Mais idiomas
Mais ações
Um Passo pra Frente, Dois Passos pra Trás
A Crise no nosso Partido[1 1] | |
---|---|
Publicado 1ª vez | Editorial Avante |
Tipo | Livro |
Fonte | Marxists Internet Archive |
Prefácio
Quando se trava uma luta prolongada, tenaz e apaixonada começam a delinear-se, geralmente ao fim de certo tempo, os pontos de divergência centrais, essenciais, de cuja solução depende o resultado definitivo da campanha, e em comparação com os quais os episódios menores e insignificantes da luta passam cada vez mais para segundo plano.
E o que se passa também com o combate que se trava no seio do nosso partido e que, há já meio ano, chama a atenção de todos os membros do partido. E precisamente porque foi necessário, no esboço de toda a luta que ofereço ao leitor, aludir a uma série de pormenores de interesse mínimo e a inúmeras querelas que não oferecem no fundo qualquer interesse, eu queria, desde o início, chamar a atenção do leitor para duas questões verdadeiramente centrais, essenciais, de enorme interesse e de projecção histórica incontestável, que constituem as questões políticas mais urgentes na ordem do dia do nosso partido.
A primeira diz respeito ao significado político da divisão do nosso partido em «maioria» e «minoria», divisão que tomou forma no segundo congresso do partido[1 2] e que deixou muito para trás todas as anteriores divisões dos sociais-democratas russos.
A segunda questão diz respeito ao significado de princípio da posição do novo Iskra em matéria de organização, tanto quanto se trata de uma posição efectivamente de princípio.
A primeira questão é a do ponto de partida da luta no nosso partido, a questão da sua origem, das suas causas, do seu carácter político fundamental. A segunda questão é a do resultado final da luta, do seu desenlace, do balanço que, no terreno dos princípios, se obtém somando tudo o que se refere aos princípios e subtraindo tudo o que se refere a querelas mesquinhas. A primeira questão resolve- se analisando a luta no congresso do partido; a segunda analisando o novo conteúdo de princípios do novo Iskra. Uma e outra destas análises, que constituem nove décimos desta brochura, levam à conclusão de que a «maioria» é a ala revolucionária do nosso partido, e que a «minoria» é a sua ala oportunista; as divergências que separam actualmente estas duas alas dizem respeito sobretudo a questões de organização, e não a questões de programa ou de táctica; o novo sistema de concepções que se desenha no novo Iskra com tanto mais clareza quanto mais ele procura aprofundar a sua posição, quanto mais esta posição se vai libertando de todas as querelas sobre a cooptação, é oportunismo em matéria de organização.
O principal defeito da literatura de que dispomos sobre a crise do nosso partido é, no que diz respeito ao estudo e esclarecimento dos factos, a ausência quase total duma análise das actas do congresso do partido, e no que respeita ao esclarecimento dos princípios fundamentais do problema de organização, é a falta de uma análise da ligação que inegavelmente existe entre o erro cometido pelo camarada Mártov e pelo camarada Axelrod na formulação do parágrafo primeiro dos estatutos e a defesa desta formulação, por um lado, e todo o «sistema» (tanto quanto se pode falar aqui de um sistema) dos princípios actuais do Iskra em matéria de organização, por outro lado. Pelos vistos a actual redacção do Iskra não nota sequer esta ligação, embora a importância da discussão do parágrafo primeiro tenha sido já muitas vezes assinalada nas publicações da «maioria». Hoje, os camaradas Axelrod e Mártov em essência não fazem mais do que desenvolver e alargar o seu erro inicial sobre o parágrafo primeiro. Em essência, toda a posição dos oportunistas em matéria de organização começou a revelar-se já na discussão do parágrafo primeiro: na sua defesa de uma organização do partido difusa e não fortemente cimentada; na sua hostilidade à ideia (à ideia «burocrática») da edificação do partido de cima para baixo, a partir do congresso do partido e dos organismos por ele criados; na sua tendência para actuar de baixo para cima, permitindo a qualquer professor, a qualquer estudante do liceu e a «qualquer grevista» declarar-se membro do partido; na sua hostilidade ao «formalismo», que exige a um membro do partido que pertença a uma organização reconhecida pelo partido; na sua tendência para uma mentalidade de intelectual burguês, pronto apenas a «reconhecer platonicamente as relações de organização»; na sua inclinação para essa subtileza de espírito oportunista e as frases anarquistas; na sua tendência para o autonomismo contra o centralismo; numa palavra, em tudo o que hoje floresce tão exuberantemente no novo Iskra, e que contribui para o esclarecimento cada vez mais profundo e evidente do erro inicial.
Quanto às actas do congresso do partido, a falta de atenção verdadeiramente imerecida de que são objecto só pode explicãr-se pelas querelas que envenenam as nossas discussões e possivelmente, além disso, pelo excesso de verdades demasiado amargas que essas actas contêm. As actas do congresso apresentam o quadro da verdadeira situação do nosso partido, quadro único no seu género, insubstituível pela sua exactidão, plenitude, diversidade, riqueza e autenticidade; um quadro das concepções, do estado de espírito e dos planos traçados pelos próprios participantes do movimento, um quadro dos matizes políticos existentes no nosso partido e que mostra a sua força relativa, as suas relações mútuas e a sua luta. As actas do congresso do partido, e só elas, mostram- nos em que medida nós conseguimos verdadeiramente varrer tudo o que restava das velhas relações puramente de círculos e conseguimos substituí-las por uma única grande ligação, a de partido. Todo o membro do partido desejoso de participar conscientemente nos assuntos do seu partido deve estudar com cuidado o nosso congresso do partido, precisamente: estudar, porque a simples leitura do amontoado de materiais brutos que as actas contém é insuficiente para dar um quadro do congresso. Só com um estudo minucioso e independente se pode conseguir (e deve-se procurar fazê-lo) fundir num todo os resumos sucintos dos discursos, os excertos secos dos debates, as pequenas controvérsias sobre questões secundárias (secundárias na aparência), para que ante os membros do partido surja o rosto vivo de cada orador destacado, se revele com precisão a fisionomia política de cada um dos grupos de delegados ao congresso do partido. O autor destas linhas considerará que o seu trabalho não terá sido em vão se conseguir pelo menos dar um impulso ao estudo, amplo e individual, das actas do congresso do partido.
Ainda uma palavra a respeito dos adversários da social-democracia. Eles seguem com caretas de alegria maligna as nossas discussões; evidentemente procurarão utilizar para os seus fins algumas passagens isoladas desta brochura dedicada aos defeitos e lacunas do nosso partido. Os sociais- democratas russos estão já suficientemente temperados nas batalhas para não se deixarem perturbar por essas alfinetadas, e para prosseguir, apesar delas, o seu trabalho de autocrítica, continuando a revelar implacavelmente as suas próprias lacunas, que serão corrigidas, necessária e seguramente, pelo crescimento do movimento operário. E que os senhores adversários tentem apresentar-nos da situação verdadeira dos seus próprios «partidos» um quadro que se pareça, mesmo de longe, com o que apresentam as actas do nosso segundo congresso!
Maio de 1904. N. Lénine
Notas
- ↑ V. I. Lénine trabalhou durante vários meses no seu livro Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás (A Crise no Nosso Partido), estudando cuidadosamente as actas das sessões e as resoluções do II Congresso do POSDR, as intervenções de cada um dos delegados, os agrupamentos políticos que se formaram no congresso, bem como os documentos do Comité Central e do Conselho do partido, materiais esses que foram publicados em Janeiro de 1904. Em Maio de 1904 o livro de Lénine foi publicado. Nesta obra V. I. Lénine desferiu um golpe demolidor no oportunismo dos mencheviques quanto às questões de organização. O enorme significado histórico do livro consiste, sobretudo, no facto de Lénine, desenvolvendo a doutrina marxista sobre o partido, ter elaborado os princípios de organização do partido revolucionário proletário, e de, pela primeira vez na história do marxismo, ter feito uma crítica completa do oportunismo em matéria de organização, tendo mostrado o perigo particular que comporta a subestimação do significado da organização no movimento operário. O livro provocou ataques ferozes dos mencheviques. Plekhánov exigiu que o Comité Central se dessolidarizasse do livro de Lénine, enquanto os conciliadores no Comité Central procuraram retardar a sua impressão e difusão. Apesar de todos os esforços dos oportunistas, a obra de Lénine Um Passo em frente, Dois Passos Atrás conseguiu uma ampla difusão entre os operários avançados da Rússia.
