Biblioteca:A ideologia alemã

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A ideologia alemã
Escrito porKarl Marx and Friedrich Engels
Escrito emAbril or começo de maio de 1846
Publicado 1ª vez1932
TipoLivro


Feuerbach. Oposição das concepções materialista e idealista

Segundo anunciam ideólogos alemães, a Alemanha passou nos últimos anos por uma revolução sem paralelo. O processo de decomposição do sistema de Hegel, iniciado com Strauss,[1 1] transformou-se numa fermentação universal para a qual são arrastados todos os "poderes do passado". No caos geral, poderosos impérios se formaram para logo de novo ruírem, emergiram momentaneamente heróis para serem de novo remetidos para a obscuridade por rivais ousados e mais poderosos. Foi uma revolução ao pé da qual a Revolução Francesa é uma brincadeira de crianças; uma luta universal face à qual as lutas dos Diádocos[1 2] aparecem mesquinhas. Os princípios expulsaram-se uns aos outros, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos outros com uma pressa inaudita, e nos três anos entre 1842 e 1845 varreu-se mais do passado na Alemanha do que anteriormente em três séculos.

Tudo isto teria ocorrido no pensamento puro.

Trata-se, por certo, de um acontecimento interessante: do processo de putrescência do espírito absoluto. Depois de extinta a última centelha de vida, as várias partes constitutivas deste caput mortuum[1 3] entraram em decomposição, estabeleceram novas combinações e formaram novas substâncias. Os industriais da filosofia, que até aí tinham vivido da exploração do espírito absoluto, lançaram-se agora sobre as novas combinações. Cada um procedeu, com o maior zelo possível, à venda ao desbarato do quinhão que lhe coubera. Isto não podia sair bem sem concorrência. Esta foi inicialmente conduzida de um modo bastante burguês e respeitável. Mais tarde, quando o mercado alemão estava saturado e a mercadoria, a despeito de todos os esforços, não encontrava acolhimento no mercado mundial, o negócio foi estragado à maneira habitual na Alemanha - pela produção em grande escala e fictícia, pela deterioração da qualidade, pela adulteração da matéria-prima, pela falsificação dos rótulos, por compras fictícias, por vigarices no saque de letras e por um sistema de crédito destituído de qualquer base real. A concorrência acabou numa luta encarniçada que agora nos é exaltada e apresentada como uma mudança de importância histórica, como geradora dos resultados e conquistas mais prodigiosos.

Para apreciar correctamente esta charlatanice filosófica, que até no peito do cidadão alemão honesto desperta um grato sentimento nacional, para dar bem a ideia da mesquinhez, da tacanhez provinciana de todo este movimento jovem-hegeliano, nomeadamente do contraste tragicómico entre os verdadeiros feitos destes heróis e as ilusões sobre esses feitos, é necessário observar todo o espectáculo de um ponto de vista exterior à Alemanha.

A ideologia em geral, nomeadamente a alemã

A crítica alemã não abandonou, até aos seus esforços mais recentes, o terreno da filosofia. Longe de examinar as suas premissas filosóficas gerais, as suas questões saíram todas do terreno de um sistema filosófico determinado, o de Hegel. Não apenas nas suas respostas, mas já nas próprias questões estava uma mistificação. Esta dependência de Hegel é a razão pela qual nenhum destes críticos mais recentes tentou sequer uma crítica ampla do sistema de Hegel, por mais que cada um deles afirme estar para além de Hegel. A sua polémica contra Hegel, e entre si, reduz-se ao facto de cada um deles ter chamado a si uma faceta do sistema de Hegel e tê-la virado tanto contra todo o sistema como contra as facetas reclamadas pelos outros. A princípio chamavam a si categorias puras de Hegel, não falsificadas, como substância e consciência de si,[1 4] mas posteriormente profanaram estas categorias com nomes mais mundanos, como espécie, o Único, o Homem,[1 5] etc.

Toda a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner se reduz à crítica de representações religiosas. Partiu-se da religião real e da autêntica teologia. O que são consciência religiosa e representação religiosa foi posteriormente definido de maneiras diversas. O progresso consistiu em subsumir [subsumieren] as representações metafísicas, políticas, jurídicas, morais e outras, pretensamente dominantes, também na esfera das representações religiosas ou teológicas; e, do mesmo modo, em explicar a consciência política, jurídica e moral como consciência religiosa ou teológica, e o homem político, jurídico e moral em última instância, "o Homem" — como religioso. Pressupunha-se o domínio da religião. Gradualmente, cada relação dominante foi explicada como uma relação da religião e transformada em culto: culto do direito, culto do Estado, etc. Por toda a parte se lidava apenas com dogmas e com a fé em dogmas. O mundo foi canonizado numa medida sempre crescente, até que por fim o venerável São Max[1 6] o pôde declarar santificado en bloc, e deste modo despachá-lo de uma vez por todas.

Os Velhos-Hegelianos tinham compreendido tudo logo que reduzido a uma categoria lógica de Hegel. Os Jovens-Hegelianos criticaram tudo substituindo a tudo representações religiosas ou declarando-o teológico. Os Jovens-Hegelianos concordam com os Velhos-Hegelianos na crença no domínio da religião, dos conceitos, do universal no mundo existente. Só que uns combatem o domínio como usurpação, e outros celebram-no como legítimo.

Como para os Jovens-Hegelianos as representações, ideias, conceitos, em geral os produtos da consciência, por eles autonomizada, valem como os grilhões autênticos dos homens, do mesmo modo que para os Velhos-Hegelianos significam os verdadeiros elos da sociedade humana, percebe-se que os Jovens-Hegelianos também só tenham de lutar contra estas ilusões da consciência. Como, segundo a sua fantasia, as relações dos homens, tudo o que os homens fazem, os seus grilhões e barreiras, são produtos da sua consciência, os Jovens-Hegelianos colocam-lhes o postulado moral, consequentemente, de trocarem a sua consciência presente pela consciência humana, crítica ou egoísta, e deste modo eliminarem as suas barreiras. Esta exigência de mudar a consciência conduz à exigência de interpretar de outro modo o que existe, ou seja, de o reconhecer por meio de outra interpretação. Os ideólogos jovens-hegelianos são, apesar das frases com que pretendem "abalar o mundo",[1 7] os maiores conservadores. Os mais novos dentre eles encontraram a expressão correcta para a sua actividade quando afirmam que lutam apenas contra "frases". Esquecem, apenas, que a estas mesmas frases nada opõem senão frases, e que de modo nenhum combatem o mundo real existente se combaterem apenas as frases deste mundo. Os únicos resultados a que esta crítica filosófica pôde conduzir foram alguns esclarecimentos, e ainda por cima unilaterais — de história da religião -, sobre o cristianismo; todas as suas demais afirmações são apenas outros tantos adornos para a sua pretensão de haverem proporcionado, com estes esclarecimentos insignificantes, descobertas de importância histórica e universal.

Não ocorreu a nenhum destes filósofos procurar a conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão da sua crítica com o seu próprio ambiente material.

Premissas da concepção materialista da história

As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são dogmas, são premissas reais, e delas só na imaginação se pode abstrair. São os indivíduos reais, a sua acção e as suas condições materiais de vida, tanto as que encontraram como as que produziram pela sua própria acção. Estas premissas são, portanto, constatáveis de um modo puramente empírico.

A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos primeiro facto a constatar é, portanto, a organização física destes indivíduos e a relação que por isso existe com o resto da natureza. Não podemos entrar aqui, naturalmente, nem na constituição física dos próprios homens, nem nas condições naturais que os homens encontraram — as condições geológicas, oridrográficas, climáticas e outras. Toda a historiografia tem de partir destas bases naturais e da sua modificação ao longo da história pela acção dos homens.

Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião — por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indirectamente a sua própria vida material.

O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, em primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a reproduzir.

Este modo da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso sim, de uma forma determinada da actividade destes indivíduos, de uma forma determinada de exprimirem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.

Esta produção só surge com o aumento da população. Ela própria pressupõe, por seu turno, um intercâmbio [Verkehr] dos indivíduos entre si.[1 8] A forma deste intercâmbio é, por sua vez, condicionada pela produção.

Produção e intercâmbio. Divisão do trabalho e formas de propriedade: tribal, antiga e feudal

As relações de diferentes nações entre si dependem do grau em que cada uma delas desenvolveu as suas forças produtivas, a divisão do trabalho e o intercâmbio interno. Esta proposição é geralmente aceite. Mas não só a relação de uma nação com outras, também a própria estrutura interna dessa nação depende da fase de desenvolvimento da sua produção e do seu intercâmbio interno e externo. Até onde chega o desenvolvimento das forças de produção [Produktionskräfte] de uma nação é indicado, com a maior clareza, pelo grau atingido pelo desenvolvimento da divisão do trabalho. Cada nova força produtiva, na medida em que não é uma simples extensão quantitativa das forças produtivas até aí já conhecidas (p. ex., o arroteamento de terrenos), tem como consequência uma nova constituição da divisão do trabalho.

A divisão do trabalho no seio de uma nação começa por provocar a separação do trabalho industrial e comercial do trabalho agrícola, e, com ela, a separação de cidade e campo e a oposição dos interesses de ambos. O seu desenvolvimento posterior leva à separação do trabalho comercial do industrial. Ao mesmo tempo, com a divisão do trabalho, desenvolvem-se por seu turno, no seio destes diferentes ramos, diferentes grupos entre os indivíduos que cooperam em determinados trabalhos. A posição de cada um destes grupos face aos outros é condicionada pelo modo como é realizado o trabalho agrícola, industrial e comercial (patriarcalismo, escravatura, estados,[1 9] classes). As mesmas condições se verificam, com um intercâmbio mais desenvolvido, nas relações de diferentes nações entre si.

As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho são outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das fases da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre si no que respeita ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho.

A primeira forma de propriedade é a propriedade tribal [Stammeigentumt][1 10] Esta corresponde à fase não desenvolvida da produção em que um povo se alimenta da caça e da pesca, da criação de gado ou, quando muito, da agricultura. Pressupõe, neste último caso, uma grande massa de terrenos não cultivados. A divisão do trabalho está nesta fase ainda muito pouco desenvolvida e limita-se a um prolongamento da divisão natural do trabalho existente na família. A estrutura social limita-se, por isso, a uma extensão da família: os chefes patriarcais da tribo, abaixo deles os membros da tribo, e por fim os escravos. A escravatura latente na família só se desenvolve gradualmente com o aumento da população e das necessidades e com o alargamento do intercâmbio externo, tanto de guerra como de comércio de troca.

A segunda forma é a propriedade comunal e estatal antiga, a qual resulta nomeadamente da união de várias tribos que formam uma cidade por meio de acordo ou conquista: nela continua a existir a escravatura. A par da propriedade comunal desenvolve-se já a propriedade privada móvel e, mais tarde, também a imóvel, mas como uma forma anormal e subordinada à propriedade comunal. Os cidadãos só em comum possuem o poder sobre os seus escravos trabalhadores, estando logo, por este motivo, ligados à forma da propriedade comunal. É a propriedade privada comum dos cidadãos activos, os quais são obrigados, face aos escravos, a permanecer neste modo natural de associação. Por isso decai toda a estrutura da sociedade baseada nesta forma de propriedade, e com ela o poder do povo, à medida que se desenvolve, nomeadamente, a propriedade privada imóvel. A divisão do trabalho está já mais desenvolvida. Encontramos já a oposição [Gegensatz] de cidade e campo, e mais tarde a oposição entre Estados que representam, uns, o interesse urbano, e outros o interesse do campo, e mesmo no interior das cidades encontramos a oposição entre a indústria e o comércio marítimo. A relação de classes entre cidadãos e escravos está completamente formada.

Com o desenvolvimento da propriedade privada surgem aqui, pela primeira vez, as mesmas relações que voltamos a encontrar na propriedade privada moderna, só que nesta em maior escala. Por um lado, a concentração da propriedade privada, que em Roma começou muito cedo (prova: a lei agrária liciniana[1 11]) e se processou muito rapidamente desde as guerras civis e sob os imperadores; por outro lado, e em conexão com isto, a transformação dos pequenos camponeses plebeus num proletariado, o qual, porém, dada a sua posição média entre os cidadãos possuidores e os escravos, não conseguiu um desenvolvimento autónomo.

A terceira forma é a propriedade feudal, ou de estados [ou ordens sociais — ständisch]. Se a Antiguidade partiu da cidade e da sua pequena área, a Idade Média partiu do campo. A população ao tempo existente, pouco densa e dispersa por uma grande área, e que não cresceu grandemente com os conquistadores, condicionou este ponto de partida diferente. Em contraste com a Grécia e Roma, o desenvolvimento feudal começa, por isso, num território muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão da agricultura a elas inicialmente ligada. Os últimos séculos do império romano em declínio e a conquista pelos próprios bárbaros destruíram grande quantidade de forças produtivas; a agricultura afundara-se, a indústria declinara por falta de mercado, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido, a população rural e urbana decrescera. Estas condições ao tempo existentes e o modo de organização da conquista por elas condicionado desenvolveram, sob a influência da constituição militar germânica, a propriedade feudal. Esta assenta, como a propriedade tribal e comunal, novamente sobre uma comunidade [Gemeinwesen] face à qual se encontram, não como face à antiga os escravos, mas os pequenos camponeses servos como classe produtora directa. Ao mesmo tempo, com a completa formação do feudalismo, surge também a oposição contra as cidades. A estrutura hierárquica da propriedade fundiária e os séquitos armados a ela ligados deram à nobreza o poder sobre os servos. Esta estrutura feudal era, do mesmo modo que a antiga propriedade comunal, uma associação face à classe produtora dominada; só que a forma de associação e a relação com os produtores directos era diferente, porque existiam diferentes condições de produção.

A esta estrutura feudal da propriedade fundiária correspondia, nas cidades, a propriedade corporativa, a organização feudal dos ofícios. A propriedade consistia aqui principalmente no trabalho de cada indivíduo. A necessidade da associação contra a rapina da nobreza associada, a carência de mercados cobertos comuns num tempo em que o industrial era simultaneamente comerciante, a concorrência crescente dos servos fugitivos que confluíam para as cidades florescentes e a estrutura feudal de todo o país deram origem às corporações; os pequenos capitais gradualmente economizados de artesãos individuais e o número estável destes na população crescente desenvolveram a relação de oficial e aprendiz, que originou nas cidades uma hierarquia semelhante à do campo.

