho, os círculos de controle operários, espécie de comitês críticos constituídos pelos próprios trabalhadores e trabalhadoras, as metas de produção, através das quais uma parcela expressiva dos salários estava vinculada ao cumprimento dessas metas.

A reestruturação produtiva é produto direto do desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, incrementando esse mesmo movimento, por sua vez. A possibilidade de comunicação remota instantânea atende aos interesses do capital financeiro, parcelando e disseminando as suas plantas fabris ao redor do mundo junto à circulação sem amarras de capitais. Esse cenário permite uma nova divisão do trabalho, mais efetiva em rotacionar o circuito do dinheiro a partir da inflexão das formas capitalistas subordinadas e da extensão da cadeia produtiva facilitadora dos processos de terceirização e quarteirização do trabalho. Culturalmente, estimula um modo de vida cada vez mais atomizado, avesso a intervenções e formas sociais baseadas na coletividade.

Essas medidas combinavam-se com intenso processo de terceirização, inicialmente nos setores mais especializados, geralmente na área de serviços das próprias empresas, como limpeza, transporte, manutenção etc., mas posteriormente se estendeu a praticamente todos os setores da produção. A esse processo pode-se acrescentar as terceirizações produtivas, pelas quais uma empresa fornece a tecnologia e o desenho, e as outras partes do produto são feitas em outras regiões ou países diferentes. A ofensiva do capital visava reduzir os custos de produção e intensificar o processo de exploração do trabalho, frente à crescente e contínua monopolização dos diversos setores da economia, uma vez que a produção enxuta passou a obrigar um/a trabalhador/a a realizar tarefas que antes eram feitas por vários/as operários/as, precarizar o trabalho e reduzir os salários. Além disso, as medidas tinham objetivos políticos e de classe e visavam desorganizar e dividir os/as trabalhadores/as, minando a solidariedade no chão da fábrica, descentralizando a produção e consequentemente diminuindo a possibilidade de interação política entre os/as trabalhadores/as. Houve ainda a criação de duas categorias de trabalhadores/as no mesmo ambiente de trabalho: efetivos/as e terceirizados/as.

As transformações estruturais que o neoliberalismo se propôs fazer foram, sinteticamente, criar condições para uma ampla reestruturação produtiva e conduzir o processo de criação de uma nova concepção de mundo que justificasse as mudanças e que auxiliasse na aceitação consensual – ao menos em parte – delas e de suas consequências. Buscava-se, portanto, criar uma nova subjetividade assentada fundamentalmente no individualismo, na meritocracia e na ruptura quase total dos laços de solidariedade. Esta construção particular é hoje fonte do fenômeno expansivo do empreendedorismo, em que as pessoas, não tendo condições de vida e de trabalho dignas, incorporam o discurso de si como garantia exclusiva do sucesso ou não no mercado de trabalho.

Havia também o objetivo de enfraquecer o movimento sindical, uma vez que terceirizados e terceirizadas não estavam vinculados/as aos mesmos sindicatos que os/as efetivos/as e mesmo estes/as se fragmentaram em diversos sindicatos, por local ou setor de trabalho e não por ramo de produção, fatos estes que se aliavam a uma enorme propaganda ideológica contra os sindicatos e estímulo ao individualismo, chegando ao ponto de os/as trabalhadores/ as passarem a ser denominados como colaboradores/as e não mais como trabalhadores/as, camuflando assim o assalariamento e as contradições de classe. Outra das táticas patronais era a vinculação de parte dos salários ao conjunto de metas de produção estabelecidas pela gerência, medida que se aliava a uma fugaz “participação nos lucros”, cujo objetivo era fazer crer à classe trabalhadora de que ela faz parte do sucesso empresarial. Visava ainda cooptar dirigentes sindicais, além de desestimular a luta por recomposições salariais.

Os anos 80, no Brasil, ficaram conhecidos como a década perdida para setores da burguesia, mas foi um período de conquistas para a classe trabalhadora. A Constituição de 1988 foi uma síntese jurídica do processo de lutas que culmina no fim da ditadura empresarial-militar. Movimentos sociais de todo país se organizaram para disputar os rumos da Constituinte e algumas de suas contribuições foram aprovadas. Apesar de formalmente avançada, é constantemente modificada pelos ataques burgueses. Seus avanços se explicam pelo próprio caráter da conjuntura que permitiu a nova Constituição: para responder aos movimentos sociais que estavam em ascensão no período em que foram derrotados na campanha da Diretas Já, num contexto de transição segura da ditadura para a democracia formal, esse processo serviu para dar um aspecto “popular” a uma mudança de caráter institucional.