- ↑ O II Congresso do POSDR realizou-se de 17 (30) de Julho a 10 (23) de Agosto de 1903. As primeiras 13 sessões do congresso efectuaram-se em Bruxelas. Depois, devido às perseguições por parte da polícia, as sessões do congresso foram transferidas para Londres. As mais importantes questões do congresso eram a aprovação do programa e dos estatutos do partido, e as eleições dos seus centros dirigentes. Lénine e os seus partidários travaram no congresso uma luta decidida contra os oportunistas. O congresso aprovou por unanimidade (com uma abstenção) o programa do partido, em que foram formuladas tanto as tarefas imediatas do proletariado e da próxima revolução democrático-burguesa (programa mínimo), como as tarefas que visavam a vitória da revolução socialista e o estabelecimento da ditadura do proletariado (programa máximo). No decurso das discussões sobre os estatutos do partido travou-se uma luta aguda quanto à questão dos princípios organizativos da edificação do partido. Lénine e os seus partidários lutavam pela criação de um partido revolucionário combativo da classe operária e consideravam necessário que se adoptassem estatutos que dificultassem a adesão ao partido de todos os elementos instáveis e vacilantes. A formulação de Mártov, que tornava mais fácil a adesão ao partido de todos os elementos instáveis, foi apoiada no congresso não só pelos anti-iskristas e pelo «pântano» («centro»), como também pelos iskristas brandos, e foi aprovada pelo congresso por uma insignificante maioria de votos. Mas, no fundamental, o congresso aprovou os estatutos elaborados por Lénine. O congresso aprovou também uma série de resoluções sobre as questões de táctica. No congresso deu-se a cisão entre os partidários consequentes da orientação iskrista, leninistas, e os iskristas brandos partidários de Mártov. Os partidários da orientação leninista obtiveram a maioria dos votos durante as eleições dos organismos centrais do partido e passaram a ser denominados bolcheviques (da palavra russa bolchinstvó, que quer dizer maioria), enquanto os oportunistas, que obtiveram a minoria, receberam a denominação de mencheviques (da palavra russa menchinstvó, que quer dizer minoria). O congresso teve um enorme significado para o desenvolvimento do movimento operário na Rússia. Ele acabou com o trabalho artesanal e com o espírito de círculo no movimento social-democrata e deu início a um partido marxista revolucionário na Rússia, o partido dos bolcheviques.
a) A Preparação do Congresso
Há uma máxima segundo a qual cada pessoa tem o direito, durante vinte e quatro horas, de maldizer os seus juízes. O congresso do nosso partido, como qualquer congresso de qualquer partido, foi igualmente juiz de várias pessoas que aspiravam ao posto de dirigentes e sofreram um fracasso. Agora, esses representantes da «minoria», com uma ingenuidade enternecedora, «maldizem os seus juízes» e procuram, por todos os meios, lançar o descrédito sobre o congresso e minimizar a sua importância e autoridade. Esta tendência exprimiu-se talvez com o maior relevo no artigo de Praktik que, no n° 57 do Iskra, se indigna com a ideia da «divindade» soberana do congresso. Eis um traço tão característico do novo Iskra, que não poderíamos deixar de referir. A redacção, que é composta na sua maior parte por pessoas rejeitadas pelo congresso, continua, por um lado, a intitular-se redacção «do partido» e, por outro lado, abre os braços a indivíduos que afirmam que o congresso não é uma divindade. Muito bonito, não é verdade? Sim, senhores, o congresso não é certamente uma divindade, mas que pensar dos que começam a «denegrir» o congresso depois de aí terem sofrido uma derrota?
Lembremos, com efeito, os principais factos da história da preparação do congresso. Desde o princípio, no seu anúncio datado de 1900[2 1], que precedeu a publicação do jornal, o Iskra declarava que antes de nos unificarmos era necessário que nos demarcássemos. O Iskra procurou fazer da Conferência de 1902[2 2] uma reunião privada, e não um congresso do partido.[2 3] O Iskra agiu com extraordinária circunspecção no Verão e Outono de 1902, ao renovar o Comité de Organização eleito nessa conferência. Finalmente, o trabalho de demarcação terminou, terminou como todos nós o reconhecemos. O Comité de Organização foi constituído mesmo nos finais de 1902. O Iskra saúda a sua consolidação e declara - no seu editorial do n° 32 - que a convocação de um congresso do partido era a necessidade mais urgente e imediata[2 4]. Assim, o que menos nos podem censurar é o ter precipitado a convocação do segundo congresso. Nós aplicámos esta regra: olhar duas vezes antes de decidir; tínhamos o pleno direito moral de esperar que os camaradas, uma vez decidido, se não lembrassem de choramingar e olhar de novo.
O Comité de Organização elaborou o regulamento do segundo congresso, regulamento extremamente minucioso (formalista e burocrático, diriam os que agora encobrem com estes vocábulos a sua falta de carácter em matéria política); fê-lo aprovar por todos os comités e aprovou- o enfim, estabelecendo, entre outras coisas, no § 18: «Todas as resoluções do congresso e todas as eleições por ele feitas constituem uma decisão do partido, obrigatória para todas as suas organizações. Elas não podem, sob pretexto algum, ser contestadas por ninguém, e só podem ser revogadas ou modificadas pelo congresso seguinte do partido.»[2 5] Na verdade, que inocentes em si mesmas são estas palavras, então tacitamente aceites como algo que se subentende, e como soam hoje estranhamente, como se fossem um veredicto contra a «minoria»! Com que fim foi redigido este parágrafo? Unicamente pelo respeito das formalidades? Não, evidentemente. Esta decisão parecia necessária, e era-o efectivamente, porque o partido era composto por uma série de grupos fragmentados e autónomos, dos quais se podia esperar a recusa de reconhecer o congresso. Ela exprimia precisamente a boa vontade de todos os revolucionários (de que tanto e tão pouco a propósito se fala hoje, caracterizando por eufemismo com o termo boa o que merece antes o epíteto de caprichosa). Esta disposição equivalia à palavra de honra recíproca de todos os sociais- democratas russos. Ela devia garantir que o imenso trabalho, os perigos, as despesas exigidas pelo congresso, não seriam vãos; que o congresso se não transformaria numa comédia. Ela qualificava antecipadamente qualquer não-reconhecimento das decisões e eleições do congresso como uma quebra de confiança.
De quem troça então o novo Iskra, que fez a nova descoberta de que o congresso não é uma divindade e que as suas decisões não são sacrossantas? Conterá a sua descoberta «novas concepções em matéria de organização» ou apenas novas tentativas de apagar velhas pistas?
Notas
- ↑ Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 4, pp. 354-360. (N. Ed.)
- ↑ A Conferência de 1902, conferência dos representantes dos comités e organizações do POSDR, realizou-se de 23 a 28 de Março (de 5 a 10 de Abril) de 1902 em Belostok. Os «economistas» e os bundistas, que os apoiavam, tentaram transformar a conferência no II Congresso do POSDR, esperando consolidar deste modo a sua situação nas fileiras da social-democracia russa e paralisar a crescente influência do Iskra. Esta tentativa, no entanto, fracassou. A conferência elegeu o Comité de Organização para preparar o II Congresso do partido. Em breve, após a conferência, a maioria dos seus delegados, entre eles dois membros do Comité da Organização, foram presos pela polícia. O novo Comité de Organização para a preparação do II Congresso do POSDR foi formado em Novembro de 1902 na cidade de Pskov, na reunião dos representantes do Comité de Petersburgo do POSDR, da organização do Iskra na Rússia e do grupo Iújni Rabótchi.
- ↑ Ver as actas do II Congresso, p.20.
- ↑ Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, pp. 91-93. (N. Ed.)
- ↑ Ver as actas do II Congresso, pp. 22-23, 380.
b) O Significado dos Agrupamentos no Congresso
Assim, o congresso reuniu-se depois de preparativos extremamente minuciosos, na base da mais completa representação. O reconhecimento geral da composição regular do congresso e do carácter absolutamente obrigatório das suas resoluções encontrou também a sua expressão na declaração feita pelo presidente (p. 54 das actas) depois da constituição do congresso.