A propriedade principal consistiu assim, durante a época feudal, por um lado na propriedade fundiária e no trabalho servo a ela preso, e por outro no trabalho próprio com um pequeno capital a dominar o trabalho dos oficiais. A estrutura de um e outro estava condicionada pelas relações de produção [Produktionsverhältnisse] limitadas — a pequena cultura agrícola rudimentar e a indústria artesanal. Pouca foi a divisão do trabalho que teve lugar no apogeu do feudalismo. Todos os países tinham em si a oposição de cidade e campo; a estrutura de estados [ou ordens sociais] era certamente muito marcada, mas além da diferenciação de príncipes, nobreza, clero e camponeses, no campo, e de mestres, oficiais e aprendizes, e em breve também a plebe de jornaleiros, nas Cidades, não teve lugar nenhuma divisão importante. Na agricultura era dificultada pela cultura parcelada, a par da qual surgia a indústria caseira dos próprios camponeses; na indústria o trabalho não estava nada dividido em cada um dos ofícios, e muito pouco entre eles. A divisão de indústria e comércio encontrava-se já em cidades mais antigas, mas só mais tarde se desenvolveu nas mais novas, quando as cidades entraram em relação umas com as outras.

A reunião de territórios maiores em reinos feudais era uma necessidade para a nobreza latifundiária como para as cidades. A organização da classe dominante, a nobreza, tinha por isso, em toda a parte, um monarca à cabeça.

A essência da concepção materialista da história. Ser social e consciência social

O facto é, portanto, este: o de determinados indivíduos, que trabalham produtivamente de determinado modo, em determinadas relações de produção, entrarem em determinadas relações sociais e políticas. A observação empírica tem de mostrar, em cada um dos casos, empiricamente e sem qualquer mistificação e especulação, a conexão da estrutura social e política com a produção. A estrutura social e o Estado decorrem constantemente do processo de vida de determinados indivíduos; mas destes indivíduos não como eles poderão parecer na sua própria representação ou na de outros, mas como eles são realmente, ou seja, como agem, como produzem materialmente, como trabalham, portanto, em determinados limites, premissas e condições materiais que não dependem da sua vontade.[1 12]

A produção das ideias, representações, da consciência está a princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como refluxo directo do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. Os homens são os produtores das suas representações, ideias, etc., mas os homens reais, os homens que realizam [die wirklichen, wirkenden Menschen], tal como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do intercâmbio que a estas corresponde até às suas formações mais avançadas. A consciência [das Bewusstsein], nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente [das bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda a ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa Camera obscura, é porque este fenómeno deriva do seu processo histórico de vida da mesma maneira que a inversão dos objectos na retina deriva do seu processo directamente físico de vida.

Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente activos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos [Reflexe] e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo de vida material empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica, e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de antinomia. Não têm história, não têm desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência.

Este modo de consideração não é destituído de premissas. Parte das premissas reais e nem por um momento as abandona. As suas premissas são os homens, não num qualquer isolamento e fixidez fantásticos, mas no seu processo de desenvolvimento real, perceptível empiricamente, em determinadas condições. Assim que este processo de vida activo é apresentado, a história deixa de ser uma colecção de factos mortos — como é para os empiristas, eles próprios ainda abstractos -, ou uma acção imaginada de sujeitos imaginados, como para os idealistas.

Lá onde a especulação cessa, na vida real, começa, portanto, a ciência real, positiva, a representação da actividade prática, do processo de desenvolvimento prático dos homens. Cessam as frases sobre a consciência, o saber real tem de as substituir. Com a representação da realidade, a filosofia autónoma perde o seu meio de existência. Em seu lugar pode, quando muito, surgir uma súmula dos resultados mais gerais que é possível abstrair da consideração do desenvolvimento histórico. Estas abstracções não têm, separadas da história real, o menor valor. Só podem servir para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sequência de cada um dos seus estratos. Mas não dão, de modo nenhum, como a filosofia, uma receita ou um esquema segundo o qual as épocas históricas possam ser ajeitadas ou ajustadas. A dificuldade começa pelo contrário, precisamente quando nos damos à consideração e ordenação do material, seja de uma época passada seja do presente, à representação real. A eliminação destas dificuldades está condicionada por premissas que de modo nenhum podem ser aqui dadas, e que só resultarão claras do estudo do processo real da vida e da acção dos indivíduos de cada época. Vamos escolher aqui algumas destas abstracções, que utilizamos em contraposição à ideologia, e vamos explicá-las com exemplos históricos.

Condições da libertação real do homem

Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os nossos sábios filósofos sobre o facto de que a "libertação" do "Homem" não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na "Consciência de Si", por terem libertado o "Homem" do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais, de que não se pode abolir [aufheben] a escravatura sem a máquina a vapor e a mule-jenny, nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada, de que de modo nenhum se pode libertar os homens enquanto estes não estiverem em condições de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade e na quantidade perfeitas. A "libertação" é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por relações históricas, pelo nível da indústria, do comércio, da agricultura, do inter[âmbio... Então, ulteriormente, consoante as suas diferentes etapas de desenvolvimento, o absurdo da substância, do sujeito, da consciência de si e da critica pura, tal como o absurdo religioso e teológico, e depois eliminam-no de novo quando estão suficientemente desenvolvidas. Como é natural, num país como a Alemanha, onde se processa apenas um desenvolvimento histórico miserável, estes desenvolvimentos do pensamento, estas trivialidades transfiguradas e ineficazes, encobrem a falta do desenvolvimento histórico, fixam-se e têm de ser combatidas. Mas esta é uma luta de importância local.

Crítica do materialismo contemplativo e inconsequente de Feuerbach

Na realidade, e para o materialista prático, isto é, para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo existente, de atacar e transformar na prática as coisas que encontra no mundo. Se em Feuerbach, por vezes, se encontram tais ideias, a verdade é que estas nunca vão além de conjecturas isoladas e têm uma influência demasiado reduzida no seu modo geral de ver para que aqui possam ser consideradas algo mais do que embriões capazes de se desenvolverem. A "concepção" de Feuerbach do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera contemplação deste, e, por outro, à mera sensação; ele diz “o Homem" em vez de o(s) “homens históricos reais". “O Homem" é, realiter “o Alemão". No primeiro caso, na contemplação do mundo sensível, esbarra necessariamente em coisas que contradizem a sua consciência e o seu sentimento, que perturbam a harmonia, por ele pressuposta, de todas as partes do mundo sensível, e nomeadamente do homem com a natureza.[1 13] Para eliminar tais coisas, tem de procurar refúgio numa dupla contemplação, entre uma profana, que só avista o “trivialmente óbvio", e uma superior, filosófica, que avista a “verdadeira essência" das coisas. Ele não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada directamente da eternidade, sempre igual a si mesma, mas antes o produto da indústria e do estado em que se encontra a sociedade, e precisamente no sentido de que ele é um produto histórico, o resultado da actividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais aos ombros da anterior e desenvolvendo a sua indústria e o seu intercâmbio e modificando a sua ordem social de acordo com necessidades já diferentes. Mesmo os objectos da mais simples “certeza sensível" são-lhe apenas dados por meio do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial. A cerejeira, como é sabido, e bem assim quase todas as árvores de fruto, só há poucos séculos foi transplantada para a nossa zona por meio do comércio, e por isso só por meio desta acção de uma determinada sociedade num determinado tempo foi dada à “certeza sensível" de Feuerbach.

De resto, nesta concepção das coisas tal como elas realmente são e aconteceram, todos os problemas filosóficos profundos se resolvem, como mais adiante se revelará ainda com maior nitidez, muito simplesmente num facto empírico. Por exemplo, a questão importante da relação do homem com a natureza (ou, como Bruno diz (p. 110), as “antíteses na natureza e na história", como se estas fossem duas “coisas" separadas uma da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da qual saíram todas as “obras imperscrutavelmente elevadas" sobre “substância" e “consciência de si", desfaz-se por si própria com a compreensão de que a celebrada “unidade do homem com a natureza" desde sempre existiu na indústria e existiu em todas as épocas de formas diferentes, segundo o menor ou maior desenvolvimento da indústria, tal como a “luta" do homem com a natureza, até ao desenvolvimento das suas forças produtivas numa base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e a troca das necessidades da vida por um lado condicionam — e por outro lado são condicionados, no modo como se processam, por — a distribuição, a articulação das diferentes classes sociais; e assim acontece que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, só vê fábricas e máquinas onde há um século se viam apenas rodas de fiar e teares, ou na Campagna di Roma só descobre pastagens e pântanos onde no tempo de Augusto nada teria encontrado a não ser vinhedos e vilas de capitalistas romanos. Feuerbach fala nomeadamente da observação da ciência da natureza, menciona segredos que apenas se revelam aos olhos do físico e do químico; mas, sem a indústria e o comércio, onde estaria a ciência da natureza? Mesmo esta ciência “pura" da natureza só alcança o seu objectivo, bem como o seu material, por meio do comércio e da indústria, por meio da actividade sensível dos homens. E de tal modo esta actividade, este trabalho e esta criação sensíveis contínuos e esta produção são a base de todo o mundo sensível como ele agora existe, que, se fossem interrompidos ao menos um ano, Feuerbach não só encontraria uma enorme mudança no mundo natural como muito em breve daria pela falta de todo o mundo dos homens e da sua própria faculdade de observação — mais, da sua própria existência. É certo que, no meio de tudo isto, se mantém a prioridade da natureza exterior, e é certo que tudo isto não tem qualquer aplicação aos homens originais produzidos por generatio aequivoca;[1 14] mas esta diferenciação só tem sentido na medida em que se considera o homem como sendo diferente da natureza. De resto, esta natureza que precedeu a história humana não é, de modo nenhum, a natureza em que Feuerbach vive, é a natureza que hoje em dia, à excepção talvez de uma ou outra ilha de coral australiana de origem recente, já em parte nenhuma existe, e que portanto também não existe para Feuerbach.

Feuerbach tem, no entanto, sobre os materialistas “puros", a grande vantagem de compreender que também o homem é “objecto sensível"; mas, à parte o facto de entender o homem apenas como “objecto sensível", e não como “actividade sensível", como também aqui se mantém na teoria, e não concebe os homens na sua dada conexão social, nas suas condições de vida reais que fizeram deles aquilo que são, nunca chega aos homens activos, aos homens realmente existentes; fica-se pela abstracção de “o Homem", e só consegue reconhecer o “homem corpóreo, individual, real" no sentimento, ou seja, não conhece outras “relações humanas" “do homem com o homem" além de amor e amizade, e mesmo assim idealizados. Não faz nenhuma crítica às condições de vida actuais. Nunca chega, portanto, a conceber o mundo sensível como a totalidade da actividade sensível viva dos indivíduos que o constituem, e é por isso obrigado — quando vê, por exemplo, em vez de homens saudáveis, uma turba de famélicos escrofulosos, esgotados pelo excesso de trabalho e tuberculosos — a buscar o seu refúgio na “observação superior" e na ideal “compensação na espécie", e portanto a recair no idealismo precisamente onde o materialista comunista vê a necessidade e, ao mesmo tempo, a condição de uma transformação tanto da indústria como da estrutura social.

Enquanto materialista, para Feuerbach a história não conta, e quando considera a história não é materialista. Para ele, materialismo e história divergem completamente, o que de resto se explica já pelo que ficou dito.

Relações históricas primordiais, ou os aspectos básicos da actividade social: produção dos meios de subsistência, produção de novas necessidades, reprodução das pessoas (a família), intercâmbio social, consciência

Com os alemães, que não dispõem de quaisquer premissas, temos de começar por constatar a primeira premissa de toda a existência humana, e portanto, também, de toda a história, ou seja, a premissa de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem “fazer história". Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas. O primeiro acto histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que este é um acto histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. Mesmo quando o mundo sensível é reduzido ao mínimo, a um bastão, como com o sagrado Bruno, pressupõe a actividade da produção deste bastão. Assim, a primeira coisa a fazer em qualquer concepção da história é observar este facto fundamental em todo o seu significado e em toda a sua dimensão, e atribuir-lhe a importância que lhe é devida. Como é sabido, os alemães nunca o fizeram, e por isso nunca tiveram uma base [Basis] terrena para a história nem, consequentemente, um historiador. Os franceses e os ingleses, embora tenham concebido a conexão deste facto com a chamada história apenas de um modo extremamente unilateral, nomeadamente enquanto enredados na ideologia política, fizeram não obstante as primeiras tentativas para dar à historiografia uma base materialista, tendo sido os primeiros a escrever histórias da sociedade civil, do comércio e da indústria.

O segundo ponto é este: a própria primeira necessidade satisfeita, a acção da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, conduz a novas necessidades — e esta produção de novas necessidades é o primeiro acto histórico. Logo por aqui se revela de quem descende espiritualmente a grande sageza histórica dos alemães, os quais, ao faltar-lhes o material positivo e não se tratando de nenhum absurdo teológico, nem político, nem literário, não reconhecem nenhuma história, mas o “tempo pré-histórico", sem entretanto nos esclarecerem como deste absurdo da “pré-história" se chega à verdadeira história — embora, por outro lado, a sua especulação histórica se lance muito particularmente sobre esta “pré-história", porque acredita estar aí mais segura face às incursões dos “factos crus" e, ao mesmo tempo, porque pode soltar as rédeas ao seu impulso especulativo e produzir e derrubar hipóteses aos milhares.

A terceira relação, que logo desde o início entra no desenvolvimento histórico, é esta: os homens que, dia a dia, renovam a sua própria vida começam a fazer outros homens, a reproduzir-se — a relação entre homem e mulher, pais e filhos, a família.

Esta família, que a princípio é a única relação social, torna-se mais tarde, quando o aumento das necessidades cria novas relações sociais e o aumento do número dos homens cria novas necessidades, uma relação subordinada (excepto na Alemanha), e tem então de ser tratada e desenredada segundo os dados empíricos existentes, e não segundo o “conceito da família", como se costuma fazer na Alemanha. De resto, estas três facetas da actividade social não devem ser entendidas como três fases diferentes, mas apenas como três facetas ou, para escrever claro para os alemães, três “momentos" que, desde o começo da história e desde os primeiros homens, existiram simultaneamente, e que ainda hoje se afirmam na história.