Os anos 90 significaram principalmente o período em que ocorreu uma mudança de qualidade no processo de acumulação no Brasil, com a implantação radical da agenda neoliberal, uma recomposição de poder entre as frações das classes dominantes, no qual o setor financeiro passou a hegemonizar e subordinar as outras frações burguesas, além de uma derrota da classe trabalhadora. Aproveitando-se da popularidade do Plano Real, FHC realizou um conjunto de contrarreformas antinacionais e antipopulares, privatizou os principais setores da economia, impôs o regime de metas de inflação, superavit primário, câmbio flutuante, Lei de Responsabilidade Fiscal e autonomia operacional do Banco Central, colocando dessa forma toda a economia sob a égide do Consenso de Washington e a serviços dos rentistas, do grande capital e do agronegócio. Para os trabalhadores e as trabalhadoras, os dois mandatos de FHC significaram um retrocesso histórico: realizou-se uma contrarreforma da previdência regressiva, ataques ao funcionalismo público, que ficou oito anos sem reajuste, e ofensiva contra os direitos, garantias e salários dos/as trabalhadores/as, sob o argumento de que era necessário acabar com a era Vargas.

Para impor esse programa, foi necessário perpetrar uma forte derrota a uma das categorias mais organizadas do país, os petroleiros em greve, com intervenção do Exército nas refinarias, prisões de dirigentes sindicais e multa milionária contra os sindicatos. Foi uma espécie de repressão-exemplo de forma a evitar que outras categorias entrassem em greve. Foi nessa conjuntura que se aprovaram a flexibilização nos contratos de trabalho, a criminalização das greves, com multas diárias contra os sindicatos, a implantação do contrato de trabalho por tempo determinado, a jornada flexível, a autorização do trabalho aos domingos, a ofensiva contra a Justiça do Trabalho e a limitação da estabilidade dos dirigentes sindicais. O resultado desse processo foi uma brutal queda na renda dos trabalhadores, aumento do desemprego e precarização das condições de trabalho. A economia entrou em crise, a dívida pública aumentou mais de dez vezes e o governo decidiu fazer acordo com o FMI. Além disso, é importante destacar que os altos níveis de desemprego da era FHC também contribuíram para colocar a classe trabalhadora em posição de recuo e, assim, impor os retrocessos.

O contexto de ataques à organização dos/as trabalhadores/as e de transformações nas relações entre o capital e o trabalho através da chamada reestruturação produtiva, programas como Controle de Qualidade Total, terceirizações, entre outros, foi agravado com o avanço do modelo de sindicalismo de resultados ou ainda pelo sindicalismo cidadão, propalados nos anos 80 pela CIOLS em nível mundial e praticados por muitas confederações e executivas regionais filiadas à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Esse modelo defendia o estreitamento da participação dos sindicatos às câmaras tripartites de negociação, a conciliação de classes em torno de resultados que fossem “tangíveis” ao desenvolvimento econômico, provocando na maioria das vezes o desarme ideológico, o rebaixamento da análise estrutural do capitalismo e a falsa propaganda da inclusão democrática e humanista ao desenvolvimento do capital, rebaixando assim a consciência e a organização da classe trabalhadora.

Nesse contexto a sociedade brasileira elegeu, em 2002, um novo presidente, Luís Inácio Lula de Silva, oriundo do movimento sindical e líder do Partido dos Trabalhadores. A eleição representou tanto um protesto contra as políticas neoliberais nos anos anteriores, quanto a crença na possibilidade de mudanças econômico-sociais que viessem a favorecer trabalhadores e trabalhadoras. Impulsionados por um ciclo econômico de crescimento, os governos petistas promoveram políticas compensatórias, que possibilitaram algumas melhorias nas condições econômicas e sociais da população. Mas os 13 anos de governo do PT (incluindo dois mandatos de Lula e o de Dilma) representaram uma enorme frustração a todos que esperavam mudanças estruturais na sociedade brasileira. Os governos do PT, ao implementarem a estratégia democrático-popular, operaram um reformismo rebaixado, pautado pelo social-liberalismo e assim optaram por uma política de conciliação de classes, com hegemonia do grande capital, do agronegócio, com o sistema financeiro ganhando rios de dinheiro. Para os/as trabalhadores/as e o proletariado, restou uma política de compensação social, focada na redução dos índices de pobreza postos pelo Banco Mundial, e de valorização do salário-mínimo, que estava muito defasado em função da política neoliberal do governo anterior.

Lula manteve, no campo econômico, a matriz neoliberal (metas de inflação, superavit primário e câmbio flutuante), estabeleceu a autonomia operacional do Banco Central, inclusive convidando para dirigi-lo o banqueiro Henrique Meireles, ex-presidente do Banco de Boston, homem ligado organicamente ao capital financeiro, que ostensivamente manteve o modelo econômico de dependência e tinha sido recém-eleito deputado federal pelo PSDB de Goiás. O governo também incentivou a concentração de grandes grupos privados nacionais, mediante fusões e aquisições e generosos créditos do BNDES, estimulou a compra de componentes e equipamentos preferencialmente de empresas nacionais por parte das empresas públicas e fortaleceu o agronegócio ligado à produção de commodities e ao processamento industrial das matérias-primas, o que consolidaria o Brasil como um dos líderes na exportação agropecuária.