Qual era portanto a tarefa principal do congresso? Criar um verdadeiro partido sobre as bases de princípios e de organização que tinham sido propostas e elaboradas pelo Iskra. Que o congresso devia trabalhar precisamente neste sentido era facto antecipadamente determinado por três anos de actividade do Iskra, aprovada pela maioria dos comités. O programa e orientação do Iskra deviam tornar-se o programa e orientação do partido; os planos do Iskra em matéria de organização deviam ser consagrados nos estatutos da organização do partido. Mas é evidente que tal resultado não se podia obter sem luta: a representação integral no congresso assegurou também a presença nele de organizações que tinham combatido decididamente o Iskra (o Bund e a Rabótcheie Dielo), assim como a de organizações que, embora reconhecendo verbalmente o Iskra como órgão dirigente, prosseguiam de facto os seus próprios planos, e se distinguiam pela sua falta de firmeza no terreno dos princípios (o grupo Iújni Rabótchi e os delegados de certos comités a ele ligados). Nestas condições, o congresso não podia deixar de tornar-se um campo de luta pela vitória da orientação do «Iskra». Que o congresso foi efectivamente um campo de batalha, é um facto que aparecerá claramente para quem quer que leia com um pouco de atenção as actas. E a nossa tarefa consiste agora em estudar detalhadamente os principais agrupamentos que se revelaram no congresso a propósito de diversas questões, e reconstruir, com base nos dados precisos das actas, a fisionomia política de cada um dos grupos fundamentais do congresso. O que eram realmente esses grupos, tendências e matizes que, no congresso, sob a direcção do Iskra, deviam fundir-se num único partido? É isto que devemos mostrar com uma análise dos debates e votações. Esclarecer este ponto é de capital importância para estudar o que são na realidade os nossos sociais-democratas, assim como para compreender as causas das divergências. E por isso que, no meu discurso no congresso da Liga e na minha carta à redacção do novo Iskra, pus precisamente em primeiro plano a análise dos diferentes agrupamentos.[3 1] Os meus adversários, entre os representantes da «minoria» (com Mártov à cabeça), não compreenderam em absoluto o fundo da questão. No congresso da Liga, limitaram-se a fazer emendas de pormenor, «justificando-se» da acusação que lhes faziam de terem virado para o oportunismo, sem mesmo procurarem traçar, para me contradizerem, qualquer outro quadro dos agrupamentos no congresso. Agora, no Iskra (n.° 56), Mártov tenta apresentar todas as tentativas para delimitar com exactidão os diversos grupos políticos no congresso, como simples «politiquice de círculo». São palavras muito fortes, camarada Mártov! Mas as palavras fortes do novo Iskra têm uma propriedade original: basta reproduzir exactamente todas as peripécias da divergência a partir do congresso, para que todas essas palavras fortes se voltem inteiramente e em primeiro lugar contra a actual redacção. Olhai-vos a vós próprios senhores que vos dizeis redactores do partido, vós que levantais a questão da politiquice de círculo!
Os factos da nossa luta no congresso aborrecem agora tanto Mártov que ele tenta apagá-los completamente. «O iskrista - diz ele - é aquele que no congresso do partido e antes dele declarou que se solidariza plenamente com o Iskra, defendeu o seu programa e o seu ponto de vista em matéria de organização e apoiou a sua política neste terreno. Havia no congresso mais de quarenta destes iskristas, tantos quantos o número de votos favoráveis ao programa do Iskra e à resolução que reconhecia o Iskra como órgão central do partido.» Folheai as actas do congresso e vereis que todos (p. 233) aceitaram o programa, excepto Akímov, que se absteve. Com essas palavras, o camarada Mártov quer assegurar-nos que tanto os bundistas como Brúker e Martínov demonstraram a sua «plena solidariedade» com o Iskra e defenderam os seus pontos de vista em matéria de organização! Isto é ridículo. A transformação, depois do congresso, de todos os seus participantes em membros do partido com iguais direitos (de resto, nem todos, já que os bundistas se retiraram) confunde-se nessas palavras com a divisão em agrupamentos que provocou a luta no congresso. Em vez de estudar os elementos que depois do congresso formaram a «maioria» e a «minoria», faz-se uma frase oficial: aceitaram o programa!
Reparai na votação do reconhecimento do Iskra como Órgão Central. Vereis que Martínov, a quem agora o camarada Mártov, com audácia digna duma melhor causa, atribui a defesa das concepções e da política do Iskra em matéria de organização, é quem precisamente insiste na separação das duas partes da resolução: o reconhecimento puro e simples do Iskra como Órgão Central e o reconhecimento dos seus méritos. Quando da votação da primeira parte da resolução (reconhecimento dos méritos do Iskra, expressão de solidariedade com ele), obtiveram-se apenas 35 votos a favor, dois contra (Akímov e Brúker) e onze abstenções (Martínov, os cinco bundistas e cinco votos da redacção: os meus dois votos, os dois de Mártov e um de Plekhánov). Por consequência, o grupo dos anti-iskristas (cinco bundistas e três partidários da Rabótcheie Dielo) destaca-se com toda a clareza também aqui, neste exemplo, o mais vantajoso para o ponto de vista actual de Mártov, exemplo escolhido por ele próprio. Vede a votação da segunda parte da resolução: o reconhecimento do Iskra como Órgão Central sem se dar justificação alguma e sem exprimir solidariedade (p. 147 das actas). Houve 44 votos a favor, que o actual Mártov atribui aos iskristas.
Houve ao todo 51 votos; subtraindo as cinco abstenções dos redactores, ficam 46 votos; dois votaram contra (Akímov e Brúker); por consequência, fazem parte dos 44 restantes todos os cinco bundistas. Assim, no congresso, os bundistas «exprimiram a sua plena solidariedade com o Iskra» - eis como a história oficial é escrita pelo Iskra oficial! Antecipando-nos ao relato, expliquemos ao leitor os verdadeiros motivos desta verdade oficial: a actual redacção do Iskra poderia ser e seria de facto uma redacção do partido (e não quase-partido, como agora) se os bundistas e os partidários da «Rabótcheie Dielo» não tivessem abandonado o congresso. Por essa razão foi necessário converter em «iskristas» esses fiéis guardiões da actual redacção, que se diz do partido. Mas voltaremos a isto em pormenor um pouco mais adiante.
Põe-se em seguida a pergunta: se o congresso foi uma luta entre elementos iskristas e anti-iskristas, não haveria elementos intermédios, instáveis, que oscilassem entre uns e outros? Quem conheça um pouco o nosso partido e a fisionomia habitual de todos os congressos, inclinar-se-á a priori a responder a esta pergunta com uma afirmativa. O camarada Mártov não sente agora o mínimo desejo de se recordar desses elementos instáveis, e apresenta o grupo do Iújni Rabótchi, com os delegados que gravitam à sua volta, como iskristas típicos, e as nossas divergências com eles como insignificantes e sem importância. Felizmente, temos agora sob os olhos o texto integral das actas, e podemos portanto resolver esta questão - a questão de facto, bem entendido - na base de dados documentais. O que dissemos acima em geral sobre os agrupamentos no congresso não pretende de modo nenhum resolver este problema, mas simplesmente colocá-lo de modo correcto.
Sem uma análise dos agrupamentos políticos, sem traçar um quadro do congresso como luta entre determinados matizes, é impossível compreender as nossas discordâncias. A tentativa de Mártov de escamotear a diferença de matizes, juntando mesmo os bundistas com os iskristas, é simplesmente furtar-se à questão. Mesmo a priori, na base da história da social-democracia russa antes do congresso, desenham-se (para a sua comprovação ulterior e pormenorizado estudo) três grupos principais: os iskristas, os anti-iskristas e os elementos instáveis, vacilantes e inconstantes.
Notas
- ↑ Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 8, pp. 41-52, 98-104. (N. Ed.)
c) O Início do Congresso - O Incidente com o Comitê de Organização
O mais cómodo é fazer a análise dos debates e votações do congresso seguindo a ordem das sessões para anotar sucessivamente os matizes políticos que se desenham cada vez mais nitidamente. Só nos afastaremos da ordem cronológica em caso de absoluta necessidade, para examinar em conjunto certos problemas estritamente relacionados ou certos agrupamentos similares. Para maior imparcialidade, tentaremos anotar todas as votações principais deixando de lado, bem entendido, uma série de votações sobre questões de pormenor, que tomaram ao nosso congresso um tempo exorbitante (em parte devido à nossa inexperiência e à má distribuição dos documentos entre as reuniões de comissões e as sessões plenárias, e em parte em consequência de atrasos deliberados que raiavam a obstrução).