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, surge agora imediatamente como uma dupla relação: por um lado como relação natural, por outro como relação social — social no sentido em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos seja em que circunstâncias for e não importa de que modo e com que fim. Daqui resulta que um determinado modo de produção, ou fase industrial, está sempre ligado a um determinado modo da cooperação, ou fase social, e este modo da cooperação é ele próprio uma “força produtiva"; e que a quantidade das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona o estado da sociedade, e portanto a “história da humanidade" tem de ser sempre estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca. Mas também é evidente que na Alemanha é impossível escrever essa história, porque para tanto faltam aos alemães não só a capacidade de concepção e o material, mas também a “certeza sensível", e para além do Reno não se pode colher experiência destas coisas, pois lá já nenhuma história se processa. Revela-se, assim, logo de princípio, uma conexão materialista dos homens entre si, a qual é condicionada pelas necessidades e pelo modo da produção e tão velha como os próprios homens — uma conexão que assume sempre formas novas e que, por conseguinte, apresenta uma “história", mesmo que não exista um qualquer absurdo político ou religioso que una ainda mais os homens.

Só agora, depois de já termos considerado quatro momentos, quatro facetas das relações históricas primordiais, verificamos que o homem também tem “consciência". Mas também que não de antemão, como consciência “pura". O “espírito" tem consigo de antemão a maldição de estar “preso" à matéria, a qual nos surge aqui na forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência — a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física do intercâmbio com outros homens.[1 15] Onde existe uma relação, ela existe para mim, o animal com nada se “relaciona", nem sequer se “relaciona". Para o animal, a sua relação com outros não existe como relação. A consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto existirem homens. A consciência, naturalmente, começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível imediato e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo que se vai tornando consciente de si; é, ao mesmo tempo, consciência da natureza, a qual a princípio se opõe aos homens como um poder completamente estranho, todo-poderoso e inatacável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual se deixam amedrontar como os animais; é, portanto, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural).

Por aqui se vê imediatamente: esta religião natural ou esta determinada relação com a natureza é condicionada pela forma de sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda a parte, também se manifesta tanto a identidade de natureza e homem que a relação limitada dos homens com a natureza condiciona a sua relação limitada uns com os outros, e a sua relação limitada uns com os outros condiciona a sua relação limitada com a natureza, precisamente porque a natureza mal está ainda historicamente modificada; e, por outro lado, a consciência da necessidade [Notwendigkeit] de entrar em ligação com os indivíduos à sua volta é o começo da consciência do homem de que vive de facto numa sociedade. Este começo é tão animal como a própria vida social desta fase, é mera consciência de horda, e o homem distingue-se aqui do carneiro apenas pelo facto de a sua consciência lhe fazer as vezes do instinto, ou do seu instinto ser consciente. Esta consciência de carneiro, ou tribal, recebe o seu desenvolvimento e formação posterior do aumento da produtividade, da multiplicação das necessidades e do aumento da população que está na base desta e daquele. Deste modo se desenvolve a divisão do trabalho, que originalmente nada era senão a divisão do trabalho no acto sexual, e depois a divisão espontânea ou "natural" do trabalho em virtude da disposição natural (p. ex., a força física), de necessidades, acasos, etc., etc. A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão do trabalho material e espiritual.[1 16] A partir deste momento, a consciência pode realmente dar-se à fantasia de ser algo diferente da consciência da práxis existente, de representar realmente alguma coisa sem representar nada de real — a partir deste momento, a consciência é capaz de se emancipar do mundo e de passar à formação da teoria "“pura", da teologia, da filosofia, da moral, etc., “puras". E mesmo quando esta teoria, teologia, filosofia, moral, etc., entram em contradição com as relações vigentes, isso só pode acontecer pelo facto de as relações sociais vigentes terem entrado em contradição com a força de produção existente — o que, de resto, também pode acontecer num determinado círculo nacional de relações pelo facto de a contradição se fazer sentir, não neste âmbito nacional, mas entre esta consciência nacional e a práxis das outras nações, ou seja, entre a consciência nacional e a consciência geral de uma nação (como agora na Alemanha); mas como esta contradição parece existir apenas como contradição dentro da consciência nacional, parece então a esta nação que também a luta se confina a esta porcaria nacional, precisamente porque esta nação é a porcaria em si e para si.

De resto, é completamente indiferente o que quer que seja que a consciência comece a fazer sozinha; de toda esta porcaria extraímos apenas um resultado — o de que estes três momentos, a força de produção, o estado da sociedade e a consciência, podem e têm de cair em contradição entre si, porque com a divisão do trabalho está dada a possibilidade, mais, a realidade de a actividade espiritual e a actividade material, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo caberem a indivíduos diferentes; e a possibilidade de não caírem em contradição reside apenas na superação da divisão do trabalho. É de resto evidente que os “espectros", os “vínculos", o “ser superior", o “conceito", a “escrupulosidade" são meramente a expressão religiosa idealista, a representação, aparentemente, do indivíduo isolado, a representação de grilhões e limites muito empíricos dentro dos quais o modo de produção da vida e a forma de intercâmbio àquele ligada se movem.

A divisão social do trabalho e as suas consequências: a propriedade privada, o Estado, a "alienação" da actividade social

Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual já tem o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia. De resto, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas — numa enuncia-se em relação à actividade o mesmo que na outra se enuncia relativamente ao produto da actividade.

Além disso, com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o interesse de cada um dos indivíduos ou de cada uma das famílias e o interesse comunitário de todos os indivíduos que mantêm intercâmbio uns com os outros; e a verdade é que este interesse comunitário de modo nenhum existe meramente na representação, como "universal", mas antes de mais na realidade, como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho está dividido.

E é precisamente por esta contradição do interesse particular e do interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma forma autónoma como Estado, separado dos interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real [realen Basis] dos laços existentes em todos os conglomerados de famílias e tribais — como de carne e sangue, de língua, de divisão do trabalho numa escala maior, e demais interesses -, e especialmente, como mais tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela divisão do trabalho e que se diferenciam em todas essas massas de homens, e das quais uma domina todas as outras. Daqui resulta que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., etc., não são mais do que as formas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes classes entre si (disto os teóricos alemães não percebem uma sílaba, apesar de se lhes ter dado para isso indicações suficientes nos Deutsch-Französische Jahrbücher[1 17] e em A Sagrada Família); e também que todas as classes que aspiram ao domínio, mesmo quando o seu domínio, como é o caso com o proletariado, condiciona a superação de toda a forma velha da sociedade e da dominação em geral, têm primeiro de conquistar o poder político, para por sua vez representarem o seu interesse como o interesse geral, coisa que no primeiro momento são obrigadas a fazer.

Precisamente porque os indivíduos procuram apenas o seu interesse particular, o qual para eles não coincide com o seu interesse comunitário — a verdade é que o geral é a forma ilusória da existência na comunidade -, este é feito valer como um interesse que lhes é "alheio" e "independente" deles, como um interesse "geral" que é também ele, por seu turno, particular e peculiar, ou eles próprios têm de se mover nesta discórdia, como na democracia. Por outro lado, também a luta prática destes interesses particulares, que realmente se opõem constantemente aos interesses comunitários e aos interesses comunitários ilusórios, torna necessários a intervenção e o refreamento práticos pelo interesse "geral" ilusório como Estado.

E, finalmente, a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro exemplo de como, enquanto os homens se encontram na sociedade natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, enquanto, por conseguinte, a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. E que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência — ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.

Esta fixação da actividade social, esta consolidação do nosso próprio produto como força objectiva acima de nós que escapa ao nosso controlo, contraria as nossas expectativas e aniquila os nossos cálculos, é um dos factores principais no desenvolvimento histórico até aos nossos dias. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que surge pela cooperação dos diferentes indivíduos condicionada na divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos — porque a própria cooperação não é voluntária, mas natural — não como o seu próprio poder unido, mas como uma força alheia que existe fora deles, da qual não sabem donde vem e a que se destina, que eles, portanto, já não podem dominar e que, pelo contrário, percorre uma série peculiar de fases e etapas de desenvolvimento independente da vontade e do esforço dos homens, e que em primeiro lugar dirige essa vontade e esse esforço. De outro modo, como poderia, por exemplo, a propriedade ter uma história, assumir várias formas, e, por exemplo, a propriedade fundiária, conforme as diferentes condições existentes, passar em França do parcelamento para a centralização em poucas mãos, e em Inglaterra da centralização em poucas mãos para o parcelamento, como é hoje realmente o caso? Ou como explicar que o comércio, que não é de facto mais do que a troca de produtos de diferentes indivíduos e países, domine o mundo inteiro pela relação de procura e fornecimento [Nachfrage und Zufuhr] — uma relação que, como diz um economista inglês, paira sobre a Terra semelhante ao Destino antigo e com mão invisível distribui a felicidade e a infelicidade aos homens, funda impérios e destrói impérios, faz nascer e desaparecer povos -, ao passo que com a supressão da base, da propriedade privada, com a regulação comunista da produção e o aniquilamento a ela inerente do alheamento [Fremdheit] com que os homens se relacionam com o seu próprio produto, o poder da relação de procura e fornecimento se dissolve em nada e os homens voltam a ter sob o seu domínio a troca, a produção, o modo da sua mútua relação?

Desenvolvimento das forças produtivas como uma premissa material do comunismo

Esta "alienação" [Entfremdung], para continuarmos compreensíveis para os filósofos, só pode ser superada, evidentemente, dadas duas premissas práticas. Para que ela se torne um poder "insuportável", isto é, um poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que tenha criado uma grande massa da humanidade "destituída de propriedade" e ao mesmo tempo em contradição com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe um grande aumento da força produtiva, um grau elevado do seu desenvolvimento — e, por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (com o qual já está dada, simultaneamente, a existência empírica concreta dos homens a nível histórico-mundial, em vez de a nível local) é também uma premissa prática absolutamente necessária porque sem ele só a penúria se generaliza, e, portanto, com a miséria também teria de recomeçar a luta pelo necessário e de se produzir de novo toda a velha porcaria, e ainda porque só com este desenvolvimento universal das forças produtivas se estabelece um intercâmbio universal dos homens, que por um lado produz o fenómeno da grande massa "destituída de propriedade" em todos os povos ao mesmo tempo (concorrência geral), torna todos eles dependentes das revoluções uns dos outros e, por fim, colocou indivíduos empiricamente universais, indivíduos histórico-mundiais, no lugar dos indivíduos locais. Sem isto, 1) o comunismo só poderia existir como fenómeno local, 2) os poderes do intercâmbio não teriam eles próprios podido desenvolver-se como poderes universais, e por isso insuportáveis, e teriam permanecido "circunstâncias" de superstição caseira, e 3) todo o alargamento do intercâmbio suprimiria o comunismo local. Empiricamente, o comunismo só é possível como o acto dos povos dominantes "de repente" e ao mesmo tempo,[1 18] o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial que com ele se liga.

De resto, a massa de meros operários — força operária [Arbeiterkraft] massiva separada do capital ou de qualquer limitada satisfação -, e por isso também a perda já não temporária deste mesmo trabalho como uma fonte assegurada de vida, pressupõe o mercado mundial por meio da concorrência. O proletariado só pode, por conseguinte, existir à escala histórico-mundial, tal como só pode haver comunismo, a sua acção, como existência "histórico-mundial"; existência histórico-mundial dos indivíduos, ou seja, a existência dos indivíduos directamente ligada à história mundial.

O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o actual estado de coisas. As condições deste movimento resultam da premissa actualmente existente.

A forma de intercâmbio condicionada em todos os estádios históricos até aos nossos dias pelas forças de produção existentes, e que por seu turno as condiciona, é a sociedade civil, a qual, como se torna claro pelo que já foi dito, tem por premissa e base a família simples e a família composta, o chamado sistema tribal, cujas características marcantes mais precisas se encontram contidas em páginas precedentes. Já por aqui se revela que esta sociedade civil é o verdadeiro lar e teatro de toda a história, e que é absurda a concepção da história até hoje defendida que despreza as relações reais ao confinar-se às acções altissonantes de chefes e de Estados.

Até aqui considerámos principalmente apenas uma das facetas da actividade humana, o trabalho da natureza pelos homens. A outra faceta, o trabalho dos homens pelos homens...

Conclusões da concepção materialista da história: continuidade do processo histórico, transformação da história em história mundial, a necessidade de uma revolução comunista

A história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma das quais explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são legados por todas as que a precederam, e que por isso continua, portanto, por um lado, em circunstâncias completamente mudadas, a actividade transmitida, e por outro lado modifica as velhas circunstâncias com uma actividade completamente mudada, o que permite a distorção especulativa de fazer da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo, colocar como subjacente ao descobrimento da América o objectivo de proporcionar a eclosão da Revolução Francesa; deste modo, a história recebe então os seus objectivos à parte, e torna-se uma "pessoa a par de outras pessoas" (como sejam: "Consciência de Si, Crítica, Único", etc.), enquanto aquilo que se designa com as palavras "Determinação", "Finalidade", "Germe", "Ideia" da história anterior mais não é do que uma abstracção formada a partir da história posterior, uma abstracção a partir da influência activa que a história anterior exerce sobre a posterior.

Quanto mais se expandem, no curso deste desenvolvimento, os diversos círculos que actuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento original de cada nacionalidade é aniquilado pelo modo de produção e o intercâmbio já formados e pela divisão do trabalho entre as diferentes nações assim naturalmente produzida por eles, tanto mais a história se torna história mundial, pelo que, por exemplo, quando em Inglaterra é inventada uma máquina que deixa sem pão inúmeros operários na Índia e na China e transforma profundamente toda a forma de existência destes impérios, este invento torna-se um facto histórico-mundial; e o açúcar e o café provaram a sua importância mundial no século XIX pelo facto de a falta destes produtos, provocada pelo Sistema Continental Napoleónico[1 19] ter levado os Alemães à revolta contra Napoleão e se ter assim tornado a base real das guerras gloriosas de libertação de 1813. Daqui decorre que esta transformação da história em história mundial não é, de modo nenhum, um mero acto abstracto da "Consciência de Si", do Espírito do mundo ou de qualquer outro espectro metafísico, mas um acto totalmente material, demonstrável empiricamente, um acto cuja prova é fornecida por cada indivíduo no seu dia-a-dia, ao comer, ao beber e ao vestir-se.