Do ponto de vista socioeconômico, o governo do PT se aproveitou das condições econômicas do momento histórico para promover uma política de retomada do crescimento econômico. Em acordo com as centrais sindicais, criou uma política de valorização do salário-mínimo. Em contrapartida, fez a contrarreforma da previdência de 2003, que aprofundou as medidas regressivas iniciadas na era FHC. Contudo, o setor em que os petistas reivindicam maior êxito é o das políticas sociais. Com o programa Bolsa Família como carro-chefe, e com destaque a outras medidas que priorizavam o consumo via crédito consignado e endividamento dos/as trabalhadores/as mais pobres como perspectiva de ascensão social, o governo seguiu a cartilha dos organismos multilaterais, mantendo o viés compensatório que vai na contramão da concepção universalizante defendida historicamente pelos movimentos sociais e sindical. No sentido da geração de emprego e renda não foi diferente: sem efetivamente aplicar medidas que aumentassem a geração de emprego formal, investiu na formação tecnicista da juventude mais precarizada a fim de direcioná-la como força de trabalho barata com o mínimo da qualificação profissional necessária, e promovendo os valores do “empreendedorismo” e da meritocracia, por meio de programas como PRONATEC, PRONACAMPO e PROJOVEM, contribuindo para a criação das condições do aumento da informalidade.

Na educação, ampliou-se o acesso ao ensino superior público, com incentivo à construção de Institutos Federais e novos campi de Universidades Federais, porém, sem o devido investimento na permanência estudantil e infraestrutura dessas instituições de ensino, acima de tudo priorizando uma política de investimento de dinheiro público na educação privada, beneficiando diretamente grandes grupos internacionais que fazem da educação um negócio altamente lucrativo, por meio do ProUni e do FIES. Outra medida que podemos citar é o marco legal de ciência e tecnologia. O governo criou programa de crédito para trabalhadores/as e aposentados/as, o chamado crédito consignado, a juros baixos, que incentivou o consumo de setores populares, política essa que criou a falsa noção de cidadania que se dava não pela garantia de direitos, mas apenas pelo aumento do consumo. Tal distorção não só manteve intocados a concentração de riqueza e o grau de desigualdade no país, bem como promoveu o endividamento dos setores populares e novos ganhos para os bancos através do processo de financeirização das políticas públicas.

Na política externa, o PT desenvolveu um conjunto de ações com relativa autonomia, incentivou a integração regional, ressaltando-se o fortalecimento do Mercosul e criação da Unasul, além de ter participado da constituição dos BRICS, muito embora tenha autorizado o envio de tropas brasileiras para o Haiti, num gesto para agradar o governo estadunidense e conseguir uma cadeira no Conselho Permanente de Segurança da ONU, o que não ocorreu. Porém, rejeitou integrar a ALBA, negou a entrada da TELESUR no Brasil e tentou apresentar-se como alternativa social-liberal ao modelo bolivariano. No fundamental, a política externa desenvolvida pelo PT buscou um viés de integração regional voltado a favorecer a expansão de capital com a formação de mercados alternativos, contribuindo para exportação de capitais e mercadorias brasileiras, em uma clara ação voltada a favorecer as práticas imperialistas de empresas nacionais, a exemplo da Odebrecht. Como não realizou as reformas estruturais, que poderiam mudar a correlação de forças na sociedade, terminou sendo vítima de suas próprias ilusões de classe, ao abandonar a organização popular e a luta nas ruas, buscando cooptar as organizações do movimento social e substituindo a mobilização dos/as trabalhadores/as pelos acordos de gabinetes.

A política de conciliação de classes operada pelos governos petistas levou ao apassivamento dos/as trabalhadores/as e da juventude, por meio da coerção e do consenso, provocando a despolitização de grande parte dos movimentos sociais. Os principais grupos econômicos que o PT ajudou a fortalecer com financiamento a praticamente custo zero foram exatamente os que conspiraram pelo impeachment da presidente Dilma, quando identificaram que o PT, em função do aprofundamento da crise sistêmica global, não poderia realizar o choque neoliberal de que necessitavam e não conseguia mais conter as massas. Com o golpe jurídico-parlamentar, as classes dominantes aliadas ao imperialismo afastaram o PT e implantaram um governo puro sangue do grande capital, que impôs aos/as trabalhadores/as, à juventude e às camadas pobres da cidade e do campo um programa de contrarreformas antissocial e uma ordem fiscal predatória.

Quando aconteceram as “Jornadas de Junho” de 2013, explosão social politicamente difusa e com níveis diversos de radicalidade nas críticas apresentadas, a escolha de Dilma Rousseff foi ignorar grande parte das demandas sociais ali expostas e procurou, no sentido contrário, atender àquelas que indiretamente contribuiriam para a manutenção do que já era evidentemente fonte de desgaste social. Com os grandes eventos de 2014, a saber a Copa do Mundo, e toda sua volumosa soma de investimento público, gerou-se ainda mais substrato para que a direita reacionária e a conservadora, já expressas nos partidos tradicionais da ordem, mas também em novos grupos como MBL e “Vem pra Rua”, pudesse investir na temática da corrupção endêmica do Estado e no PT como único agente beneficiário, que sabemos iria desembocar em um braço jurídico, que também é político, a Operação Lava Jato, encabeçada pelo então Juiz Federal (posteriormente, ministro e pré-candidato a presidente) Sérgio Moro. Outra vez, Dilma escolheu a opção retrógrada ao não vetar a Lei Antiterrorismo no fim daquele ano.