A primeira questão que suscitou debates que começaram a revelar os diferentes matizes foi sobre se devia ser dado o primeiro lugar (na «ordem do dia» do congresso) ao ponto seguinte: «posição do Bund no partido» (pp. 29-33 das actas). Segundo o ponto de vista dos iskristas, defendido por Plekhánov, Mártov, Trótski e por mim, não podia haver quaisquer dúvidas a este respeito. A saída do Bund mostrou de forma evidente a justeza das nossas considerações: se o Bund não queria caminhar connosco nem admitir os princípios de organização que a maioria do partido partilhava com o Iskra, era inútil e contrário ao bom senso «fingir» caminhar juntos e arrastar assim o congresso (como arrastavam os bundistas). A literatura já tinha esclarecido o problema, e era evidente para qualquer membro consciente do partido que só faltava pôr francamente a questão e escolher aberta e lealmente: autonomia (caminhamos juntos) ou federação (separamo-nos).
Evasivos em toda a sua política, também aqui os bundistas quiseram ser evasivos e adiar a questão. O camarada Akímov junta-se a eles e logo formula, provavelmente em nome de todos os partidários da Rabótcheie Dielo, as suas divergências com o Iskra no plano organizativo (p. 31 das actas). Ao lado do Bund e da Rabótcheie Dielo alinha o camarada Mákhov (dois votos do comité de Nikoláiev, que, pouco antes, se tinha declarado solidário com o Iskra!). Para o camarada Mákhov o problema não é nada claro, e para ele o «ponto nevrálgico» é também a «questão da estrutura democrática ou, pelo contrário (notai bem!), do centralismo», exactamente como para a maioria da nossa actual redacção «do partido», maioria que no congresso ainda se não tinha dado conta deste «ponto nevrálgico»!
Assim, contra os iskristas erguem-se o Bund, a Rabótcheie Dielo e o camarada Mákhov, reunindo todos juntos os dez votos que se registaram contra nós (p. 33). Houve 30 votos a favor, e, como veremos em seguida, é à volta deste número que muitas vezes oscilam os votos dos iskristas. Onze abstiveram-se, não se ligando de maneira definida, como se verifica, nem a um nem a outro dos «partidos» em luta. É interessante notar que na altura da votação sobre o § 2 dos estatutos do Bund (a rejeição do § 2 provocou a saída do Bund do partido) eram igualmente em número de dez os votos e as abstenções (p. 289 das actas); abstiveram-se precisamente os três partidários da Rabótcheie Dielo (Brúker, Martínov, Akímov) e o camarada Mákhov. É evidente que a votação sobre o lugar a reservar à questão do Bund deu origem a um agrupamento que não tinha nada de acidental. É evidente que todos estes camaradas discordavam do Iskra, não só em relação ao problema técnico da ordem da discussão, como também quanto ao fundo. No que se refere à Rabótcheie Dielo, a divergência de fundo é clara para todos, e o camarada Mákhov definiu de modo notável a sua atitude no seu discurso a propósito da saída do Bund (pp. 289-290 das actas). Vale a pena que nos detenhamos neste discurso. O camarada Mákhov diz que, depois da resolução que rejeitou a federação, «a situação do Bund no POSDR, de questão de princípio, tornou-se para ele uma questão de política real face à organização nacional historicamente constituída. Aqui - prossegue o orador - tive forçosamente que ter em conta todas as consequências que podiam advir da nossa votação e por isso teria votado a favor do § 2 na sua totalidade». O camarada Mákhov compreendeu perfeitamente o espírito da «política real»; em princípio já rejeitou a federação, e é por isso que, na prática, teria votado a favor de um ponto dos estatutos que estabelece essa mesma federação! E este camarada «prático» explica a sua estrita posição de princípio com as palavras seguintes: «Mas (o famoso «mas» de Chtchedrine!) como qualquer votação minha tinha apenas um carácter de princípio (!!) e não podia ter carácter prático, devido à votação quase unânime de todos os outros congressistas, preferi abster-me para, por princípio» ... (Deus nos livre de tal espírito de princípio!)... «fazer ressaltar a diferença da minha posição, neste caso, relativamente à posição defendida pelos delegados do Bund que votaram a favor desse ponto. Pelo contrário, teria votado a favor desse ponto se os delegados do Bund se abstivessem, assunto sobre o qual insistiram anteriormente.» Entenda quem puder! Eis um homem agarrado aos princípios que se abstém de declarar em voz alta: sim, porque isso é inútil na prática quando toda a gente diz: não.
Depois da votação sobre o lugar a reservar na ordem do dia à questão do Bund, pôs-se a questão do grupo «Borbá», que também determinou um agrupamento extremamente interessante e que estava estreitamente ligado à questão mais «delicada» do congresso: a composição pessoal dos centros. A comissão encarregada de determinar a composição do congresso pronuncia-se contra o convite do grupo «Borbá», de acordo com uma decisão do Comité de Organização repetida duas vezes (ver pp. 383 e 375 das actas) e também de acordo com o relatório dos seus representantes na comissão (p. 35).
O camarada Egórov, membro do CO, declara que «a questão do grupo «Borbá» (notai bem, do «Borbá» e não deste ou daquele dos seus membros) é nova para si», e pede a suspensão da sessão. É um mistério como é que uma questão duas vezes resolvida pelo CO podia ser nova para um dos seus membros. Durante a interrupção, o CO, com a composição que por acaso estava presente no congresso (vários membros seus, velhos membros da organização do Iskra, estavam ausentes do congresso), reúne em sessão (p. 40 das actas).[4 1] Iniciam-se os debates sobre o «Borbá»: os partidários da Rabótcheie Dielo pronunciam-se a favor (Martínov, Akímov e Brúker, pp. 36-38). Os iskristas (Pavlóvitch, Sorókine, Langue, Trótski, Mártov e outros) pronunciam-se contra. O congresso divide-se de novo, da maneira que já conhecemos. Trava-se em torno do «Borbá» uma luta obstinada, e o camarada Mártov faz um discurso particularmente circunstanciado (p. 38) e «combativo», no qual alude com razão à «desigualdade de representação» dos grupos da Rússia e dos grupos do estrangeiro, diz que não estaria muito «bem» conceder a um grupo do estrangeiro um «privilégio» (palavras de ouro, hoje particularmente instrutivas depois dos acontecimentos posteriores ao congresso!), que não se deve fomentar «no partido o caos em matéria de organização, caracterizado por uma fragmentação que não é justificada por nenhuma consideração de princípio» (em cheio... na «minoria» do congresso do nosso partido!). Além dos partidários da Rabótcheie Dielo, ninguém, até ao encerramento das inscrições de oradores, se pronunciou abertamente e com fundamento a favor do «Borbá» (p. 40). Devemos fazer justiça ao camarada Akímov e aos seus amigos, que pelo menos não tergiversaram e não se esconderam, mas prosseguiram abertamente a sua táctica e disseram abertamente o que queriam.
Depois do encerramento das inscrições de oradores, quando já ninguém se pode pronunciar sobre o fundo da questão, o camarada Egórov «pede insistentemente que se oiça a decisão que acaba de ser adoptada pelo CO». Não é de estranhar que os membros do congresso se indignem com tal 9 Quanto a esta sessão, ver a Carta de Pavlóvitch, membro do CO, que antes do congresso foi eleito por unanimidade representante autorizado da redacção, seu sétimo membro (actas da Liga, p. 44). (Nota do Autor) procedimento, e o camarada Plekhánov, na presidência, exprime «a sua perplexidade por o camarada Egórov insistir no seu pedido». Porque, segundo pareceria, das duas uma: ou se falava franca e claramente, perante todo o congresso, sobre o fundo da questão, ou então não se dizia absolutamente nada. Mas deixar encerrar as inscrições de oradores para, em seguida, a pretexto de «discurso de resumo», apresentar ao congresso uma nova resolução do CO, precisamente sobre a questão que se acaba de debater, é uma verdadeira punhalada nas costas!
A sessão recomeçou depois do almoço, e o bureau, que continua perplexo, decide renunciar ao «formalismo» e recorrer a um último recurso, de que os congressos se servem apenas em última instância: uma «explicação amigável». Popov, representante do CO, lê a decisão do CO adoptada por todos os seus membros, excepto um, Pavlóvitch (p. 43), propondo ao Congresso que convide Riazánov.