Na história até aos nossos dias é, sem dúvida, igualmente um facto empírico que cada um dos indivíduos, à medida que a actividade se alarga à escala histórico-mundial, fica cada vez mais escravizado sob um poder que lhe é estranho (cuja pressão eles imaginaram como chicana do chamado Espírito do mundo, etc.), um poder que se tornou cada vez mais desmedido e que em última instância se legitima como o mercado mundial. Mas, do mesmo modo, está empiricamente provado que pelo derrubamento do estado de coisas vigente na sociedade por meio da revolução comunista (da qual mais adiante falaremos) e da abolição da propriedade privada que àquela é idêntica, este poder tão misterioso para os teóricos alemães será dissolvido, e então será realizada a libertação de cada um dos indivíduos na medida em que a história se transforma completamente em história mundial. Depois do que atrás ficou dito, torna-se claro que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende completamente da riqueza das suas relações reais. Só deste modo os diferentes indivíduos são libertados das várias barreiras nacionais e locais, colocados em relação prática com a produção (também com a espiritual) de todo o mundo e colocados em condições de adquirir a capacidade de fruição para toda esta variada produção da Terra inteira (as criações dos homens). A dependência integral, esta forma natural da cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é transformada por esta revolução comunista no controlo e domínio consciente destes poderes que, gerados da acção dos homens uns sobre os outros, até aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como poderes completamente estranhos. Ora, esta visão pode, de novo, ser concebida de modo idealista-especulativo, ou seja, de modo fantástico como "autogeração da espécie" (a "sociedade como sujeito"), e deste modo a série consecutiva de indivíduos em conexão entre si pode ser imaginada como um único indivíduo que realiza o mistério de se gerar a si próprio. Torna-se aqui evidente que os indivíduos se fazem de facto uns aos outros, física e espiritualmente, mas não se fazem a si próprios, nem no sentido absurdo do sagrado Bruno, nem no sentido do "Único", do homem "feito".

Por fim, da concepção da história que desenvolvemos obtemos ainda os seguintes resultados: 1) No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estádio no qual se produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam desgraça, que já não são forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) — e, em conexão com isto, é produzida uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens desta e que, excluída da sociedade, é forçada ao mais decidido antagonismo a todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos os membros da sociedade e da qual deriva a consciência sobre a necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, a qual, evidentemente, também se pode formar no seio das outras classes por meio da observação da posição desta classe; 2) que as condições, no seio das quais podem ser aplicadas determinadas forças de produção, são as condições do domínio de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, decorrente da sua propriedade, tem a sua expressão prática-idealista na respectiva forma de Estado, e por isso toda a luta revolucionária se dirige contra uma classe que até então dominou; 3) que em todas as revoluções anteriores o modo da actividade permaneceu sempre intocado e foi só uma questão de uma outra distribuição desta actividade, de uma nova repartição do trabalho a outras pessoas, ao passo que a revolução comunista se dirige contra o modo da actividade até aos nossos dias, elimina o trabalho e suprime o domínio de todas as classes suprimindo as próprias classes, porque é realizada pela classe que na sociedade já não vale como uma classe, não é reconhecida como uma classe, é já a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades, etc., no seio da sociedade actual; e 4) que, tanto para a produção massiva desta consciência comunista como para a realização da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revolução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro modo pode ser derrubada, mas também porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade.

Resumo da concepção materialista da história

Esta concepção da história assenta, portanto, no desenvolvimento do processo real da produção, partindo logo da produção material da vida imediata, e na concepção da forma de intercâmbio intimamente ligada a este modo de produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos seus diversos estádios, como base de toda a história, e bem assim na representação da sua acção como Estado, explicando a partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas da consciência — a religião, a filosofia, a moral, etc., etc. — e estudando a partir destas o seu nascimento; deste modo, naturalmente, a coisa pode também ser apresentada na sua totalidade (e por isso também a acção recíproca destas diferentes facetas umas sobre as outras). Ao contrário da visão idealista da história, não tem de procurar em todos os períodos uma categoria, pois permanece constantemente com os pés assentes no chão real da história; não explica a práxis a partir da ideia, explica as formações de ideias a partir da práxis material, e chega, em consequência disto, também a este resultado: todas as formas e produtos da consciência podem ser resolvidos não pela crítica espiritual, pela dissolução na "Consciência de Si" ou pela transformação em "aparições", "espectros", "manias", etc., mas apenas pela transformação prática [revolucionária] das relações sociais reais de que derivam estas fantasias idealistas — a força motora da história, também da religião, da filosofia e de toda a demais teoria, não é a crítica, mas sim a revolução. Ela mostra que a história não termina resolvendo-se na "Consciência de Si" como "espírito do espírito", mas que nela, em todos os estádios, se encontra um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e dos indivíduos uns com os outros que a cada geração é transmitida pela sua predecessora, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, por um lado, é de facto modificada pela nova geração, mas que por outro lado também lhe prescreve as suas próprias condições de vida e lhe dá um determinado desenvolvimento, um carácter especial -, mostra, portanto, que as circunstâncias fazem os homens tanto como os homens fazem as circunstâncias.

Esta soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio social, que todos os indivíduos e todas as gerações vêm encontrar como algo de dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos se têm representado como "substância" e "essência do Homem", daquilo que têm apoteotizado e combatido — um fundamento real que de modo nenhum é afectado nos seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos homens pelo facto de estes filósofos se rebelarem contra ele como "Consciência de Si" e o "Único". Estas condições de vida que as diferentes gerações já encontram vigentes é que decidem, também, se o abalo revolucionário periodicamente recorrente na história será suficientemente forte ou não para deitar a baixo a base de todo o existente, e quando estes elementos materiais de um revolucionamento total — ou seja, por um lado, as forças produtivas existentes, por outro, a formação de uma massa revolucionária que faz a revolução não apenas contra estas ou aquelas condições da sociedade anterior, mas contra a própria "produção da vida" vigente até agora, contra a "actividade total" em que se baseava — não estão presentes, então é completamente indiferente para o desenvolvimento prático que a ideia desta transformação profunda já tenha sido expressa centenas de vezes — como o prova a história do comunismo.

Falta de fundamento da concepção anterior da história, a concepção idealista, particularmente da filosofia alemã pós-hegeliana

Toda a concepção da história até hoje ou deixou, pura e simplesmente, por considerar esta base real da história, ou viu nela apenas algo de secundário e sem qualquer conexão com o curso histórico. A história tem, por isso, de ser sempre escrita segundo um critério que lhe é extrínseco; a produção real da vida aparece como historicamente primitiva, enquanto o que é histórico aparece como existindo separado da vida em comum, como extra-supraterreno. A relação dos homens com a natureza fica, deste modo, excluída da história, pelo que é gerado o antagonismo de natureza e história. Daí que tal concepção só tenha podido ver na história acções políticas de chefes e de Estados e lutas religiosas e teóricas em geral, e tenha tido, em especial, em cada época histórica, de partilhar da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente "políticos" ou "religiosos", embora a "religião" e a "política" sejam apenas formas dos seus motivos reais, o seu historiógrafo aceita esta opinião. A "ilusão", a "representação" destes homens determinados sobre a sua práxis real é transformada no único poder determinante e activo que domina e determina a práxis desses homens. Quando a forma rudimentar em que aparece a divisão do trabalho dos Indianos e entre os Egípcios dá origem, nestes povos, ao sistema de castas no seu Estado e na sua religião, o historiador acredita ser o sistema de castas o poder que gerou esta forma social rudimentar.

Enquanto os Franceses e os Ingleses se agarram pelo menos à ilusão política, que está mais perto da realidade, os Alemães movem-se no reino do "espírito puro" e fazem da ilusão religiosa a força motora da história. A filosofia da história de Hegel é a última consequência, levada à sua "expressão mais pura", de toda esta Historiografia Alemã, na qual a questão não é a dos interesses reais, nem sequer dos interesses políticos, mas dos pensamentos puros, e que depois tem de aparecer ao sagrado Bruno como uma série de "pensamentos" que se devoram uns aos outros e que por fim se afundam na "Consciência de Si" e, de um modo ainda mais consequente, ao sagrado Max Stirner, o qual nada sabe de toda a história real, este curso histórico tem de aparecer como uma mera história de "cavaleiros", salteadores e espectros, face às visões dos quais ele naturalmente só sabe salvar-se pela "impiedade". Esta concepção é realmente religiosa, faz passar o homem religioso pelo homem original do qual parte toda a história, e coloca, na sua imaginação, a produção de fantasias religiosas no lugar da produção real dos meios de subsistência e da própria vida.

Toda esta concepção da história, juntamente com a sua dissolução e os escrúpulos e dúvidas dela resultantes, é um assunto meramente nacional dos Alemães e tem interesse apenas local para a Alemanha, como, por exemplo, esta questão importante, e recentemente muito tratada: como é que de facto "se vem do reino de Deus para o reino dos homens", como se este "reino de Deus" tivesse alguma vez existido em qualquer outra parte que não na imaginação, e os doutos senhores não vivessem continuamente, sem o saberem, no "reino dos homens" para o qual agora procuram caminho, e como se o divertimento científico, pois não é mais do que isso, de explicar a singularidade desta nefelibatice teórica não residisse precisamente em, ao contrário, demonstrar o seu nascimento a partir das relações terrenas reais. A verdade é que, para estes Alemães, a questão é sempre a de resolverem o contra-senso com que deparam numa outra tolice qualquer, ou seja, de pressuporem que todo esse contra-senso tem, de facto, um sentido especial que há que descobrir, ao passo que se trata apenas de explicar essa fraseologia teórica a partir das relações reais vigentes. A resolução prática, real, dessa fraseologia, a eliminação destas representações da consciência dos homens, é operada, como já dissemos, pela mudança das circunstâncias, e não por meio de deduções teóricas. Para a massa dos homens, isto é, para o proletariado, não existem estas representações teóricas, e, portanto, para ele, não precisam de ser resolvidas; e se esta massa teve quaisquer representações teóricas, por exemplo, a religião, já há muito que estas se encontram resolvidas pelas circunstâncias.

O que há de puramente nacional nestas questões e soluções revela-se ainda no facto de estes teóricos acreditarem, com toda a seriedade, que ficções do cérebro como "o Homem-Deus", "o Homem", etc., tivessem alguma vez presidido a cada uma das épocas da história — o sagrado Bruno chega mesmo ao ponto de afirmar que só "a crítica e os críticos fizeram a história" — e de, quando eles próprios se dedicam a construções históricas, saltarem, com a maior das pressas, sobre tudo o que é mais remoto e passarem logo do "Mongolismo" para a história autêntica e "cheia de conteúdo", isto é, a história dos Hallische e dos Deutsche Jahrbücher[1 20] e da dissolução da escola hegeliana para uma bulha geral. São esquecidas todas as outras nações, todos os acontecimentos reais, o theatrum mundi confina-se à Feira do Livro de Leipzig e às desavenças mútuas da "crítica", do "Homem" e do "Único". Se a teoria se dá alguma vez ao trabalho de tratar de temas realmente históricos, como, por exemplo, o século XVIII, os seus adeptos dão só a história das representações, desligada dos factos e dos desenvolvimentos práticos que lhes estão na base, e mesmo assim apenas com a intenção de apresentarem esse tempo como um estádio preliminar imperfeito, como precursor ainda limitado do verdadeiro tempo histórico, ou seja, do tempo da luta dos filósofos alemães de 1840/44. A este objectivo de escrever uma história de um período anterior para fazer brilhar, com mais fulgor ainda, a glória de uma pessoa a-histórica e das suas fantasias corresponde o facto de não se mencionar nenhuns factos realmente históricos, nem mesmo as intervenções realmente históricas da política na história, e de, em vez disso, se dar uma narrativa assente não em estudos mas em construções e historietas de mexericos literários — como aconteceu com o sagrado Bruno na sua já esquecida História do Século XVIII. Estes patéticos e arrogantes merceeiros de ideias, que crêem estar infinitamente acima de todos os preconceitos nacionais, são, pois, na prática, ainda muito mais nacionais do que os filisteus bebedores de cerveja que sonham com a unidade da Alemanha. Não reconhecem como históricos os actos de outros povos, vivem na Alemanha pela Alemanha e para a Alemanha, transformam a canção do Reno num hino religioso, e conquistam a Alsácia e a Lorena roubando, não o Estado francês, mas a filosofia francesa,- e germanizando, não províncias francesas, mas ideias francesas. Comparado aos Sagrados Bruno e Max, que no domínio universal da teoria proclamam o domínio universal da Alemanha, Herr Venedey é um cosmopolita.

Crítica adicional de Feuerbach, da sua concepção idealista da história

Destas disputas torna-se também claro quanto Feuerbach se ilude ao declarar-se, em virtude da qualificação "homem comunitário" [Gemeinmensch], um comunista[1 21] (Wigand's Vierteljahrsschrift, 1845, Bd. 2), ao transformar comunista num predicado "do" Homem, ou seja, ao julgar poder transformar a palavra comunista, que no mundo que existe designa o adepto de um determinado partido revolucionário, de novo numa mera categoria. Toda a dedução de Feuerbach quanto à relação dos homens entre si não vai além de provar que os homens precisam, e sempre precisaram, uns dos outros. Ele quer estabelecer a consciência acerca deste facto, isto é, como os restantes teóricos quer apenas produzir uma consciência correcta acerca dum facto existente, ao passo que ao comunismo real o que importa é derrubar este existente. De resto, reconhecemos perfeitamente que Feuerbach, ao esforçar-se por criar a consciência precisamente deste facto, vai tão longe quanto qualquer teórico pode ir sem deixar de ser um teórico e um filósofo. Mas o que é característico é que os Sagrados Bruno e Max coloquem logo a noção de comunista de Feuerbach no lugar do comunista real, o que em parte sucede precisamente para poderem combater o comunismo também como "espírito do espírito", como categoria filosófica, como adversário da mesma condição — e da parte do sagrado Bruno também por interesses pragmáticos.