Todo este conjunto de eventos históricos serviu de base para desarticular ainda mais o campo econômico do Brasil e foi fator de muito desgaste na reeleição de Dilma em 2014. Em seu segundo mandato, imediatamente após terminadas as eleições, a petista aplicou integralmente o programa econômico de seu então opositor, Aécio Neves. 2015 foi o ano em que Dilma fez valer um ajuste fiscal rigoroso, também chamado de “austericídio”, já muito característico por conta de ser o carro-chefe das recomendações do FMI aos países em recessão, como a Grécia e demais países da periferia europeia. Toda esta inflexão mais radical do governo petista em favor do capital financeiro não foi suficiente para assegurar sua continuidade.

Depois de uma campanha eleitoral marcada pela retórica contra os banqueiros, a tentativa de conciliação de Dilma com a Agenda Brasil encorajou a ofensiva burguesa, em vez de atrasá-la. Esse desenvolvimento confirmou o acerto da tática do PCB em abster-se no segundo turno das eleições de 2014. Como resultado disso, muitas pessoas passaram a compreender a correção de nossa tática de independência de classe. Tanto é assim que a nomeação ministerial do banqueiro Joaquim Levy, da ruralista Kátia Abreu e do industrial Armando Monteiro foi definitiva na ruptura do MTST com o governo e na criação da Frente Povo Sem Medo.

O governo Temer e seus aliados, tendo como pano de fundo e pretexto a crise econômica iniciada em 2008, implantaram a contrarreforma trabalhista, que fez regredir os direitos ao período anterior à República Velha, impôs um ajuste fiscal draconiano de 20 anos, que sufoca as finanças públicas e corta as verbas para as áreas sociais, especialmente para saúde e educação, intensificou as terceirizações e fez a reforma do ensino médio. Mas quem imaginava que a burguesia e o imperialismo estavam satisfeitos com a regressão social e o ajuste predatório, enganou-se. Diante de uma conjuntura eleitoral específica, os grandes setores da burguesia monopolista foram impelidos a apostar suas fichas no governo Bolsonaro para garantir sua agenda de saída da crise do ponto de vista capitalista, ampliando ainda mais a ofensiva contra os direitos e garantias dos/as trabalhadores/as, com a contrarreforma da previdência e a liquidação de grande parte das conquistas realizadas pela classe trabalhadora desde os anos 30.

Essa conjuntura é uma séria advertência de que os/as trabalhadores/as somente devem confiar em suas próprias forças, manter sua independência e nunca ter ilusões de alianças com a burguesia. Todos os setores que fizeram esse tipo de aliança foram absorvidos ou derrotados pela própria burguesia. Por isso, a principal tarefa dos/as comunistas nessa época de luta contra a ofensiva burguesa é trabalhar, em toda luta unitária, pela superação da hegemonia social-liberal na esquerda e pela reorganização independente da classe trabalhadora em torno de um programa revolucionário socialista, sem ilusões na conciliação com a burguesia e suas instituições.

Caracterização dos/as trabalhadores/as brasileiros/as na atualidade

O Brasil viveu nas últimas sete décadas uma explosão demográfica e uma transformação urbana: passou de 40 milhões em 1940 para mais de 213 milhões de habitantes atualmente, que hoje vivem em 5.570 municípios. Mais de 80% da população vive nas cidades e praticamente a metade desse contingente habita em aglomerações urbanas com mais de 200 mil habitantes, sendo que 17 municípios têm uma população superior a um milhão de habitantes, 49 cidades possuem mais de 500 mil habitantes e mais de 300 têm mais de 100 mil habitantes. Os três Estados mais populosos encontram-se na região Sudeste, sendo São Paulo o Estado que concentra 21,9% da população brasileira, ou seja, 46,6 milhões de habitantes. Essa tendência à concentração urbana é uma das características fundamentais do desenvolvimento capitalista: com a crescente expropriação dos pequenos agricultores e a concentração das terras nas mãos de uma minoria de grandes proprietários, por um lado, e com a crescente mecanização da produção agrícola, por outro, contingentes cada vez mais vastos de trabalhadores do campo são forçados a se deslocar para os grandes centros urbanos em busca de assegurar sua subsistência, por meio da venda de sua força de trabalho. Portanto, trata-se de uma população concentrada nas grandes cidades, o que significa dizer que é também nas grandes cidades e regiões metropolitanas que estão concentrados os grandes grupos econômicos e grandes empresas e, consequentemente, o seu contraponto, o proletariado brasileiro, bem como vastas camadas médias de pequenos proprietários privados.

É importante destacar que, investigando a situação do proletariado brasileiro, diferenciá-lo completamente das demais camadas do povo trabalhador consiste em um esforço impossível. Entre essas camadas da sociedade burguesa existe um trânsito constante: assim como a concorrência e a falência empurram pequenos proprietários para a proletarização, também o desemprego leva o proletariado aos trabalhos autônomos, por exemplo. Assim, ainda que tenhamos consciência de que os dados estatísticos sobre os/as “trabalhadores/as ocupados/as” não expressam com rigor o “proletariado puro”, justamente por conta deste constante fluxo, consideramos que estes dados sejam um ponto de partida para a análise da situação da ampla massa dos/as trabalhadores/as pobres, proletários ou não.