Pavlóvitch declara que negou e continua a negar a legitimidade da reunião do CO e que a nova decisão do CO «contradiz a sua decisão anterior». Esta declaração desencadeia uma verdadeira tempestade. O camarada Egórov, igualmente membro do CO e do grupo Iújni Rabótchi, evita responder sobre o fundo da questão e tenta transferir o centro de gravidade para a questão da disciplina. O camarada Pavlóvitch, diz, infringiu a disciplina do partido(!), visto que o CO, depois de ter examinado o seu protesto, tinha decidido «não dar conhecimento ao congresso da opinião pessoal de Pavlóvitch». Os debates desviam-se para a disciplina do partido. E Plekhánov, entre ruidosos aplausos do congresso, explica em forma didáctica ao camarada Egórov: «Nós não temos mandatos imperativos» (p. 42, cfr. p. 379, regulamento do congresso, § 7: «Os plenos poderes dos delegados não devem ser limitados por mandatos imperativos. No exercício dos seus plenos poderes são completamente livres e independentes»). «O congresso é a instância suprema do partido», e por isso infringe a disciplina do partido e o regulamento do congresso precisamente quem, de qualquer maneira, impede um delegado de se dirigir directamente ao congresso sobre todas as questões da vida do partido, sem qualquer excepção. A controvérsia reduz--se por consequência ao dilema: espírito de círculo ou espírito de partido? Limitação dos direitos dos delegados no congresso, em nome de direitos ou de regulamentos imaginários de quaisquer organismos e círculos, ou dissolução completa, não só em palavras, mas de facto, perante o congresso, de todas as instâncias inferiores e antigos pequenos grupos, até que se criem verdadeiros organismos oficiais do partido. O leitor já pode ver por aqui a imensa importância de princípio desta discussão no próprio início (terceira sessão) de um congresso que se propunha restaurar de facto o partido. Neste debate se concentrou, por assim dizer, o conflito entre os antigos círculos e pequenos grupos (no género do Iújni Rabótchi) e o partido que renascia. E os grupos anti-iskristas manifestam-se imediatamente: o bundista Abramson, o camarada Martínov, ardente aliado da actual redacção do Iskra e nosso velho conhecido, o camarada Mákhov, que também conhecemos, todos se manifestam a favor de Egórov e do grupo do Iújni Rabótchi e contra Pavlóvitch. O camarada Martínov, que hoje, à porfia com Mártov e Axelrod, faz gala de «democracia» em matéria de organização, evoca mesmo... o exército, onde só se pode apelar para uma instância superior por intermédio da inferior! O verdadeiro sentido desta «compacta» oposição anti-iskrista era evidente para todos os que assistiam ao congresso ou que tinham seguido com atenção a vida interna do nosso partido antes do congresso. O objectivo da oposição (objectivo de que nem todos os membros tinham talvez consciência e que por vezes defendiam por inércia) era defender a independência, o particularismo, os interesses de capelinha dos pequenos grupos para que não sejam tragados por um amplo partido, que vinha sendo estruturado na base dos princípios iskristas.
Foi também deste ponto de vista que o camarada Mártov, que então ainda não se tinha unido a Martínov, abordou a questão. O camarada Mártov ataca decididamente, e com razão, os que «na sua concepção de disciplina de partido não vão além das obrigações do revolucionário para com o grupo de ordem inferior de que é membro». «Nenhum agrupamento por imposição (o itálico é de Mártov) é admissível num partido unificado», explica Mártov aos defensores do espírito de círculo, sem prever que com estas palavras fustiga a sua própria actuação política nas últimas sessões do congresso e depois dele... O agrupamento por imposição é inadmissível para o CO, mas perfeitamente admissível para a redacção. O agrupamento por imposição é condenado por Mártov quando o vê do centro, mas é defendido por Mártov quando deixa de lhe satisfazer a composição deste centro…
É interessante notar que o camarada Mártov, no seu discurso, sublinhou expressamente, para além do «enorme erro» do camarada Egórov, a instabilidade política manifestada pelo CO. «Em nome do CO - indigna-se Mártov com razão - foi apresentada uma proposta que contradiz o relatório da comissão (baseado, acrescentamos nós, no relatório dos membros do CO: p. 43, palavras de Koltsov) e as propostas anteriores do CO» (sublinhado meu). Como vedes, Mártov compreendia então muito bem, antes de efectuar a sua «viragem», que a substituição do grupo «Borbá» por Riazánov em nada retira o carácter absolutamente contraditório e hesitante da actividade do CO (as actas do congresso da Liga, p. 57, podem informar os membros do partido do modo como as coisas se apresentavam a Mártov depois da sua viragem). Mártov não se limitou então a analisar a questão da disciplina; também perguntou claramente ao CO: «Que aconteceu de novo para ser necessária uma reformulação?» (sublinhado meu). Porque, de facto, o CO, ao fazer a sua proposta, nem sequer teve a coragem suficiente para defender abertamente a sua opinião, como fizeram Akímov e outros. Mártov refuta-o (actas da Liga, p. 56), mas quem ler as actas do congresso verá que ele se engana. Popov, que faz uma proposta em nome do CO, não diz uma só palavra dos motivos (p. 41 das actas do congresso do partido). Egórov desloca a questão para o ponto da disciplina, mas quanto à essência ele só afirma: «O CO podia ter tido novas razões»... (mas se surgiram e quais é o que se ignora)... «podia talvez ter-se esquecido de inscrever alguém, etc.» (Este «etc.» é a única salvação do orador, porque o CO não podia ter esquecido a questão do «Borbá», já discutida por ele duas vezes antes do congresso e uma vez na comissão.) «O CO tomou esta decisão não porque a sua atitude para com o grupo «Borba» tenha mudado, mas porque quer suprimir escolhos inúteis do caminho da futura organização central do partido desde os primeiros passos da sua actividade.» Isto não é apresentar uma razão, mas eludir uma razão. Todo o social-democrata sincero (e não pomos em causa a sinceridade de nenhum dos delegados ao congresso) tem o cuidado de suprimir tudo o que considera um escolho, e suprimi-lo com os meios que considera adequados. Apresentar razões é explicar e formular com precisão a sua opinião sobre as coisas em lugar de se esquivar por um truísmo. E teria sido impossível apresentar razões «sem mudar de atitude para com o «Borbá», porque as anteriores decisões contraditórias do CO tinham igualmente tido o cuidado de suprimir escolhos, mas viam esses «escolhos» precisamente na posição contrária. O camarada Mártov atacou então com grande violência e muita razão este argumento, que qualificou de «mesquinho» e devido ao desejo de «se esquivar», aconselhando o CO a «não temer o que os outros dirão». Com estas palavras o camarada Mártov caracterizou maravilhosamente o fundo e o significado do matiz político que, no congresso, desempenhou um importante papel e que se distingue justamente pela sua falta de independência e pela sua mesquinhez, pela ausência de uma linha própria e pelo receio do que dirão os outros, pelas eternas oscilações entre duas partes claramente determinadas, pelo medo de expor abertamente o seu credo, numa palavra, por todas as características do «pântano».[4 2] Esta falta de carácter em política do grupo instável levou, entre outras coisas, a que ninguém, excepto o bundista Iúdine (p. 53), fizesse uma proposta ao congresso para convidar um membro do grupo «Borbá». Houve 5 votos a favor da proposta de Iúdine, evidentemente todos bundistas: os elementos hesitantes mais uma vez viraram a casaca! Qual era, mais ou menos, o número de votantes do grupo do centro, mostram-no as votações das propostas de Koltsov e Iúdine sobre este ponto: a do iskrista obteve 32 votos (p. 47); a do bundista 16, ou seja, além dos oito votos anti- iskristas, os dois votos do camarada Mákhov (cfr. p. 46), os quatro votos do grupo Iújni Rabótchi e mais dois votos. Mostraremos em seguida que não poderíamos considerar acidental esta distribuição, mas primeiro exporemos sumariamente a opinião actual de Mártov sobre este incidente do CO. Mártov afirmou perante a Liga que «Pavlóvitch e os outros atiçaram as paixões». Basta consultar as actas do congresso para ver que os discursos mais circunstanciados, mais ardentes e mais duros contra o «Borbá» e o CO são os do próprio Mártov. Tentando empurrar o «erro» para Pavlóvitch, só dá provas de instabilidade: antes do congresso tinha precisamente escolhido Pavlóvitch como sétimo membro da redacção; no congresso juntou-se inteiramente a Pavlóvitch (p. 44) contra Egórov. Depois, quando se viu derrotado por Pavlóvitch, acusou-o de «atiçar as paixões». É simplesmente ridículo.