Como exemplo do reconhecimento, e ao mesmo tempo desconhecimento, do que existe — que Feuerbach continua a partilhar com os nossos adversários -, recordamos o passo da Filosofia do Futuro em que ele expõe que o ser de uma coisa ou de um homem é, ao mesmo tempo, a sua essência,[1 22] que as determinadas condições de existência, o modo de vida e a actividade de um indivíduo animal ou humano são aquilo mesmo em que a sua "essência" se sente satisfeita. Aqui se entendem todas as excepções expressamente como acasos infelizes, como uma anormalidade que não se pode alterar. Se, portanto, milhões de proletários não se sentem de modo nenhum satisfeitos nas suas condições de vida, se o seu "ser" de modo nenhum corresponde à sua "essência", isto é, segundo o passo citado, uma desgraça inevitável que deve ser suportada tranquilamente. Estes milhões de proletários ou comunistas, porém, pensam de modo totalmente diferente, e prová-lo-ão a seu tempo, quando, de um modo prático, por meio de uma revolução, estabelecerem a harmonia entre o seu "ser" e a sua "essência". Feuerbach, portanto, nunca fala do mundo do homem nestes casos, refugia-se sempre na natureza exterior, e, para mais, na natureza que ainda não foi dominada pelos homens. Mas cada nova invenção, cada avanço da indústria, separa outro pedaço deste domínio, pelo que diminui continuamente a área que produz os exemplos ilustrativos das proposições de Feuerbach. A "essência" do peixe é o seu "ser", a água — para nos ficarmos por esta proposição. A "essência" do peixe de água doce é a água de um rio. Mas esta deixa de ser a "essência" do peixe, e já não é um meio adequado de existência, assim que o rio é posto ao serviço da indústria, assim que é poluído com tintas e outros produtos residuais, e navegado por barcos a vapor, ou assim que a sua água é conduzida para canais onde bastam os esgotos para privar o peixe do seu meio de existência. A explicação de que todas estas contradições são inevitáveis anormalidades não difere essencialmente da consolação que o Sagrado Max Stirner oferece aos descontentes, quando lhes diz que esta contradição é a contradição própria deles e esta situação aflitiva a situação aflitiva própria deles, pelo que deveriam ou tranquilizar o espírito, guardar para si próprios o seu horror, ou revoltar-se contra ela de um qualquer modo fantástico. Do mesmo modo, pouco difere da alegação de São Bruno de que estas circunstâncias infelizes se ficam a dever ao facto de que as pessoas estão presas no esterco da "substância", não avançaram para a "absoluta Consciência de Si", e não compreendem que estas condições adversas são espírito do seu espírito.

A classe dominante e consciência dominante. Formação da concepção de Hegel do domínio do espírito na história

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época. Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pelo domínio, em que portanto o domínio está dividido, revela-se ideia dominante a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma "lei eterna".

A divisão do trabalho, que já atrás (pp. [15-18]) encontrámos como uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, pelo que no seio desta classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros activos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios. No seio desta classe pode esta cisão da mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas em que a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e teriam um poder distinto do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária, e já atrás ficou dito o que era necessário sobre estas premissas (pp. [18-19, 22-23]).

Ora, se na concepção do curso da história desligarmos as ideias da classe dominante da classe dominante, se lhes atribuirmos uma existência autónoma, se nos ficarmos por que numa época dominaram estas e aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção e com os produtores destas ideias, se, portanto, deixarmos de fora os indivíduos e as condições do mundo que estão na base das ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia dominaram os conceitos honra, lealdade, etc., durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos liberdade, igualdade, etc.[1 23] Em média, é isto que a própria classe dominante imagina. Esta concepção da história, que a todos os historiadores é comum, em especial a partir do século XVIII, há-de necessariamente dar com o fenómeno de que dominam ideias cada vez mais abstractas, isto é ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. É que cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela, é obrigada, apenas para realizar o seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse comunitário de todos os membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal [ideell]: a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas. A classe revolucionante entra em cena desde o princípio, já que tem pela frente uma classe, não como classe, mas como representante de toda a sociedade, ela aparece como a massa inteira da sociedade face à única classe, a dominante. E consegue-o porque, a princípio, o seu interesse anda realmente ainda mais ligado ao interesse comunitário de todas a demais classes não dominantes, porque sob a pressão das condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular. A sua vitória aproveita também, por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não se tornam dominantes, mas apenas na medida em que permite a estes indivíduos subirem à classe dominante. Quando burguesia francesa derrubou o domínio da aristocracia, tornou desse modo possível a muitos proletários subirem acima do proletariado, mas apenas na medida em que se tornaram burgueses. Cada nova classe, por isso, instaura o seu domínio apenas sobre uma base mais ampla do que a da até aí dominante, pelo que, em contrapartida, mais tarde também o antagonismo da classe não dominante contra a agora dominante se desenvolve muito mais aguda e profundamente. Por ambas as razões é determinado o facto de que a luta a travar contra a nova classe dominante por seu turno visará uma negação mais radical, mais decidida, das condições sociais até aí vigentes do que fora possível a todas as classes que anteriormente procuraram dominar.

Toda esta aparência de que o domínio de uma determinada classe seria apenas o domínio de certas ideias cessa, naturalmente, por si mesma logo que o domínio de classes em geral deixa de ser a forma da ordem social, logo que, portanto, deixa de ser necessário apresentar um interesse particular como geral ou "o geral" como dominante.

Uma vez separadas as ideias dominantes dos indivíduos dominantes, e sobretudo das relações decorrentes de uma dada fase do modo de produção, e atingido assim o resultado de que na história dominam sempre as ideias, é muito fácil abstrair destas várias ideias "a ideia", a Ideia, etc., como o que domina na história, e entender assim todas as diferentes ideias e conceitos como "autodeterminações" do conceito que se desenvolve na história. E, então, também é natural que todas as relações dos homens possam ser derivadas do conceito de Homem, do Homem tal como representado, da essência do Homem, do Homem. Foi o que fez a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa, no fim da Filosofia da História, que "apenas considerou o curso do conceito" e que na história apresentou a "verdadeira teodiceia" (p. 446). Podemos agora voltar aos produtores do "conceito", aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chegamos então a esta conclusão: os filósofos, os pensadores como tais, desde sempre dominaram na história — uma conclusão que, como vemos, já foi expressa por Hegel.[1 24] Todo o truque de demonstrar na história a soberania do espírito (a hierarquia, em Stirner) reduz-se, portanto, aos seguintes três esforços.

N.º 1. É preciso separar as ideias dos que dominam por razões empíricas, em condições empíricas e como indivíduos materiais, destes mesmos que dominam, e por esta via reconhecer o domínio das ideias ou ilusões na história.

N.º 2. É preciso pôr uma ordem neste domínio das ideias, demonstrar uma conexão mística entre as ideias que sucessivamente dominam, o que se consegue pela via de considerá-las "autodeterminações do conceito" (e isto é possível pelo facto de estas ideias, graças à sua base empírica, estarem realmente em conexão entre si, e pelo facto de elas, entendidas como meras ideias, se tornarem autodistinções, diferenças feitas pelo pensamento).

N.º 3. Para eliminar o aspecto místico deste "conceito que se autodetermina", transformam-no numa pessoa — "a Consciência de Si" —, ou, para parecerem verdadeiramente materialistas, numa série de pessoas que representam "o conceito" na história, nos "pensadores", nos "filósofos", nos ideólogos, que agora de novo são entendidos como os fabricantes da história, como o "Conselho dos Guardiães", como os dominantes. Deste modo eliminaram da história todos os elementos materialistas, e puderam então dar rédea solta ao seu corcel especulativo.

Este método histórico que dominou na Alemanha, e especialmente a razão por que dominou, têm de ser explicados a partir da conexão com a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, as ilusões dos juristas, políticos (entre os quais, também, os estadistas práticos), a partir das divagações dogmáticas e distorções destes sujeitos, ilusão aquela que muito simplesmente se explica pela sua posição prática na vida, pela sua actividade e pela divisão do trabalho.

Enquanto na vida comum cada shopkeeper sabe muito bem distinguir entre aquilo que alguém pretende ser e aquilo que é realmente, a verdade é que a nossa historiografia ainda não atingiu este reconhecimento trivial. Ela acredita que todas as épocas são, literalmente, aquilo que dizem e imaginam ser.

Instrumentos de produção e formas de propriedade

Do primeiro, decorre a premissa de uma divisão do trabalho já desenvolvida e de um extenso comércio; do segundo, a localidade. No primeiro caso, os indivíduos têm de ser reunidos, no segundo caso descobrem-se, a par do instrumento de produção dado, a si próprios como instrumentos de produção. Entra aqui, portanto, a diferença entre os instrumentos de produção naturais e os que foram criados pela civilização. A terra (a água, etc.) pode ser considerada como um instrumento de produção natural. No primeiro caso, no caso de um instrumento de produção natural, os indivíduos são subordinados à natureza; no segundo caso, a um produto do trabalho. No primeiro caso, a propriedade (propriedade da terra) surge, por isso, também como domínio natural directo, no segundo como domínio do trabalho, em especial do trabalho acumulado, do capital. O primeiro caso pressupõe que os indivíduos se encontram ligados por algum vinculo, seja a família, a tribo, a própria terra, etc.; o segundo caso, que são independentes uns dos outros e apenas unidos pela troca. No primeiro caso, a troca é principalmente uma troca entre os homens e a natureza, uma troca em que o trabalho de um é trocado contra os produtos da outra; no segundo caso, ela é, predominantemente, troca dos homens entre si. No primeiro caso, chega o senso comum dos homens, a actividade manual e a intelectual não estão ainda separadas; no segundo caso, tem de estar já consumada na prática a divisão entre trabalho intelectual e manual. No primeiro caso, o domínio do proprietário sobre os não proprietários pode assentar em relações pessoais, sobre uma espécie de comunidade; no segundo caso, ele tem de ter assumido uma forma concreta num terceiro elemento, o dinheiro. No primeiro caso, existe a pequena indústria, mas subordinada à utilização do instrumento de produção natural, e por isso sem repartição do trabalho por vários indivíduos; no segundo caso, a indústria existe apenas na e pela divisão do trabalho.

Até aqui temos tomado os instrumentos de produção como ponto de partida, e já aqui se revelou a necessidade da propriedade privada para certas etapas industriais. Na industrie extractive, a propriedade privada ainda coincide completamente com o trabalho; na pequena indústria, e em toda a agricultura até aos nossos dias, a propriedade é consequência necessária dos instrumentos de produção existentes; na grande indústria, pela primeira vez, é produto desta a contradição entre o instrumento de produção e a propriedade privada, e para produzir tal contradição tem de estar já muito desenvolvida. Por isso, só com a grande indústria é também possível a abolição da propriedade privada.

A divisão do trabalho material e intelectual. Separação da cidade e do campo. O sistema das corporações

A maior divisão do trabalho material e intelectual é a separação da cidade e do campo. A oposição [Gegensatz] entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie para a civilização, do sistema tribal para o Estado, da localidade para a nação, e estende-se através de toda a história da civilização até aos nossos dias (a Anti-Corn-Law League[1 25])

Com a cidade, está ao mesmo tempo dada a necessidade da administração, da polícia, dos impostos, etc., em suma, do sistema municipal [des Gemeindewesens] e, assim, da política em geral. Aqui se revelou primeiro a divisão da população em duas grandes classes, a qual assenta directamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade é já a realidade da concentração da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres, das necessidades, ao passo que o campo torna patente precisamente a realidade oposta, o isolamento e a solidão. A oposição entre cidade e campo só pode existir no quadro da propriedade privada. É a expressão mais crassa da subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, a uma actividade determinada que lhe é imposta, uma subordinação que de um faz um animal limitado da cidade, do outro um animal limitado do campo, e que dia a dia de novo produz a oposição dos interesses de ambos. O trabalho é aqui, de novo, o principal, o poder sobre os indivíduos, e enquanto este existir tem de existir também a propriedade privada. A abolição da oposição de cidade e campo é uma das primeiras condições da comunidade, uma condição que, por seu turno, depende de um grande número de premissas materiais e que a simples vontade não consegue preencher, como qualquer pessoa vê à primeira vista. (Estas condições têm ainda de ser aqui desenvolvidas.) A separação de cidade e campo pode ser também tomada como a divisão de capital e propriedade fundiária, como o começo de uma existência e desenvolvimento do capital independente da propriedade fundiária, do capital, ou seja, uma propriedade que tem a sua base meramente no trabalho e na troca.

Nas cidades que, na Idade Média, não tinham sido recebidas já feitas da história anterior e se formaram a partir dos servos da gleba que se tinham tornado livres, o trabalho particular de cada um era a sua única propriedade, além do pequeno capital que trazia consigo e que consistia quase só da mais necessária ferramenta do ofício. A concorrência dos servos fugidos que acorriam à cidade, a guerra permanente do campo contra as cidades e, com ela, a necessidade de um poder armado organizado das cidades, o vínculo da propriedade comum de um determinado trabalho, a necessidade de edifícios comuns para venda das suas mercadorias numa altura em que os artesãos eram, ao mesmo tempo, commerçants, e a consequente exclusão destes edifícios dos que nada tinham a ver com a profissão, oposição de interesses dos diferentes ofícios entre si, a necessidade de protecção do trabalho penosamente aprendido e a organização feudal de todo o país foram as causas da união dos operários de cada um dos ofícios em corporações. Não temos aqui de entrar nas múltiplas modificações do sistema corporativo surgidas ao longo de desenvolvimentos históricos posteriores. A fuga dos servos para as cidades teve ininterruptamente lugar durante toda a Idade Média. Estes servos, perseguidos no campo pelos seus senhores, vinham isolados para as cidades, onde já encontravam uma comunidade organizada contra a qual nada podiam e na qual tinham de se submeter à posição que lhes apontavam a necessidade do seu trabalho e o interesse dos seus concorrentes organizados da cidade. Estes operários, que entravam um por um, nunca puderam constituir um poder, porque se o seu trabalho era regulado pelas corporações e tinha de ser aprendido, os mestres das corporações submetiam-nos a si e organizavam-nos segundo o seu interesse, ou, se o seu trabalho não tinha de ser aprendido, e não era por isso regulado pelas corporações, mas trabalho de jorna, nunca chegaram a uma organização, e permaneceram plebe desorganizada. A necessidade do trabalho de jorna nas cidades criou a plebe.