O Brasil possui um dos maiores contingentes de trabalhadores/as de todo o continente: a população ocupada, com 14 anos ou mais de idade, incluindo os/as trabalhadores/as formais, informais, por conta própria, além daqueles da administração pública e serviços domésticos, atingiu 87,8 milhões de trabalhadores em 2021. No entanto, pelas próprias características do mercado de trabalho brasileiro, esse número de “ocupados” precisa ser mais bem qualificado, para entendermos, de um lado, o potencial da força de trabalho no país e, por outro, o elevado índice de informalidade que caracteriza as relações de trabalho no Brasil, o desemprego que cresceu de maneira impressionante nos últimos anos e a precariedade das relações salariais e trabalhistas. Desse imenso contingente, mais de 60 milhões são considerados empregados/as, quase 25 milhões trabalham por conta própria e em torno de 2 milhões realizam trabalho familiar auxiliar.

Avaliando especificamente os/as empregados/as, a partir dos grandes setores da economia, podemos constatar que 44,04 milhões estão no setor privado, 11,28 milhões são vinculados/as ao setor público e 6,2 milhões são empregados e empregadas domésticas. Trata-se de uma força de trabalho com relações muito precárias de trabalho, pois apenas 33,3 milhões dos/as trabalhadores/as do setor privado possuem carteira de trabalho assinada, enquanto 10,7 milhões trabalham sem carteira assinada. No setor público se encontra o contingente com maior índice de formalidade no mercado de trabalho: 7,8 milhões são militares e funcionários/as públicos/as estatutários/as, portanto com vínculos formais, enquanto outros 1,2 milhões de funcionários/as não estatutários/as possuem carteira assinada e 2,3 milhões não têm registro na carteira de trabalho. Todavia, a situação de precariedade mais dramática se verifica entre trabalhadores/as domésticos/as: 4,3 milhões não possuem carteira assinada e apenas 1,8 milhão têm carteira de trabalho assinada.

Esses dados mais gerais deixam claro que existe um enorme exército excedente de trabalhadores/as precários/as, tanto no setor privado quanto no setor público, além dos serviços domésticos. Em outras palavras, cerca de 24% não possuem carteira no setor privado. No setor público existem 20,2% de trabalhadores/as também sem carteira assinada. Mas é no serviço doméstico onde se encontram as maiores taxas de trabalhadores/as sem vínculo empregatício formal: 70,8% desses/as trabalhadores/as não têm carteira assinada. Situação também dramática pode ser observada entre os/as trabalhadores/as por conta própria: apenas 19% têm CNPJ, enquanto 80,9% não estão registrados com CNPJ, o que pode indicar alto grau de informalidade como vendedores ambulantes, trabalhadores que fazem “bicos”, pequenos expedientes etc.

Esse contingente informal, tanto em meio ao setor privado quanto ao público, entre trabalhadores/as domésticos/as ou entre aqueles que exercem atividade por conta própria, não possui direitos e garantias tais quais os/as trabalhadores/as formais (como férias, 13o salário, descanso semanal remunerado etc.), ganha cerca de 40% a menos que os/as empregados/as formais, exercendo ainda, involuntariamente, grande pressão para baixa dos salários gerais, tendo em vista a abundância de força de trabalho precarizada e disposta a trabalhar. Se a isso aliarmos o contingente mais geral de desocupados/as, atualmente calculados em cerca de 27 milhões de trabalhadores/as (incluem-se nesse pacote os/as desempregados/as, os/as desalentados/as que já não procuram mais empregos e aqueles/as que trabalham poucas horas e gostariam de trabalhar mais, entre outros) 1  , poderemos  ter uma avaliação das dramáticas condições de precariedade do mercado de trabalho no país.

Apesar de as atividades domésticas se encaixarem no conceito de trabalho improdutivo, por não gerarem valor, são trabalhos essenciais para que se realize o processo produtivo: é um trabalho que subordina de maneira funcional os/as trabalhadores/as à produção capitalista, sobretudo porque tais atividades dizem respeito à sobrevivência. Assim, o trabalho doméstico, incluindo o não remunerado – realizado pelas mulheres ditas “donas de casa”, está inserido na dinâmica de acumulação de capital, sujeitando milhares de trabalhadoras, principalmente as mulheres negras, para a sua reprodução.

Avaliando o conjunto de trabalhadores e trabalhadoras pela ótica regional, poderemos ter uma ideia mais abrangente de como está distribuída a população trabalhadora do país. A região Sudeste, que compreende os Estados de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro, concentra o maior número desses/as trabalhadores/as, atingindo 40,7 milhões do conjunto das pessoas ocupadas, sendo que São Paulo e Minas juntas possuem 31 milhões de trabalhadores/as. Em seguida vem a região Nordeste, com 21,4 milhões de ocupados/as, destacando-se a Bahia, com 6 milhões, seguida de Ceará com 3,5 milhões e Pernambuco, com 3,4 milhões. A terceira região na escala de grandeza do contingente de trabalhadores/as ocupados/as é a região Sul, que soma 14,6 milhões de trabalhadores/as, destacando-se Rio Grande do Sul, com 5,5 milhões e Paraná com 5,4 milhões.