No Iskra (n° 56) Mártov faz ironia por se atribuir grande importância ao convite de X ou de Y. De novo esta ironia se volta contra Mártov, porque o incidente com o CO serviu precisamente de ponto de partida aos debates sobre uma questão tão «importante» como o convite de X ou de Y para fazer parte do CC e do OC. Não está certo empregar-se duas medidas diferentes segundo se trate do seu próprio «grupo de ordem inferior» (em relação ao partido) ou de qualquer outro. Isto é precisamente espírito filistino e espírito de círculo, e não uma atitude de partido. Um simples confronto entre o discurso de Mártov perante a Liga (p. 57) e o seu discurso no congresso (p. 44) prova-o inteiramente. «Não compreendo - dizia Mártov entre outras coisas na Liga - como as pessoas arranjam maneira de se dizerem a qualquer preço iskristas e ao mesmo tempo mostrarem-se envergonhadas de o ser.» Estranha incompreensão da diferença entre o «dizer-se» e o «ser», entre a palavra e a acção. No congresso, Mártov disse-se a si próprio adversário dos agrupamentos por imposição, mas foi partidário deles depois do congresso…
Notas
- ↑ Quanto a esta sessão, ver a Carta de Pavlóvitch, membro do CO, que antes do congresso foi eleito por unanimidade representante autorizado da redacção, seu sétimo membro (actas da Liga, p. 44). (Nota do Autor)
- ↑ Há actualmente pessoas no partido que, ao ouvir esta palavra, se horrorizam e se queixam que nesta polémica falta o espírito de camaradagem. É uma deturpação estranha da sensibilidade sob a influência do tom oficial... usado inoportunamente! Quase não há partido político com luta interna que dispense este termo, com o qual são designados os elementos hesitantes que oscilam entre os que lutam. E os alemães, que sabem manter a luta interna num quadro perfeitamente comedido, não se ofendem por motivo da palavra versumpft (enterrado no pântano - N. Ed.) e não se horrorizam, não manifestam uma cómica pruderie (pudor hipócrita - N. Ed.) oficial (Nota do Autor).
d) DISSOLUÇÃO DO GRUPO «IÚJNI RABÓTCHI»
A forma como se dividiram os delegados sobre a questão do CO poderá parecer fortuita. Mas tal opinião seria errada; para a dissipar, afastar-nos-emos da ordem cronológica e examinaremos imediatamente um incidente que, embora tenha acontecido no fim do congresso, está estreitamente ligado ao precedente. Este incidente é a dissolução do grupo Iújni Rabótchi. Contra as tendências iskristas em matéria de organização - coesão absoluta das forças do partido e supressão do caos que as fracciona - levantaram-se aqui os interesses de um dos grupos, que, enquanto não havia um verdadeiro partido, tinha feito um trabalho útil, mas que se tornou supérfluo depois de se ter organizado o trabalho de modo centralizado. Em nome dos interesses de círculo, o grupo Iújni Rabótchi tinha tanto direito de conservar a sua «continuidade» e inviolabilidade como a antiga redacção do Iskra. Em nome dos interesses do partido, este grupo devia submeter-se à transferência das suas forças «para as organizações correspondentes do partido» (p. 313, final da resolução adoptada pelo congresso). Do ponto de vista dos interesses de círculo, do ponto de vista «filistino», não podia deixar de parecer «coisa delicada» (expressão dos camaradas Rússov e Deutsch) a dissolução de um grupo útil, que tinha tão pouca vontade de se deixar dissolver como a antiga redacção do Iskra. Do ponto de vista dos interesses do partido, era indispensável esta dissolução, esta «absorção» (expressão de Gússev) pelo partido. O grupo Iújni Rabótchi declarou abertamente que «não considerava necessário» proclamar-se dissolvido e exigia que «o congresso se pronunciasse categoricamente» e «imediatamente: sim ou não». O grupo Iújni Rabótchi invocou a mesma «continuidade» para a qual apelara a velha redacção do Iskra... depois da sua dissolução! «Ainda que todos nós, individualmente considerados, constituamos um único partido - disse o camarada Egórov -, nem por isso esse partido deixa de ser composto por toda uma série de organizações, as quais se deve ter em conta como grandezas históricas... Se tal organização não é prejudicial ao partido, não há por que dissolvê-la.»
Assim se pôs de forma perfeitamente definida uma importante questão de princípio, e todos os iskristas - enquanto os interesses do seu próprio círculo não vieram para primeiro plano - se pronunciaram categoricamente contra os elementos instáveis (nesse momento, os bundistas e dois dos partidários da Rabótcheie Dielo já não estavam no congresso; seguramente que teriam defendido com a máxima energia a necessidade de «ter em conta as grandezas históricas»). Os resultados da votação foram 31 a favor, cinco contra e cinco abstenções (os quatro votos dos membros do grupo Iújni Rabótchi, e mais um voto, provavelmente o de Belov, a julgar pelas suas anteriores declarações, p. 308). Um grupo de dez votos, francamente hostil ao plano de organização consequente do Iskra e defendendo o espírito de círculo contra o espírito de partido, desenha-se muito claramente. Durante os debates, os iskristas põem esta questão justamente no plano dos princípios (ver o discurso de Langue, p. 315), pronunciam-se contra o trabalho artesanal e a dispersão, recusam-se a ter em conta as «simpatias» desta ou aquela organização, e declaram abertamente: «Se há um ou dois anos ainda os camaradas do Iújni Rabótchi se tivessem identificado mais estritamente com os princípios, a unidade do partido e o triunfo dos princípios do programa que aqui sancionámos teriam sido conseguidos mais cedo.» Dentro do mesmo espírito pronunciam- se Orlov, Gússev, Liádov, Muraviov, Rússov, Pavlóvitch, Glébov e Górine. Os iskristas da «minoria» não só se não manifestam contra estas advertências precisas várias vezes apresentadas no congresso contra a falta de firmeza de princípios da política e da «linha» do Iújni Rabótchi, de Mákhov e outros; não só não fazem a mínima reserva acerca deste assunto, como pelo contrário, pela boca de Deutsch decididamente se lhe associam, condenando o «caos» e aplaudindo «a franqueza com que a questão tinha sido posta» (p. 315) pelo próprio camarada Rússov, que naquela mesma sessão teve a audácia - que horror! - de também «pôr francamente» a questão da antiga redacção puramente numa base de partido (p. 325).
A questão da dissolução do Iújni Rabótchi provocou neste grupo uma terrível indignação, da qual se encontram marcas nas actas (não devemos esquecer que as actas dão apenas uma pálida imagem dos debates, porque em vez de discursos completos, apresentam apenas breves resumos ou excertos). O camarada Egórov chegou mesmo a qualificar de «mentira» a simples menção do grupo Rabótchaia Misl ao lado do Iújni Rabótchi, exemplo característico da atitude que predominava no congresso para com o economismo consequente. E mesmo muito mais tarde, na 37ª sessão, Egórov fala da dissolução do Iújni Rabótchi com a mais viva irritação (p. 356), pedindo que se escreva nas actas que, durante os debates sobre o Iújni Rabótchi, os membros deste grupo não foram consultados, nem sobre os meios a destinar às suas publicações, nem sobre o controlo do OC e do CC. O camarada Popov, durante os debates a propósito do Iújni Rabótchi, faz alusão à maioria compacta que teria decidido antecipadamente do destino deste grupo. «Agora - diz ele (p. 316) -, depois dos discursos dos camaradas Gússev e Orlov, tudo está claro.» É evidente o sentido destas palavras: agora que os iskristas se pronunciaram e apresentaram uma resolução, tudo está claro, isto é, está claro que o Iújni Rabótchi será dissolvido contra sua vontade. O próprio delegado do Iújni Rabótchi separa aqui os iskristas (e, além disso, iskristas como Gússev e Orlov) dos seus partidários, como sendo representantes de «linhas» diferentes de política de organização. E quando o actual Iskra apresenta o grupo Iújni Rabótchi (e também, provavelmente, Mákhov?) como «iskristas típicos», isso só nos mostra com precisão o esquecimento dos acontecimentos mais importantes (do ponto de vista desse grupo) do congresso, e o desejo da nova redacção de apagar os indícios que assinalam os elementos que serviram de origem à chamada «minoria».
Infelizmente, a questão de um órgão popular não foi levantada no congresso. Todos os iskristas debateram esta questão com extraordinária animação antes e durante o congresso, fora das sessões, concordando que, no momento actual da vida no nosso partido, lançar ombros à publicação de um tal órgão, ou dar este carácter a um dos já existentes, seria empresa extremamente irracional. Os anti-iskristas pronunciaram-se no congresso em sentido contrário, o grupo Iújni Rabótchi fez o mesmo no seu relatório. E não se pode explicar, a não ser por obra do acaso ou pela recusa em levantar uma questão «sem esperança», que não se tenha apresentado uma resolução adequada subscrita por dez pessoas.
e) O INCIDENTE DA IGUALDADE DE DIREITOS DAS LÍNGUAS
Retomemos a ordem das sessões do congresso.