Estas cidades eram verdadeiras "associações", criadas pela necessidade imediata, pelo cuidado com a protecção da propriedade, e para multiplicar os meios de produção e os meios de defesa de cada um dos membros. A plebe destas cidades ficou privada de todo o poder pelo facto de se compor de indivíduos estranhos entre si e que haviam chegado isoladamente, os quais, sem organização, se contrapunham a um poder organizado, equipado para a guerra, que os vigiava zelosamente. Os oficiais e aprendizes estavam organizados, em cada ofício, da maneira que melhor correspondia ao interesse dos mestres; a relação patriarcal em que se encontravam face aos mestres dava a estes um poder dobrado, por um lado na sua influência directa sobre toda a vida dos oficiais, e depois porque, para os oficiais, o trabalharem com o mesmo mestre era um vínculo real que os unia face aos oficiais dos restantes mestres e deles os separava, e finalmente os oficiais estavam desde logo atados à ordem vigente pelo interesse que tinham em tornar-se eles próprios mestres. Enquanto, por isso, a plebe pelo menos se ergueu em motins contra toda a ordem da cidade, os quais, no entanto, dada a sua falta de poder, não produziram quaisquer efeitos, os oficiais chegaram tão-só a pequenas insubordinações no seio de corporações separadas e de acordo com a existência do próprio sistema das guildas. Os grandes levantamentos da Idade Média partiram todos do campo, mas ficaram igualmente sem qualquer êxito devido à dispersão dos camponeses e à crueza que dela decorre. —

O capital, nestas cidades, era um capital natural, que consistia da casa, das ferramentas do ofício e dos compradores hereditários naturais, e que, devido ao intercâmbio não desenvolvido e à escassa circulação, tinha de se transmitir de pais a filhos como irrealizável. Não era este capital, ao contrário do moderno, um capital avaliável em dinheiro e para o qual é indiferente estar investido nesta ou naquela coisa, mas um capital directamente ligado ao trabalho particular do possuidor, absolutamente inseparável deste, e nessa medida, um capital de estado [ou de ordem social ständisches Kapital]. — A divisão do trabalho nas cidades entre as diferentes corporações era ainda [completamente natural] e nas próprias corporações não era realizada entre os diferentes operários. Cada operário tinha de ser versado num ciclo inteiro de trabalhos, tinha de saber fazer tudo o que se podia fazer com as suas ferramentas; o intercâmbio reduzido e a escassa ligação das diferentes cidades entre si, a falta de população e a limitação das necessidades não permitiram o aparecimento de uma maior divisão do trabalho, e por isso todo aquele que queria ser mestre tinha de dominar completamente o seu ofício. Por isso, nos artesãos medievais se encontra ainda um interesse no seu trabalho especial e em ser destro nele que podia elevar-se a um certo sentido artístico limitado. Mas também por isso cada artesão medieval se entregava completamente ao seu trabalho, mantinha com ele uma grata relação de servo e estava muito mais subordinado a ele do que o operário moderno, ao qual o seu trabalho é indiferente.

Maior divisão do trabalho. Separação do comércio e da indústria. Divisão do trabalho entre as várias cidades. Manufactura

O alargamento seguinte da divisão do trabalho foi a separação de produção e intercâmbio, a formação de uma classe especial de comerciantes, uma separação que nas cidades historicamente herdadas fora transmitida (entre outras coisas, com os Judeus) e que nas cidades recém-formadas muito cedo surgiu. Estava, assim, dada a possibilidade de uma ligação comercial que ultrapassava os limites locais, uma possibilidade cuja realização dependia dos meios de comunicação existentes, do estado da segurança pública no campo condicionado pelas condições políticas (em toda a Idade Média, como é sabido, os comerciantes deslocavam-se em caravanas armadas), e das necessidades mais cruas ou mais desenvolvidas, consoante o nível de cultura respectivo, da região acessível ao intercâmbio.

Com o intercâmbio constituído numa classe especial, com o alargamento do comércio pelos comerciantes para além dos arredores imediatos da cidade, surge imediatamente uma acção recíproca entre a produção e o intercâmbio. As cidades entram em ligação umas com as outras, de uma cidade são levadas para outra novas ferramentas, e a divisão entre a produção e o intercâmbio em breve dá origem a uma nova divisão da produção entre [45] cada uma das cidades, cada uma das quais em breve explora um ramo predominante da indústria. A limitação local inicial começa a ser gradualmente dissolvida. —

Se as forças produtivas ganhas numa localidade, nomeadamente inventos, se perdem ou não para o desenvolvimento posterior depende simplesmente do alargamento do intercâmbio. Enquanto não existe um intercâmbio que ultrapasse a vizinhança imediata, cada invento tem de ser feito separadamente em cada localidade, e simples contingências. como irrupções de povos bárbaros, as próprias guerras habituais, são o bastante para fazer regressar uma região com forças produtivas e necessidades desenvolvidas ao ponto em que tem de começar tudo de princípio. Na história inicial, cada invento tinha de ser feito diariamente de novo e independentemente em cada localidade. Quão pouco a salvo de uma ruína completa estão forças produtivas desenvolvidas, até mesmo quando existe um comércio relativamente bastante extenso, demonstram os Fenícios, cujos inventos em grande parte se perderam por longo tempo devido à expulsão desta nação do comércio, à conquista de Alexandre e ao declínio que se lhe seguiu. E o mesmo acontece na Idade Média, por exemplo, com os vitrais. Só quando o intercâmbio se tornou intercâmbio mundial e tem por base a grande indústria é que está assegurada a duração das forças produtivas conquistadas. — A divisão do trabalho entre as diferentes cidades teve por consequência imediata o nascimento das manufacturas, dos ramos de produção que tinham ultrapassado o sistema corporativo. O primeiro florescimento das manufacturas — na Itália, e mais tarde na Flandres — teve como sua premissa histórica o intercâmbio com nações estrangeiras. Em outros países — Inglaterra e França, por exemplo — as manufacturas limitaram-se inicialmente ao mercado interno; As manufacturas têm por premissa, além das premissas mencionadas, ainda uma concentração já avançada da população — nomeadamente no campo — e do capital, tendo este começado a acumular-se nas mãos de indivíduos, em parte nas guildas, a despeito das leis corporativas, em parte entre os comerciantes.

Foi o trabalho que desde o inicio pressupôs uma máquina, ainda que na mais tosca das formas, que a muito breve trecho se mostrou o mais capaz de desenvolvimento. A tecelagem, anteriormente exercida no campo pelos camponeses, como actividade secundária, para se proverem com o vestuário necessário, foi o primeiro trabalho a receber um impulso e uma maior evolução com o alargamento do intercâmbio. A tecelagem foi a primeira manufactura, e permaneceu a principal. A procura de tecidos para o vestuário, que crescia à medida que aumentava a população, o começo da acumulação e mobilização do capital natural devida à circulação acelerada, a necessidade do luxo assim provocada e favorecida pelo gradual alargamento do intercâmbio em geral, deram à tecelagem, quantitativa e qualitativamente, um impulso que a arrancou da forma de produção precedente. A par dos camponeses que teciam para uso próprio, os quais continuaram e ainda continuam a existir, surge nas cidades uma nova classe de tecelões cujos tecidos se destinavam a todo o mercado interno e, as mais das vezes, também a mercados estrangeiros.

A tecelagem, um trabalho que na maior parte dos casos pouca habilidade exigia e que cedo se subdivide em inúmeros ramos, opunha-se, por toda a sua natureza, às peias da guilda. A tecelagem foi também por isso exercida sem organização corporativa, principalmente em aldeias e em vilas mercatórias que a pouco e pouco se tornaram cidades e, a curto prazo, as cidades mais florescentes de cada país.

Com a manufactura liberta das corporações mudaram também, imediatamente, as relações de propriedade. O primeiro progresso sobre o capital natural de estado [ou ordem social] verificou-se com o ascenso dos comerciantes, cujo capital era, desde o princípio, móvel, capital no sentido moderno, tanto quanto as condições de então no-lo permitem afirmar. O segundo progresso veio com a manufactura, a qual de novo mobilizou uma massa do capital natural e, no geral, aumentou a massa do capital móvel face ao natural.

A manufactura tornou-se, ao mesmo tempo, um refúgio dos camponeses contra as corporações que os excluíam ou lhes pagavam mal, do mesmo modo que anteriormente as cidades das corporações tinham [servido] aos camponeses de refúgio [47] contra [a nobreza rural que os oprimia].

Com o começo das manufacturas coincidiu um período de vagabundagem, ocasionado pela dissolução dos séquitos feudais, pela desmobilização dos populosos exércitos que tinham servido os reis contra os vassalos, pelo aperfeiçoamento da agricultura e pela transformação de grandes extensões de solo arável em pastagens. Já por aqui se vê como esta vagabundagem se encontra em rigorosa conexão com a dissolução do feudalismo. Já no século XIII ocorrem algumas épocas desta natureza, mas no fim do século XV e princípio do século XVI é que esta vagabundagem surge como um fenómeno geral e permanente. Estes vagabundos, que eram tão numerosos que Henrique VIII de Inglaterra, para só falar dele, mandou enforcar 72000, só com as maiores dificuldades e pela miséria mais extrema eram levados a trabalhar — e mesmo assim só ao cabo de longa resistência. O rápido florescimento das manufacturas, nomeadamente em Inglaterra, absorveu-os gradualmente. —

Com a manufactura, as diferentes nações entram numa relação de concorrência, numa luta comercial que se travou em guerras, protecções alfandegárias e proibições, ao passo que anteriormente as nações, tanto quanto estavam em ligação entre si, tinham prosseguido uma troca inofensiva umas com as outras. De ora em diante, o comércio tem importância política.

Com a manufactura, passa ao mesmo tempo a haver uma relação diferente do operário com quem lhe dá trabalho. Nas corporações continuava a existir a relação patriarcal entre os oficiais e o mestre; na manufactura, ocupa o lugar daquela a relação de dinheiro entre operário e capitalista; uma relação que, no campo e em pequenas cidades, conservou uma cor patriarcal, mas que nas cidades maiores, nas cidade realmente manufactureiras, desde cedo perdeu quase toda a coloração patriarcal.

A manufactura, e em geral o movimento da produção, recebeu um enorme ascenso com o alargamento do intercâmbio que teve lugar com o descobrimento da América e do caminho marítimo para a índia. Os novos produtos dali importados, nomeadamente as quantidades de ouro e prata que entraram em circulação e alteraram completamente a posição das classes face umas às outras e vibraram duro golpe na propriedade fundiária feudal e nos operários, as expedições de aventureiros, a colonização e, sobretudo, o alargamento agora tornado possível, e de dia para dia a estabelecer-se cada vez mais, dos mercados, que se transformam em mercado mundial, deram origem a uma nova fase do desenvolvimento histórico em que aqui, no geral, não vamos entrar. Pela colonização das terras recém-descobertas, a luta comercial das nações umas contra as outras recebeu novo alimento e, consequentemente, maior extensão e encarniçamento.

A expansão do comércio e da manufactura acelerou a acumulação do capital móvel, enquanto nas corporações, que nenhum estímulo conheceram para uma produção mais larga, o capital natural permaneceu estável ou diminuiu mesmo. O comércio e a manufactura criaram a grande burguesia, nas corporações concentrava-se a pequena burguesia, a qual agora já não dominava como antes nas cidades, e tinha de se dobrar ao domínio dos grandes comerciantes e proprietários de manufacturas. Daí o declínio das corporações assim que entr[aram] em contacto com a manufactura.

A relação das nações entre si no seu intercâmbio assumiu duas formas diferentes durante a época de que temos estado a falar. A princípio, a pequena quantidade do ouro e da prata em circulação condicionaram a proibição da exportação destes metais; e a indústria, na sua maior parte importada do estrangeiro e tornada necessária pela necessidade de dar trabalho à população crescente das cidades, não podia dispensar os privilégios que podiam ser concedidos, e naturalmente não apenas contra a concorrência interna, mas principalmente contra a externa. O privilégio local das guildas foi alargado, nestas proibições originais, a toda a nação. Os direitos alfandegários nasceram dos tributos que os senhores feudais impunham aos comerciantes que atravessavam as suas regiões para não os pilharem, tributos que mais tarde foram igualmente impostos pelas cidades e constituíram, quando do aparecimento dos Estados modernos, o primeiro dos meios de o fisco arranjar dinheiro.

O surgimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, o desenvolvimento gradual da indústria, o rápido ascenso do comércio e o florescimento, assim provocado, da burguesia não corporativa e do dinheiro deram a estas medidas uma outra importância. O Estado, que de dia para dia menos podia dispensar o dinheiro, manteve, por considerações fiscais, a proibição da exportação de ouro e prata; os burgueses, para os quais estas quantidades de dinheiro lançadas recentemente no mercado eram o objecto principal de compra especulativa, ficaram completamente satisfeitos com a medida; os privilégios anteriores tornaram-se uma fonte de receitas para o governo e eram vendidos por dinheiro; na legislação alfandegária apareceram os direitos de exportação, os quais, [colocando] apenas um obstáculo no caminho da indústria, tinham um objectivo meramente fiscal. —

O segundo período teve início por meados do século XVII, e durou quase até ao final do século XVIII. O comércio e a navegação tinham-se expandido mais depressa do que a manufactura, que desempenhava um papel secundário; as colónias começaram a tornar-se consumidores importantes, as diferentes nações repartiram entre si, em longas lutas, o mercado mundial que se abria. Este período começa com as leis da navegação e os monopólios coloniais. A concorrência das nações entre si era, tanto quanto possível, excluída por meio de tarifas, proibições e tratados; e, em última instância, a luta de concorrência era conduzida e decidida por meio de guerras (especialmente guerras marítimas). A nação mais poderosa no mar, os Ingleses, conservaram a sua preponderância no comércio e na manufactura. Já aqui a concentração num país.

A manufactura estava permanentemente protegida por direitos alfandegários de protecção no mercado interno, por monopólios no mercado colonial e, no mercado externo, pelo maior número possível de direitos diferenciais. O trabalho do material produzido no próprio país era favorecido (lã e linho na Inglaterra, seda na França), proibida a exportação da matéria-prima produzida no pais (a lã, na Inglaterra) e o [trabalho] da matéria-prima importada era descurado ou reprimido (o algodão, em Inglaterra). A nação predominante no comércio marítimo e no poderio colonial assegurava para si, como é evidente, também a maior expansão quantitativa e qualitativa da manufactura. A manufactura de modo nenhum podia dispensar a protecção, pois que pode perder o seu mercado e arruinar-se com a mais pequena mudança que se opere noutros países; é fácil introduzi-la num país desde que haja condições relativamente favoráveis, e por isso mesmo é fácil destruí-la. Pelo modo como era realizada, nomeadamente no campo, durante o século XVIII, ela está tão ligada às condições de vida de uma grande massa de indivíduos que nenhum país pode arriscar-se a pôr em jogo a sua existência com a permissão da livre concorrência. Por isso, na medida em que consegue exportar, a manufactura depende do alargamento ou da restrição do comércio e exerce [sobre ele], por seu turno, um efeito rela[tivamente] muito pequeno. Daí a sua [importância] secundária, e daí a influência dos [comerciantes] no século XVIII. Foram os comerciantes, e especialmente os armadores, que antes de todos os outros insistiram na protecção do Estado e nos monopólios; os proprietários de manufacturas também exigiram e conseguiram protecção, é certo, mas em importância política ficaram sempre atrás dos comerciantes. As cidades comerciais, especialmente as cidades do litoral, tornaram-se em certa medida civilizadas e da grande burguesia, ao passo que nas cidades fabris subsistiu a mais marcada atmosfera da pequena burguesia. Cf. Aikin etc. O século XVIII foi o do comércio. Pinto di-lo expressamente: "Le commerce fait la marotte du siècle", e: "Depuis quelque temps il n'est plus question que de commerce, de navigation et de marine.".