Na região Centro-Oeste o contingente de trabalhadores/as corresponde a 7,5 milhões, destacando-se Goiás,  3,2 milhões de trabalhadores/as no Estado. A região Norte apresentou um perfil muito semelhante à região Centro- Oeste, com 7,2 milhões de trabalhadores/as, destacando-se o Para e o Amazonas como os Estados de maior  contingente de trabalhadores/as – 3,4 milhões e 1,6 milhão. Em outros termos, a região Sudeste concentra 44,5% da população ocupada do país e somente o Estado de São Paulo possui 23,6% de ocupados/as, seguido pela região Nordeste, que possui 23,3% desse contingente populacional e Sul, com 16%. As regiões Centro-Oeste e Norte possuem contingentes semelhantes, respectivamente de 8,2% e 7,6%.

Para melhor compreender a composição do proletariado brasileiro em suas particularidades econômicas, um bom ponto de partida são os dados da PNAD, organizados em torno de “grupamentos de atividade” [5 - Tabela 5434]. Não podemos assumir esses dados, no entanto, sem dispensar mais algumas considerações críticas sobre a metodologia de sua exposição. Foram agregados os grupamentos de atividade de diferentes categorias, a partir de uma distinção entre os/as trabalhadores/as ligados/as diretamente à produção material, aqueles/as que exercem atividades nos serviços auxiliares à produção material, os/as que trabalham no comércio e nos serviços em geral, além dos/as que trabalham na administração pública. Esta distinção resulta em algumas distorções – como, por exemplo, contabilizar trabalhadores/as que participam diretamente da cadeia de produção do valor no “setor de serviços”: é o caso, por exemplo, dos criadores e desenvolvedores de softwares, designers industriais etc. Nesse caso, é necessário ter em mente que a distinção feita pela pesquisa entre “indústria” e “serviços auxiliares” não corresponde, rigorosamente, à distinção marxista entre o trabalho assalariado produtivo e o improdutivo, na órbita da circulação e do consumo privado. De qualquer forma, mesmo com todas essas debilidades metodológicas, a classificação dos/as trabalhadores/as e os números apresentados representam um diagnóstico muito próximo da realidade.

Trabalhadores/as ligados/as diretamente à produção

  • Indústria geral: É constituída por aqueles/as que estão empregados/as na Indústria extrativa, indústria de transformação, eletricidade e gás, água esgoto, atividades de gestão de resíduos e descontaminação. Esses/as trabalhadores/as, em 2017 somavam 11,7 milhões de empregados/as. A esse contingente poderemos agregar trabalhadores/as da indústria da construção, que inclui os setores de construção e incorporação de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para a construção, cujo contingente de força de trabalho corresponde a 6,8 milhões de trabalhadores/as.
  • Proletariado rural: Engloba trabalhadores e trabalhadoras na agricultura, pecuária, pesca, aquicultura e produção florestal, totalizando 8,6 milhões de trabalhadores/as. Dessa forma, podemos afirmar que o núcleo duro do proletariado brasileiro, ligado diretamente à produção, totaliza 27,1 milhões de trabalhadores/as, um agregado muito maior que a população de vários países da América Latina.

Trabalhadores/as produtivos/as dos ramos imateriais

No capitalismo desenvolvido, o avanço tecnológico e a interconexão direta entre vários setores da economia e as cadeias de produção de mais valor são muito mais amplos do que, simplesmente, os setores diretamente ligados à produção material. Portanto, é importante realizar um esforço para agregar ao contingente de trabalhadores/as ligados/as diretamente à produção material outro conjunto de categorias que fazem parte, de maneira direta, da cadeia de produção do valor, como transportes, comunicação, armazenagem, alojamento, correio e alimentação. Nesses ramos, os dados do PNAD não permitem cifras precisas sobre a produtividade e a improdutividade do trabalho, bem como não diferenciam trabalhadores/as assalariados/as dos/as autônomos/as. Estas categorias estão assim constituídas:

  • Transporte, armazenagem e correio: inclui os/as trabalhadores/as do transporte terrestre, transporte aquaviário, transporte aéreo, armazenamento e atividades auxiliares do transporte, correio e outras atividades de entrega e somam 4,6 milhões de trabalhadores/as.
  • Alojamento e alimentação: correspondem a 5,1 milhões de trabalhadores/as. Assim, podemos calcular que o proletariado ampliado brasileiro participante da cadeia produtiva do valor soma 36,9 milhões de trabalhadores/as, um número enorme comparado a outros países do continente.
Tabela 1: População de 14 anos ou mais por Grupamento de atividades (em mil pessoas), 2017
Indústria geral 11.724
Construção 6.846
Agricultura, pecuária, produção florestal, aquicultura e pesca 8.608
Trabalhadores ligados diretamente à produção 27.178
Transporte, armazenagem e correios 4.572
Alojamento e alimentação 5.140
Trabalhadores ligados à cadeia de produção do valor 9.712
Total geral 36.890