Pudemos convencer-nos agora que antes mesmo do exame a fundo das questões se revelou claramente no congresso, não só um grupo perfeitamente definido de anti-iskristas (8 votos), mas também um grupo de elementos intermédios, instáveis, prontos a apoiar esses oito e a aumentar o seu número para cerca de 16-18 votos.
A questão do lugar do Bund no partido, debatida no congresso com extremo, com excessivo pormenor, reduziu-se à discussão de uma tese de princípio, adiando-se a resolução prática até à discussão das relações de organização. Visto que já antes do congresso se tinha consagrado bastante espaço na literatura ao estudo dos temas referentes a este ponto, a discussão no congresso trouxe relativamente pouco de novo. Todavia, não podemos deixar de assinalar que os partidários da Rabótcheie Dielo (Martínov, Akímov e Brúker), embora concordando com a resolução de Mártov, puseram a reserva de que a consideravam insuficiente, e que não estavam de acordo com as conclusões dela decorrentes (pp. 69, 73, 83, 86).
Depois de discutir a questão do lugar do Bund, o congresso passou à questão do programa. Aqui, os debates desenvolveram-se principalmente à volta de emendas de pormenor sem grande interesse. No que respeita aos princípios, a oposição dos anti-iskristas só se manifestou na cruzada do camarada Martínov contra a famosa apresentação da questão da espontaneidade e da consciência. Naturalmente, os bundistas e os partidários da Rabótcheie Dielo declararam-se inteiramente a favor de Martínov. A inconsistência das suas objecções foi demonstrada, entre outros, por Mártov e Plekhánov. A título de curiosidade, indicaremos que, hoje, a redacção do Iskra (aparentemente depois de reflectir) passou para o lado de Martínov e diz o contrário do que dizia no congresso![6 1] Provavelmente isto está de acordo com o famoso princípio da «continuidade» ... Só nos resta esperar que a redacção acabe por orientar-se e nos explique em que medida precisamente está de acordo com Martínov, exactamente em quê e desde quando. Entretanto, limitar-nos-emos a perguntar se já alguma vez se viu um órgão de partido cuja redacção, depois de um congresso, se tenha posto a dizer o contrário do que dizia no congresso?
Deixando de lado os debates sobre o reconhecimento do Iskra como Órgão Central (já falámos disso mais atrás) e o início dos debates sobre os estatutos (de que será mais conveniente tratar quando do exame de conjunto dos estatutos), passemos aos matizes de princípio surgidos na discussão do programa. Em primeiro lugar sublinhemos um pormenor extraordinariamente característico: os debates sobre a representação proporcional. O camarada Egórov, do Iújni Rabótchi, propunha a sua introdução no programa e defendeu o seu ponto de vista de tal maneira que deu azo à justa observação de Possadóvski (iskrista da minoria) sobre a existência de um «sério desacordo». «É indubitável - declarou o camarada Possadóvski - que não estamos de acordo sobre a seguinte questão fundamental: dever-se-á subordinar a nossa política futura a certos princípios democráticos fundamentais atribuindo-lhes um valor absoluto, ou deverão todos os princípios democráticos subordinar-se exclusivamente aos interesses do nosso partido? Pronuncio-me decididamente a favor desta última opinião.» Plekhánov «solidariza-se inteiramente» com Possadóvski, exprimindo-se em termos ainda mais precisos e enérgicos contra «o valor absoluto dos princípios democráticos» e contra a sua interpretação «abstracta». «É concebível em hipótese um caso - diz - em que nós, sociais-democratas, nos pronunciemos contra o sufrágio universal. Houve tempo em que a burguesia das repúblicas italianas privava os indivíduos pertencentes à nobreza dos seus direitos políticos. O proletariado revolucionário poderia limitar os direitos políticos das classes superiores, tal como estas antes limitaram os seus direitos políticos.» O discurso de Plekhánov é recebido com aplausos e vaias, e quando Plekhánov protesta contra o Zwischenruf[6 2]: «Não deveis vaiar», e pede aos camaradas que não se coíbam, o camarada Egórov levanta-se e diz: «Quando tais discursos são aplaudidos, sou obrigado a vaiá-los.» Juntamente com o camarada Goldblat (delegado do Bund), o camarada Egórov pronuncia-se contra as opiniões de Possadóvski e de Plekhánov. Infelizmente o debate foi encerrado e a questão levantada durante ele não voltou a ser tratada. Mas em vão o camarada Mártov se esforça agora por minimizar e até anular o seu significado, dizendo no congresso da Liga: «Estas palavras (de Plekhánov) provocaram a indignação duma parte dos delegados, indignação que facilmente se poderia ter evitado se o camarada Plekhánov tivesse acrescentado que, evidentemente, não se pode imaginar uma situação tão trágica em que o proletariado, para consolidar a sua vitória, tenha de espezinhar direitos políticos como a liberdade de imprensa... (Plekhánov: «merci»)» (p. 58 das actas da Liga). Esta interpretação contradiz frontalmente a declaração absolutamente categórica do camarada Possadóvski no congresso acerca do «sério desacordo» e da divergência sobre uma «questão fundamental». Sobre esta questão fundamental, todos os iskristas se pronunciaram no congresso contra os representantes da «direita» anti-iskrista (Goldblat) e do «centro» do congresso (Egórov). Isto é um facto, e podemos garantir sem hesitações que, se o «centro» (espero que esta palavra choque menos que qualquer outra os partidários «oficiais» da suavidade...), se o «centro» tivesse que (através do camarada Egórov ou Mákhov) pronunciar-se «sem constrangimento» sobre esta questão ou questões análogas, um sério desacordo teria surgido imediatamente.
As divergências manifestaram-se, ainda mais nitidamente acerca da questão da «igualdade de direitos das línguas» (p. 171 e seguintes das actas). Sobre este ponto os debates são menos eloquentes que as votações: feitas as contas, temos um inacreditável número de dezasseis! E isto para quê? Para saber se bastava assinalar no programa a igualdade de todos os cidadãos, independentemente do sexo, etc., e da língua, ou se era preciso dizer: «liberdade de língua» ou «igualdade de direitos das línguas». No congresso da Liga, o camarada Mártov caracterizou bastante acertadamente este episódio, quando disse que «uma discussão insignificante sobre a redacção de um ponto do programa adquiriu um significado de princípio porque metade do congresso estava pronta a derrubar a comissão do programa». Exactamente.[6 3] O motivo do conflito era realmente insignificante; não obstante, este tomou um verdadeiro carácter de princípio e consequentemente formas terrivelmente encarniçadas, até à tentativa de «derrubar» a comissão do programa, até à suspeita de se querer «prejudicar o congresso» (Egórov suspeitava isto de Mártov!) e até a trocar observações pessoais do carácter mais... injurioso (p. 178). Até o camarada Popov «lamentou que, a propósito de ninharias, se criasse uma tal atmosfera» (sublinhado por mim, p. 182), que reinou durante três sessões (16ª, 17ª e 18ª).
Todas estas expressões demonstram, da forma mais precisa e categórica, o facto importantíssimo de que a atmosfera de «suspeita» e das formas mais encarniçadas de luta («derrubar») - cuja origem, mais tarde, no congresso da Liga, foi imputada à maioria dos iskristas! - existia na realidade muito antes de nos termos cindido em maioria e minoria. Repito que é um facto de enorme importância, um facto essencial, cuja incompreensão leva muita e muita gente, do modo mais leviano, a julgar artificial o carácter da maioria no fim do congresso. Do actual ponto de vista do camarada Mártov, que afirma que havia no congresso 9/10 de iskristas, é absolutamente inexplicável e absurdo que, por «ninharias», por uma causa «insignificante», tenha surgido um conflito que tomou um «carácter de princípio» e que quase levou ao derrubamento da comissão do congresso. Seria ridículo desembaraçar-se deste facto com queixas e lamentações a propósito de piadas «prejudiciais». O conflito não podia tomar um significado de princípio pela violência de qualquer piada, esse significado só podia advir do carácter dos agrupamentos políticos no congresso. Não foram as asperezas nem as piadas que provocaram o conflito - elas foram apenas um sintoma do facto de existirem «contradições» no seio do agrupamento político do congresso, de nele existirem todos os germes de um conflito, uma heterogeneidade interna que, com uma força imanente, surgia ao menor pretexto, mesmo insignificante.