Este período é também caracterizado pelo fim das proibições de exportação de ouro e prata, pelo aparecimento do comércio de dinheiro, dos bancos, das dívidas do Estado, do papel-moeda, da especulação com acções e obrigações, da agiotagem em todos os artigos e da formação da finança em geral. De novo o capital perdeu uma grande parte do carácter natural que ainda trazia consigo.

A divisão do trabalho mais extensa. A grande indústria

Desenvolvendo-se irresistivelmente no século XVII, a concentração do comércio e da manufactura num país, a Inglaterra, foi criando para este país um relativo mercado mundial e, com ele, uma procura dos produtos manufacturados deste país que já não podia ser satisfeita pelas forças produtivas até aí existentes na indústria. Esta procura, que crescera mais do que as forças de produção, foi a força motora que deu origem ao terceiro período da propriedade privada desde a Idade Média com a criação da grande indústria — a aplicação de forças elementares para fins industriais, a maquinaria e a mais extensa divisão do trabalho. As restantes condições desta nova fase — a liberdade de concorrência no interior da nação, o desenvolvimento da mecânica teórica (a mecânica aperfeiçoada por Newton foi, em geral, a ciência mais popular em França e Inglaterra no século XVIII), etc. — existiam já em Inglaterra. (A livre concorrência dentro da própria nação teve em toda a parte de ser conquistada por meio de uma revolução — em 1640 e 1688 em Inglaterra, em 1789 em França.)

A concorrência em breve obrigava todos os países que queriam conservar o seu papel histórico a proteger as suas manufacturas com novas medidas alfandegárias (os velhos direitos já não serviam contra a grande indústria), e logo a seguir a introduzir a grande indústria sob direitos alfandegários protectivos. A despeito destes meios de protecção a grande indústria universalizou a concorrência (ela é a liberdade prática de comércio, os direitos protectivos são nela apenas um paliativo, uma defesa na liberdade de comércio), estabeleceu os meios de comunicação e o mercado mundial moderno, submeteu a si o comércio, transformou todo o capital em capital industrial e criou assim a rápida circulação (o desenvolvimento da finança) e concentração dos capitais. Com a concorrência universal obrigou todos os indivíduos à mais intensa aplicação da sua energia. Aniquilou, tanto quanto lhe era possível, a ideologia, a religião, a moral, etc., e onde não o conseguiu fez delas uma mentira palpável. Foi ela que, pela primeira vez, criou a história universal, na medida em que tornou dependentes de todo o mundo todas as nações civilizadas e todos os indivíduos nelas existentes para a satisfação das suas necessidades, e aniquilou a exclusividade até aí natural de cada uma das nações. Subordinou ao capital a ciência da natureza e retirou à divisão do trabalho a última aparência de naturalidade. Dum modo geral, aniquilou a naturalidade, tanto quanto é possível no seio do trabalho, e resolveu todas as relações naturais em relações de dinheiro. No lugar das cidades surgidas naturalmente criou as grandes cidades industriais modernas, nascidas de um dia para o outro. Onde penetrou, destruiu o artesanato e, dum modo geral, todas as fases anteriores da indústria. Completou a vitória da cidade comercial sobre o campo. A sua primeira premissa é o sistema automático. O seu desenvolvimento criou uma massa de forças produtivas para as quais a propriedade privada se tornou um grilhão, do mesmo modo que a corporação para a manufactura e a pequena oficina rural para o artesanato em desenvolvimento. Sob a propriedade privada, estas forças produtivas recebem um desenvolvimento apenas unilateral, tornam-se forças destrutivas para a maioria, e uma grande quantidade destas forças não podem sequer ser aplicadas na propriedade privada. Criou, em geral, por toda a parte, as mesmas relações entre as classes da sociedade, e aniquilou, por este meio, a particularidade de cada uma das nacionalidades. E, finalmente, ao passo que a burguesia de cada nação ainda conserva interesses nacionais particulares, a grande indústria criou uma classe que, em todas as nações, tem o mesmo interesse, e na qual a nacionalidade está já anulada, uma classe que realmente já está livre de todo o velho mundo e, ao mesmo tempo, a ele se contrapõe. Torna insuportável para o operário não só a relação com o capitalista mas o próprio trabalho.

Como se compreende, a grande indústria não atinge em todas as localidades de um país o mesmo nível de desenvolvimento. Isto, contudo, não detém o movimento de classe do proletariado, visto que os proletários criados pela grande indústria tomam a vanguarda deste movimento e arrastam consigo toda a massa, e visto que os operários excluídos da grande indústria são atirados por esta grande indústria para uma condição de vida ainda pior do que a dos operários da própria grande indústria. Do mesmo modo actuam os países em que está desenvolvida uma grande indústria sobre os países plus ou moins não industriais, na medida em que estes são arrastados para a luta universal de concorrência pelo intercâmbio mundial.

Estas diferentes formas são outras tantas formas da organização do trabalho e, assim, da propriedade. Em todos os períodos teve lugar uma unificação das forças produtivas existentes, na medida em que as necessidades a tornavam necessária.

A contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio como base de uma revolução social

Esta contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio, que, como vimos, já várias vezes ocorreu na história até aos nossos dias sem, contudo, pôr em perigo a base da mesma, teve todas as vezes de rebentar numa revolução, assumindo então, ao mesmo tempo, várias formas secundárias, como totalidade de colisões, como colisões de diferentes classes, como contradição da consciência, luta de ideias, etc., luta política, etc. A partir de um ponto de vista limitado, pode-se isolar uma destas formas secundárias e considerá-la como a base destas revoluções, o que acontece com toda a facilidade, visto que os indivíduos dos quais partiram as revoluções se iludiram, segundo o seu grau de educação e a etapa do desenvolvimento histórico, sobre a sua própria actividade.

Todas as colisões da história têm, pois, segundo a nossa concepção, a sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio. Não é, de resto, necessário que esta contradição tenha sido levada ao extremo num pais para conduzir a colisões nesse pais. A concorrência com países industrialmente mais desenvolvidos, provocada por um intercâmbio internacional mais alargado, é suficiente para criar uma contradição semelhante também em países com uma indústria menos desenvolvida (por exemplo, o proletariado latente na Alemanha, feito surgir pela concorrência da indústria inglesa).

A concorrência dos indivíduos e a formação das classes. Desenvolvimento da contradição entre os indivíduos e as condições da sua vida. A comunidade ilusória dos indivíduos na sociedade burguesa e a unidade real dos indivíduos no comunismo. A subjugação das condições de vida da sociedade ao poder dos indivíduos unidos

A concorrência isola os indivíduos uns contra os outros, não apenas os burgueses mas ainda mais os proletários, e isto a despeito de os aproximar. Daí que demore muito tempo até que estes indivíduos se possam unir, para não referir o facto de que os meios necessários para esta união a fim de não ser meramente local —, as grandes cidades industriais e as comunicações baratas e rápidas, têm primeiro de ser estabelecidos pela grande indústria, e por isso só ao cabo de longas lutas se consegue vencer todo o poder organizado contraposto a estes indivíduos isolados que vivem no seio de relações que diariamente reproduzem o isolamento. Reclamar o contrário seria o mesmo que reclamar a não existência de concorrência nesta época histórica determinada, ou que os indivíduos banissem da cabeça relações sobre as quais, enquanto isolados, não têm nenhum controlo.

Construção de casas. Entre os selvagens, é a coisa mais natural que cada família tenha a sua própria caverna ou cabana, como entre os nómadas a tenda separada de cada família. Esta economia doméstica separada é tornada ainda mais necessária pelo desenvolvimento posterior da propriedade privada. Entre os povos agrícolas, a economia doméstica comum é tão impossível quanto a cultura comum do solo. Foi um grande progresso a construção de cidades. Em todos os períodos até hoje, entretanto, a abolição [Aufhebung] da economia separada, a qual não se pode separar da abolição da propriedade privada, era simplesmente impossível, dado que não existiam ainda as condições materiais para ela. A instituição de uma economia doméstica comum pressupõe o desenvolvimento da maquinaria, da utilização das forças naturais e de muitas outras forças produtivas — por exemplo, água canalizada. iluminação a gás, aquecimento a vapor, etc., abolição [da oposição] de cidade e campo. Sem estas condições, a economia comum não seria ela própria, por seu turno, uma nova força de produção, careceria de toda a base material, assentaria num fundamento meramente teórico, isto é, seria uma simples mania e não passaria de economia monástica. O que foi possível revela-se na aglomeração nas cidades e na construção de casas comuns com vários objectivos determinados (prisões, casernas, etc.). Que a abolição da economia separada não se pode separar da abolição da família por si mesmo se compreende.

(A afirmação, tão frequente em São Max, de que cada um é tudo o que é por meio do Estado, é no fundo o mesmo que dizer que o burguês é apenas um exemplar da espécie burguesa; uma afirmação que pressupõe que a classe dos burgueses existisse já antes dos indivíduos que a constituem.)

Os burgueses de todas as cidades eram obrigados, na Idade Média, a unir-se contra a nobreza rural para salvarem a pele; a expansão do comércio, o estabelecimento de comunicações, levou as diferentes cidades a conhecer outras cidades, as quais tinham afirmado os mesmos interesses na luta contra o mesmo contrário. Das muitas corporações locais de burgueses de cada uma das cidades nasceu, a princípio muito gradualmente, a classe dos burgueses. As condições de vida de cada um dos burgueses tornaram-se, ao mesmo tempo, pelo antagonismo contra as relações vigentes, e pelo tipo de trabalho por aquelas condicionado, condições que a todos eles eram comuns e independentes de cada um deles. Os burgueses tinham criado estas condições na medida em que haviam cortado com o vínculo feudal, e foram por elas criados na medida em que foram condicionados pelo seu antagonismo contra a feudalidade que já encontraram vigente. Com o estabelecimento da ligação entre as diferentes cidades, estas condições comuns desenvolveram-se e tornaram-se condições de classe. As mesmas condições, o mesmo contrário, os mesmos interesses, tinham também de dar origem, por toda a parte e dum modo geral, a costumes iguais. A própria burguesia só com as suas condições progressivamente se desenvolve, cinde-se de novo em diferentes fracções segundo a divisão do trabalho, e acaba por absorver em si todas as classes possuidoras precedentes (ao passo que transformou a maioria das classes não possuidoras que encontrou e uma parte das classes até aí possuidoras numa nova classe, o proletariado), na medida em que toda a propriedade que encontrou é transformada em capital comercial ou industrial.

Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que têm de travar uma luta comum contra uma outra classe; de resto, contrapõem-se de novo hostilmente uns aos outros, em concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se, por seu turno, face aos indivíduos, pelo que estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes indicada pela classe a sua posição na vida e, com esta, o seu desenvolvimento pessoal —, estão subsumidos na classe. É este o mesmo fenómeno que a subordinação [Subsumtion] de cada um dos indivíduos à divisão do trabalho, e só pode ser eliminado por meio da abolição da propriedade privada e do próprio trabalho. Como esta subordinação dos indivíduos à classe se desenvolve numa subordinação a toda a série de representações. etc., já foi por nós referido variadas vezes. — Se se considera filosoficamente este desenvolvimento dos indivíduos nas condições comuns de existência das ordens e classes que se sucedem historicamente, e nas representações gerais que assim lhes são impostas, é certamente fácil imaginar que nestes indivíduos se desenvolveu a espécie, ou o Homem, ou que eles desenvolveram o Homem; um imaginar com que se dá à história algumas sonoras bofetadas. Pode-se então tomar estes diferentes estados [ou ordens sociais] e classes como especificações da expressão geral, como subespécies da espécie, como fases de desenvolvimento do Homem.

Esta subordinação dos indivíduos a determinadas classes não pode ser abolida antes que se tenha formado uma classe que, contra a classe dominante, já não tenha de afirmar nenhum interesse particular de classe.

A transformação dos poderes (relações) das pessoas em das coisas [sachliche] por meio da divisão do trabalho também não pode ser abolida pelo facto de se banir da cabeça a sua representação geral, mas apenas pelo facto de os indivíduos submeterem de novo a si estes poderes das coisas e abolirem a divisão do trabalho. Isto não é possível sem a comunidade. Só na comunidade [com outros, é que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver em todas as direcções as suas aptidões; só na comunidade, portanto, se torna possível a liberdade pessoal. Nos substitutos precedentes da comunidade, no Estado, etc., a liberdade pessoal existiu apenas para os indivíduos desenvolvidos nas relações da classe dominante, e tão-só na medida em que eram indivíduos dessa classe. A comunidade aparente em que se uniram, até aqui, os indivíduos autonomizou-se sempre face a eles, e foi, ao mesmo tempo, por ser uma união de uma classe face a outra, para a classe dominada não só uma comunidade completamente ilusória como também um novo grilhão. Na comunidade real, os indivíduos conseguem, na e pela sua associação, simultaneamente a sua liberdade.