Encontrado o núcleo central da cadeia de produção do valor na economia brasileira, é importante dimensionar os outros setores para se verificar de uma maneira mais global o mercado de trabalho no Brasil e o conjunto do proletariado brasileiro. No Brasil, país de capitalismo completo, o setor de serviços em geral e o comércio passaram a ter, na contabilidade nacional comumente realizada nos países capitalistas, uma participação cada vez maior no Produto Interno Bruto, em função não só da necessidade de ampliar a comercialização de produtos para a população, como também pelo fato de que a dinâmica das sociedades urbanas possui uma demanda cada vez maior por serviços em todas as áreas, além da já mencionada interconexão entre vários serviços e o processo de produção.

Neste bloco de setores ligados à órbita da circulação ainda temos um grande setor de trabalhadores/as ligados/as à atividade institucional do Estado (a administração pública) e um contingente elevado de trabalhadores/as domésticos/as, o que de certa forma representa não só um resquício do período da Casa Grande como também um meio barato de setores das camadas médias urbanas de maior renda reproduzirem a força de trabalho, bem como dos setores burgueses de usufruírem de maneira mais confortável o ócio. Uma característica importante desses setores é o processo de monopolização: a maior parte da atividade financeira está dominada por cerca de 10 grandes grupos, a atividade comercial está hegemonizada por grandes cadeias de supermercados, lojas de departamento e centros de distribuição de produtos, enquanto a área de serviços em geral, mesmo sendo muito desenvolvida, é o setor mais pulverizado.

No quadro geral dos setores que fazem parte da órbita da circulação no sistema econômico, o setor comercial engloba o próprio comércio, além da reparação de veículos automotores e motocicletas: é o setor que emprega isoladamente o maior número de trabalhadores/as: 17,5 milhões. O setor de informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas engloba as atividades de informação e comunicação, atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados, atividades imobiliárias, atividades profissionais, científicas e técnicas, atividades administrativas e serviços complementares e emprega 10 milhões de trabalhadores/as; a administração pública, defesa, seguridade social, educação e saúde humana envolve a administração pública propriamente dita, defesa e seguridade social, educação pública e privada, saúde humana pública e privada e serviços sociais e possui 15,6 milhões de trabalhadores/as.

Outros serviços é um agregado amplo que engloba as artes, cultura, esporte, recreação, atividades de organizações associativas, reparação e manutenção de equipamentos de informática e comunicação e de objetos pessoais e domésticos, além de outras atividades de serviços pessoais e organismos internacionais e outras organizações extraterritoriais e emprega 4,5 milhões de pessoas. Finalmente, os/as trabalhadores/as dos serviços domésticos correspondem a 6,2 milhões de trabalhadores/as. Ou seja, esses setores (que, em termos marxistas, não são considerados ligados à cadeia de produção de valor) somam 53,8 milhões de trabalhadores/as e respondem por 68,4% da força de trabalho ocupada no país.

Tabela 2: População de 14 anos ou mais ligada à área financeira, comercial, administração pública, serviços em geral e trabalhadores domésticos (em mil pessoas) 2017
Comércio reparação de veículos automotores e motocicletas 17.500
Informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias,

profissionais e administrativas

9.992
Administração pública, defesa, segurança, saúde humana. E serviços

sociais

15.555
Outros serviços 4.447
Total 47.524
Serviços Domésticos 6.257
Total geral de trabalhadores na órbita da circulação 53.781

Previdência, gênero, raça/etnia, nível de escolarização e sindicalização

Do conjunto dos/as trabalhadores/as ocupados/as, apenas 58,1 milhões contribuem diretamente para a previdência (63,4%), enquanto 33,6 milhões não contribuem para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). No conjunto dos/as ocupados/as há uma pequena maioria da força de trabalhado constituída de homens (56,3%) e, consequentemente, 43,7% desse total é formada por mulheres trabalhadoras, percentual que não varia muito se analisarmos do ponto de vista regional: na região Norte, o percentual de homens na população ocupada era de 59%, no Nordeste 57,8%; no Sudeste 55,1% no Sul, 55,9% e no Centro-Oeste 56,6%. Do conjunto de ocupados/as em 2017, o percentual correspondente a 12,9% tinha entre 18 e 24 anos, 37,9% se situavam na faixa de 25 a 39 anos, enquanto na faixa de 40 a 59 anos representavam 39,8%. Os trabalhadores acima de 60 anos representavam 7,7% e aqueles menores de idade, entre 14 e 17 anos, representavam 1,7%.