Pelo contrário, do ponto de vista de que encaro o congresso, e que considero meu dever defender como uma determinada interpretação política dos acontecimentos, ainda que tal interpretação possa parecer chocante a alguns, desse ponto de vista é perfeitamente explicável e inevitável o conflito extremamente violento com carácter de princípio surgido por um motivo «insignificante». Visto que durante o congresso a luta entre iskristas e anti-iskristas foi constante, visto que entre ambos se encontravam elementos instáveis e estes, juntamente com os anti-iskristas, representavam um terço dos votos (8+10=18, em 51, segundo o meu cálculo, evidentemente aproximado), é inteiramente compreensível e natural que qualquer separação dos iskristas, ainda que duma fraca minoria, podia dar a vitória à tendência anti-iskrista, e suscitava por consequência uma luta «furiosa». Isto não resulta de interpelações e ataques desmesuradamente violentos, mas é o resultado duma certa combinação política. Não foram as interpelações ásperas que provocaram o conflito político, foi a existência dum conflito político no próprio agrupamento do congresso que provocou as interpelações ásperas e os ataques; é nesta oposição que reside a nossa fundamental divergência de princípio com Mártov quanto à apreciação da importância política do congresso e dos seus resultados.
O congresso registou três exemplos particularmente salientes de separação dum número insignificante de iskristas da sua maioria - a igualdade de direitos das línguas, o §1 dos estatutos e as eleições - e em cada um dos três casos se travou uma luta encarniçada que, finalmente, levou à grave crise actual do partido. Para compreender o sentido político desta crise e desta luta não nos podemos limitar a frases sobre piadas inadmissíveis, temos de examinar os agrupamentos políticos dos matizes que se defrontaram no congresso. O incidente sobre a «igualdade de direitos das línguas» oferece, por consequência, um duplo interesse, na medida em que explica as razões da divergência, porque aqui Mártov ainda era (ainda era!) um iskrista e combatia, talvez mais do que ninguém, os anti-iskristas e o «centro».
A guerra começou com uma discussão entre o camarada Mártov e o líder dos bundistas, o camarada Líber (pp. 171-172). Mártov demonstra que a reivindicação da «igualdade de direitos dos cidadãos» é suficiente. A «liberdade das línguas» é rejeitada, mas a «igualdade de direitos das línguas» é imediatamente proposta, e o camarada Egórov lança-se ao combate na companhia de Líber. Mártov declara que se trata de feiticismo «quando os oradores insistem na igualdade de direitos das nacionalidades e transferem a desigualdade para o domínio da língua. Mas a questão deve ser analisada de um ângulo oposto: existe uma desigualdade de direitos entre as nacionalidades, a qual se exprime, entre outras coisas, pelo facto de as pessoas duma certa nacionalidade serem privadas do direito de usar a sua língua materna» (p. 172). Mártov tinha então inteira razão. Era com efeito uma espécie de feiticismo a tentativa absolutamente inconsistente de Líber e Egórov de defender a justeza da sua fórmula e considerar que nós não queríamos ou não sabíamos aplicar o princípio da igualdade de direitos das nacionalidades. Na realidade, como «feiticistas» defendiam precisamente uma palavra e não um princípio; agiam não por medo de qualquer erro de princípio, mas por medo do que dissessem os outros. É esta psicologia da instabilidade (e se «os outros» nos acusassem disto?) - assinalada por nós durante o incidente do Comité de Organização - que manifestou claramente neste caso todo o nosso «centro». Outro dos seus representantes, Lvov, delegado da região mineira, próximo do grupo Iújni Rabótchi, «considera que a questão relativa à opressão das línguas, apresentada pelas regiões periféricas, é muito séria. É importante que, incluindo no nosso programa um ponto referente à língua, nós afastemos qualquer suspeita de russificação, que poderia recair sobre os sociais-democratas». Eis uma notável fundamentação da «seriedade» da questão. A questão é muito séria porque é preciso afastar as eventuais suspeitas das regiões periféricas! O orador não diz absolutamente nada quanto ao fundo da questão, não responde às acusações de feiticismo, mas confirma-as inteiramente, dando provas duma total falta de argumentos, limitando- se a falar do que poderiam dizer as regiões periféricas. Tudo o que possam dizer é falso, replicam- lhe. Mas em vez de procurar saber se é ou não verdade, responde: «Poderiam suspeitar.» Uma tal maneira de pôr o problema, atribuindo-lhe um carácter sério e importante, toma realmente um significado de princípio, mas de modo nenhum o que queriam descobrir nele os Líber, os Egórov e os Lvov. O que assume um carácter de princípio é saber se devemos deixar as organizações e membros do partido aplicar os princípios gerais e essenciais do programa, tendo em conta as condições concretas e desenvolvendo-os no sentido dessa aplicação, ou se devemos, por simples medo das suspeitas, encher o programa de pormenores insignificantes, de indicações particulares, de repetições, de casuística. O que tem carácter de princípio é saber como podem sociais-democratas, na luta com a casuística, discernir («suspeitar») tentativas de restrição dos direitos e liberdades democráticas elementares. Quando renunciaremos enfim a esse culto feiticista da casuística? - esta a ideia que nos surgiu quando da luta sobre as «línguas».
O agrupamento dos delegados nesta luta é especialmente claro graças à abundância de votações nominais. Houve três. Contra o núcleo iskrista erguem-se unânime e constantemente os anti- iskristas (8 votos) e, com muito ligeiras flutuações, todo o centro (Mákhov, Lvov, Egórov, Popov, Medvédev, Ivanov, Tsariov, Belov; só os dois últimos hesitaram a princípio, ora abstendo-se, ora votando connosco, e só à terceira votação tomaram uma posição definitiva). Uma parte dos iskristas separa-se, sobretudo os caucasianos (três, com seis votos), e devido a isto a tendência «feiticista» ganha finalmente o predomínio. Na terceira votação, quando os partidários de ambas as tendências tinham definido bem as suas posições, três caucasianos com seis votos separaram-se dos iskristas da maioria para se juntarem ao campo oposto; dois com dois votos, Possadóvski e Kóstitch, abandonam os iskristas da minoria. Nas duas primeiras votações tinham passado para o campo contrário ou tinham-se abstido: Lénski, Stepánov e Górski da maioria iskrista, e Deutsch da minoria. A separação de oito votos iskristas (num total de 33) deu a superioridade à coligação dos anti-iskristas e elementos instáveis. É este precisamente o facto essencial quanto aos agrupamentos no congresso, facto que se repetiu (mas só com a separação de outros iskristas) na votação do §1 dos estatutos e nas eleições. Não é de admirar que aqueles que foram derrotados nas eleições fechem agora cuidadosamente os olhos às razões políticas desta derrota, aos pontos de partida da luta de matizes, que cada vez mais revelava e desmascarava cada vez mais implacavelmente perante o partido os elementos instáveis e politicamente pouco firmes. O incidente da igualdade de direitos das línguas mostra-nos esta luta com tanto mais relevo quanto então o camarada Mártov não tinha ainda merecido os louvores e a aprovação de Akímov e Mákhov.
Notas
- ↑ A redacção do Iskra menchevique inseriu no suplemento do n° 57 do Iskra, de 15 de Janeiro de 1904, o artigo do ex-«economista» A. Martínov, no qual o autor se pronuciava contra os princípios dos bolcheviques no campo da organização e fazia ataques a V. I. Lénine. Numa nota ao artigo de Martínov, a redacção do Iskra, tendo declarado formalmente não estar de acordo com algumas ideias do autor, em geral aprovou este artigo e concordou com as teses principais de Martínov.
- ↑ Àparte durante o discurso de um orador. (N. Ed.)
- ↑ Mártov acrescenta: «Neste caso Plekhánov causou-nos um grande dano com a sua piada sobre os burros» (quando se tratava da liberdade da língua, um bundista, parece-me, mencionou no número das instituições as coudelarias, e Plekhánov disse em aparte «os cavalos não falam, mas os burros às vezes fazem-no»). Evidentemente não posso ver nesta piada uma especial suavidade, espírito conciliador, prudência, flexibilidade. No entanto, acho estranho que Mártov, embora reconhecendo o significado de princípio do debate, não se detenha de modo nenhum no exame daquilo em que reside o espírito de princípio e que matizes encontraram aqui expressão; limita-se a assinalar o «dano» das piadas. Este é, de facto, um ponto de vista burocrático e formalista! As piadas mordazes, com efeito, «causaram um grande dano no congresso», não só as que visavam os bundistas, mas também as relativas às pessoas que os bundistas tinham por vezes apoiado ou até salvado da derrota. Mas, uma vez reconhecido o significado de princípio deste incidente, não nos podemos limitar a frases sobre a «inadmissibilidade» (p. 58 das actas da Liga) de certas piadas. (Nota do Autor)