A análise dos dados referentes à escolaridade dos/as trabalhadores/as ocupados/as no mesmo período de referência demonstra que 32,7% tinham concluído o ensino médio e 6,6% ainda não tinham concluído esta etapa do ensino; 18,8% terminaram o curso superior e 5,9% têm superior incompleto, ressaltando-se que 23,7% não tinham concluído o ensino fundamental e 3,6% não possuíam instrução ou apenas um ano de estudo. Avaliando-se regionalmente, as regiões Norte e Nordeste são aquelas em que foi identificado o maior número de trabalhadores/as que não tinham concluído o ensino fundamental, correspondendo respectivamente a 34,5% e 35,3%. As regiões Sudeste (62,9%) e Centro-Oeste (56,5%) apresentaram o maior percentual de pessoas com o ensino médio completo. Com relação ao ensino superior completo, o maior percentual de trabalhadores/as nessa condição estava também na região Sudeste (23,7%), seguido das regiões Centro-Oeste, com 20,8% e Sul, com 19,4%

Um dos elementos que identifica de maneira mais clara o baixo grau de organização e consciência de classe do proletariado brasileiro, muito em função do feroz e permanente trabalho ideológico e político da burguesia e das organizações do Estado para alienar, desorganizar e desorientar os/as trabalhadores/as, é a taxa de sindicalização da população ocupada. Dos 91,4 milhões de pessoas ocupadas em 2017 no Brasil apenas 14,4% eram associadas a algum sindicato. Do ponto de vista regional, o Sul do país apresenta, comparativamente, a mais elevada taxa de sindicalização dos/as trabalhadores/as, com 16,2%, seguido da região Nordeste com 15%, Sudeste com 13,9%, Centro-Oeste com 13,2% e Norte, com 12,6%. Se analisarmos a sindicalização por grupamentos da atividade na economia, veremos que os/as empregados/as na administração pública apresentam o maior grau de sindicalização, seguidos/as pelos/as trabalhadores/as na agropecuária, os/as empregados/as nos transportes, armazenagem e correios, na indústria em geral e na área de comunicação, atividades financeiras e imobiliárias. Os outros grupamentos têm uma taxa de sindicalização inferior à média nacional, sendo que o menor nível de sindicalização está entre os/as trabalhadores/as domésticos/as, com 3,1% de sindicalizados/as.

Tabela 3: Taxa de sindicalização, segundo os grupamentos de atividade (%) - 2017
Agricultura pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura 21,1
Indústria geral 17,1
Construção 6,9
Comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas 10,0
Transporte, armazenagem e correios 17,5
Alojamento e alimentação 6,8
Informação, comunicação, atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas 17,0
Administração Pública, defesa e seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais 23,6
Outros serviços 6,2
Serviços domésticos 3,1
Média total 14,4

Analisemos do ponto de vista do rendimento médio dos/as trabalhadores ocupados/as, levando em conta que numa economia capitalista a média não reflete necessariamente a realidade, uma vez que são misturados no rendimento geral os altíssimos salários com rendimentos muito baixos, o que é uma constante na economia brasileira. O total dos rendimentos médios mensais desse contingente de trabalhadores/as foi de R$ 2.114,00 em 2017, distribuídos da seguinte forma: os/as trabalhadores/as do setor privado com carteira assinada receberam uma média anual de R$ 2.146,00, enquanto os/as trabalhadores/as do mesmo setor, sem carteira assinada, receberam apenas 1.284,00. O maior percentual médio é encontrado nos/as trabalhadores/as do setor público, incluindo os/as estatutários/as, que receberam uma média anual de R$ 3.474,00, assim distribuídos: aqueles com carteira assinada receberam R$ 3.456,00; militares e funcionários/as públicos/as estatutários/as, R$ 3.950,00; aqueles/as que não possuíam carteira de trabalho assinada no setor público receberam apenas R$ 1.845,00. Trabalhadores/as domésticos/as foram os/as que receberam menor rendimento médio em 2017, menos mesmo que o salário-mínimo – R$ 887,00, com a seguinte diversificação: aqueles/as com carteira assinada receberam R$ 1.233,00, enquanto aqueles/as sem carteira assinada obtiveram rendimento de apenas R$ 736,00. Em termos gerais, os rendimentos médios de todos os trabalhos habitualmente recebidos por mês pelas pessoas ocupadas foram de R$ 197.033 milhões em 2017.

Dados sobre as condições do segmento da classe trabalhadora composto por pretos/as apontam para a composição do racismo estrutural e seus impactos na vida desta população. O Atlas da Violência de 2019, publicado pelo IPEA, órgão do governo federal, demonstra, pela perspectiva da criminalidade, a tragédia que essa fração da classe trabalhadora vive no seu dia a dia. Os índices são assustadores e estão relacionados com o racismo estrutural, algo que dificulta pretos/as se inscreverem no mercado de trabalho, bem como seu nível de instrução, já que os dados demonstraram também sua vulnerabilidade social, que os/as levam a abandonar a escola e ter pouco acesso ao mercado de trabalho. 50% da população preta vive em condições de vulnerabilidade social. A taxa de homicídio de pretos/as e pardos/as por grupo de 100 mil habitantes foi de 43,1, um indicativo de sua marginalização social e exclusão das relações de trabalho formal; entre não pretos/as foi de 16,0 por 100 mil habitantes. As maiores médias de homicídios de pretos/as estão localizados na Região Nordeste: Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Esses dados demonstram que pretos/as fazem parte de uma parte da classe mais exposta à miséria e à pobreza, necessitando atenção para suas condições materiais nas relações de produção capitalista.