Os indivíduos partiram sempre de si, mas, naturalmente, de si no quadro das suas condições e relações históricas dadas, não do indivíduo "puro" no sentido dos ideólogos. Mas no curso do desenvolvimento histórico, e precisamente pela autonomização das relações sociais, que é inevitável no quadro da divisão do trabalho, sobressai uma diferença entre a vida de todos os indivíduos enquanto ela é pessoal e na medida em que ela está subordinada a um qualquer ramo de trabalho e às condições respectivas. (Isto não deve ser entendido como se, por exemplo, quem vive de rendimentos, o capitalista, etc., deixassem de ser pessoas; mas a sua personalidade está condicionada e determinada por relações de classe muito bem definidas, e a diferença só se torna patente no antagonismo face a uma outra classe, e para eles mesmos apenas quando ficam arruinados.) No estado [ou ordem social] (e, ainda mais, na tribo) isto ainda está oculto, por exemplo um nobre é sempre um nobre, o roturier é sempre um roturier, independentemente das suas demais relações, uma qualidade indissociável da sua individualidade. A diferença do indivíduo pessoal contra o indivíduo da classe, o carácter acidental das condições de vida para o indivíduo, surge apenas com o aparecimento da classe, que é ela própria um produto da burguesia. A concorrência e luta dos indivíduos entre si produz e desenvolve, pela primeira vez, este carácter acidental como tal. Na representação, os indivíduos são, por isso, sob o domínio da burguesia, mais livres do que anteriormente, porque as suas condições de vida lhes são acidentais; na realidade são, naturalmente, menos livres, porque mais subordinados ao poder das coisas. A diferença do estado ou ordem social sobressai nomeadamente no antagonismo da burguesia contra o proletariado. Quando o estado ou ordem social dos burgueses citadinos, as corporações, etc., surgiram face à nobreza rural, a sua condição de existência — a propriedade móvel e o trabalho artesanal, que já tinham uma existência latente antes da sua separação do vínculo feudal apareceu como algo positivo que era feito valer contra a propriedade fundiária feudal, e daí que, por seu turno, tenha começado também por assumir, a seu modo, a forma feudal. E certo que os servos fugitivos tratavam a sua servidão anterior como algo acidental à sua personalidade. Mas aqui eles faziam apenas o mesmo que fazem todas as classes que se libertam de um grilhão, e depois não se libertaram como classe, mas isoladamente. Além disso, não saíram do domínio do sistema de estados ou ordens sociais, mas apenas formaram um novo estado ou ordem social e conservaram o seu modo de trabalho anterior também na nova posição, e desenvolveram-no libertando-o dos seus grilhões anteriores, que já não correspondiam ao desenvolvimento já atingido.

No caso dos proletários, pelo contrário, a sua própria condição de vida, o trabalho, e com ele todas as condições de existência da sociedade actual, tornou-se para eles algo acidental sobre que cada um dos proletários não tem nenhum controlo, e sobre que nenhuma organização social lhes pode dar um controlo, e a contradição entre a personalidade do proletário individual e a condição de vida que lhe é imposta, o trabalho, torna-se patente para ele mesmo, nomeadamente porque ele já desde a juventude é sacrificado e porque lhe falta a oportunidade de alcançar, no seio da sua classe, as condições que o coloquem na outra. —

N. B. Não esquecer que já a necessidade de existirem os servos, e a impossibilidade da grande exploração agrícola que a repartição dos allotments pelos servos acarretava, a muito breve trecho reduzia as obrigações dos servos face aos senhores feudais a uma média de pagamentos em géneros e de corveias que tornou possível ao servo a acumulação de propriedade móvel, e assim facilitou que escapasse à posse do seu senhor e lhe deu a perspectiva do seu progresso como burguês da cidade; produziu também gradações entre os servos, pelo que os servos que fogem já são meios burgueses. Com isto se torna igualmente óbvio que os camponeses servos peritos num ofício eram os que mais possibilidade tinham de adquirir propriedade móvel.

Enquanto, por conseguinte, os servos fugitivos só queriam desenvolver livremente e fazer valer as suas condições de existência já presentes, e por isso, em última instância, apenas chegaram ao trabalho livre, os proletários têm de abolir a sua própria condição de existência anterior, que é simultaneamente a de toda a sociedade anterior, o trabalho, para valerem como pessoas. Por isso, encontram-se também em antagonismo directo com a forma em que até aqui os indivíduos da sociedade se deram uma expressão global, o Estado, e têm de derrubar o Estado para afirmarem a sua personalidade.

Decorre de todo o desenvolvimento anterior que a relação comunitária em que entraram os indivíduos de uma classe, e que era condicionada pelos seus interesses comunitários face a terceiros, foi sempre uma comunidade à qual os indivíduos só pertenceram enquanto indivíduos médios, apenas na medida em que viviam nas condições de existência da sua classe, uma relação em que eles não tomaram parte enquanto indivíduos, mas enquanto membros da classe. No caso da comunidade dos proletários revolucionários, ao invés, que tomam sob o seu controlo as suas condições de existência e as de todos os membros da sociedade, as coisas passam-se precisamente ao contrário; nela os indivíduos tomam parte enquanto indivíduos. É justamente a união dos indivíduos (naturalmente, no quadro da premissa das forças produtivas agora desenvolvidas) que coloca as condições do livre desenvolvimento e movimento dos indivíduos sob o seu controlo, condições que até aqui estavam abandonadas ao acaso e que se tinham autonomizado contra cada um dos indivíduos, precisamente devido à sua separação como indivíduos, devido à sua união necessária que fora dada pela divisão do trabalho e se tornara, pela sua separação, um elo que lhes era estranho. Até aqui a união era uma união (de modo nenhum arbitrária, como por exemplo é apresentada no Contrat social, mas necessária) nestas condições (compare-se, por exemplo, a formação do Estado norte-americano e as repúblicas sul-americanas) em que os indivíduos tinham então o prazer da acidentalidade. A este direito de se poder deliciar em paz com a acidentalidade em determinadas condições dava-se, até aqui, o nome de liberdade pessoal. — Estas condições de existência são apenas, naturalmente, as respectivas forças de produção e formas de intercâmbio.

O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores por transformar radicalmente a base de todas as relações de produção e de intercâmbio anteriores e por tratar conscientemente, pela primeira vez, todas as premissas naturais como criaturas dos homens anteriores, por despi-las da sua naturalidade e submetê-las ao poder dos indivíduos unidos. A sua instauração é, por isso, essencialmente económica, a produção material das condições desta união; ela faz das condições existentes condições da união. A realidade que o comunismo cria é precisamente a base objectiva para tornar impossível que essa realidade seja independente dos indivíduos, na medida, todavia, em que essa realidade mais não é do que um produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos. Os comunistas, portanto, tratam na prática como inorgânicas as condições criadas pela produção e intercâmbio anteriores, sem contudo imaginarem que as gerações anteriores tinham tido o plano de, ou estavam destinadas a, fornecer-lhes material, e sem acreditarem que estas condições eram inorgânicas para os indivíduos que as criaram.

A contradição entre os indivíduos e as suas condições de vida como uma contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio. O desenvolvimento das forças produtivas e a mudança das formas de intercâmbio

A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo acidental não é uma distinção conceptual, mas um facto histórico. Esta distinção tem um sentido diferente em tempos diferentes, por exemplo, o estado [ou ordem social] como algo acidental ao indivíduo no século XVIII, e plus ou moins também a família. Não é uma distinção que nós tenhamos de fazer para cada época, mas sim uma distinção que cada época faz com os diferentes elementos que encontra, e não segundo um conceito, mas forçada pelas colisões materiais da vida. O que surge como acidental a um tempo posterior em contraste com o anterior, e portanto também entre os elementos que recebeu do anterior, é uma forma de intercâmbio que correspondia a determinado desenvolvimento das forças produtivas. A relação das forças de produção com a forma de intercâmbio é a relação da forma de intercâmbio com a actividade ou a ocupação [Betätigung] dos indivíduos. (A forma fundamental desta ocupação é, naturalmente, a material, da qual depende toda a outra: espiritual, política, religiosa, etc. A diferente forma dada à vida material depende sempre, naturalmente, das necessidades já desenvolvidas, e tanto a criação como a satisfação destas necessidades são, elas próprias, um processo histórico que não se encontra nem no carneiro nem no cão (renitente argumento principal de Stirner adversus hominem), embora os carneiros e os cães sejam por certo, na sua forma actual, mas malgré eux, produtos de um processo histórico). As condições em que os indivíduos, enquanto não surgiu ainda a contradição, mantêm intercâmbio uns com os outros são condições que pertencem à sua individualidade, e não algo de exterior para eles, condições em que só estes determinados indivíduos, existindo em determinadas relações, podem produzir a sua vida material e o que com ela se relaciona, são portanto as condições da sua auto-ocupação [Selbstbetätigung] e são produzidas por esta auto-ocupação. Esta condição determinada em que produzem corresponde, portanto, enquanto a contradição ainda não surgiu, ao seu condicionamento real, à sua existência unilateral, cuja unilateralidade só se revela com o aparecimento da contradição e, portanto, só existe para as gerações posteriores. Então esta condição surge como um grilhão acidental, e então a consciência de que é um grilhão é também imputada à época anterior.

Estas diferentes condições, que primeiro surgiram como condições da auto-ocupação e mais tarde como grilhões, formam em todo o desenvolvimento histórico uma série conexa de formas de intercâmbio, cuja conexão reside em que para o lugar da forma de intercâmbio anterior, tornada um grilhão, vai uma nova forma de intercâmbio que corresponde a forças produtivas mais desenvolvidas — e, assim, ao tipo mais avançado de auto-ocupação dos indivíduos — e que, à son tour , de novo se torna um grilhão e será substituída por outra. Como, em todas as etapas, estas condições correspondem ao desenvolvimento simultâneo das forças produtivas, a sua história é, pois, a um tempo, a história das forças produtivas em desenvolvimento e herdadas por cada nova geração e, deste modo, a história do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos.

Como este desenvolvimento se processa espontaneamente, ou seja, não está subordinado a um plano global de indivíduos livremente unidos, ele parte de diferentes localidades, tribos, nações, ramos de trabalho, etc., cada um dos quais a princípio se desenvolve independentemente dos outros e só a pouco e pouco entra em ligação com os outros. Além disso, só muito lentamente se processa este desenvolvimento; as diferentes etapas e interesses nunca são completamente ultrapassados, mas apenas subordinados ao interesse triunfante, e a par deste se arrastam ainda ao longo de séculos. Daqui decorre que, mesmo no seio de uma nação, os indivíduos tenham, mesmo sem considerarmos as condições de posses, desenvolvimentos completamente diferentes, e que um interesse anterior, cuja forma de intercâmbio característica já tenha sido desalojada pela de um posterior, ainda por longo tempo continue na posse de um poder tradicional na comunidade aparente (Estado, direito) que se autonomizou face aos indivíduos, poder esse que, em última instância, só se quebrará por meio de uma revolução. Assim se explica também por que razão em relação a alguns pontos, que permitem um resumo mais geral, a consciência pode por vezes parecer ter avançado mais do que as relações empíricas coevas, pelo que nas lutas de uma época posterior as pessoas podem apoiar-se em teóricos anteriores como autoridades.

Pelo contrário, o desenvolvimento processa-se muito rapidamente em países que, como a América do Norte, têm o seu começo numa época histórica já desenvolvida. Tais países não têm outras premissas naturais além dos indivíduos que neles se fixam, a isso levados pelas formas de intercâmbio dos velhos países que não correspondem às suas necessidades. Começam, portanto, com os indivíduos mais avançados dos velhos países e, por isso, com a forma de intercâmbio mais desenvolvida que corresponde a estes indivíduos ainda antes de esta forma de intercâmbio se poder afirmar nos velhos países. É este o caso com todas as colónias, na medida em que estas não são meras estações militares ou comerciais. Cartago, as colónias gregas e a Islândia nos séculos XI e XII fornecem-nos exemplos disto. Uma relação semelhante tem lugar na conquista, quando uma forma de intercâmbio desenvolvida noutro solo é transferida já pronta para o país conquistado; ao passo que na sua pátria estava ainda enleada em interesses e relações de épocas anteriores, aqui pode e tem de ser estabelecida completamente e sem obstáculo, até para assegurar aos conquistadores um poder duradouro. (A Inglaterra e Nápoles depois da conquista normanda, quando receberam a forma mais acabada da organização feudal.)

Notas

  1. Trata-se da obra fundamental de D. F. Strauss A Vida de Jesus (D. F. Strauss, Das Leben Jesus, Bd. 1-2, Tübingen, 1835-1836), que marcou o início da crítica filosófica da religião e da divisão da escola hegeliana em velhos hegelianos e jovens hegelianos.
  2. Diádocos: generais de Alexandre Magno que, após a sua morte, iniciaram uma aguda luta entre si pela conquista do poder. No decurso desta luta (fim do século IV e início do século III antes da nossa era) a monarquia de Alexandre, que constituía em si mesma uma união militar-administrativa sem solidez, dividiu-se numa série de Estados separados.
  3. À letra: cabeça morta; termo usado na química para o resíduo que fica da destilação; aqui: restos, resíduos.
  4. As categorias básicas de David Strauss e Bruno Bauer.
  5. As categorias básicas de Ludwig Feuerbach e Max Stirner.
  6. Max Stirner.
  7. Pensamentos que fazem abalar o mundo: expressão de um artigo anónimo da revista Wigand's Vierteljahrsschrift de 1845,t. IV, p. 327. Wigand's Vierteljahrsschrift (Revista Trimestral de Wigand): revista filosófica dos jovens hegelianos; foi editada por O. Wigand em Leipzig em 1844 e 1845. Colaboravam na revista B. Bauer, M. Stirner, L. Feuerbach e outros.
  8. O termo Verkehr em A Ideologia Alemã tem um conteúdo muito amplo. Inclui o intercâmbio material e espiritual de indivíduos, grupos sociais e países inteiros. Na sua obra Marx e Engels mostram que o intercâmbio material, e sobretudo o intercâmbio entre as pessoas no processo de produção, constitui a base de qualquer outro intercâmbio. Nos termos Verkehrsform, Verkehrsweise, Verkehrsverhaltnisse, Produktions-und Verkehrsverhaltnisse ("forma de intercâmbio", "modo de intercâmbio", "relações de intercâmbio", "relações de produção e de intercâmbio"), que são utilizados em A Ideologia Alemã, encontrou expressão o conceito de relações de produção, que nesta altura estava a ser elaborado por Marx e Engels.
  9. No original — Stande: estados, ou ordens, sociais, característicos do feudalismo.
  10. O termo Stamm, que em A Ideologia Alemã é traduzido por "tribo", tinha na historiografia dos anos 40 do século XIX um significado mais amplo do que actualmente. Significava um conjunto de pessoas descendentes de um único antecessor, e abarcava os conceitos actuais de "gens" e "tribo". A definição precisa e as diferenças entre estes conceitos foram dadas pela primeira vez no livro de L. Morgan A Sociedade Antiga (1877). Nesta obra fundamental do ilustre etnógrafo e historiador norte-americano era esclarecida pela primeira vez a importância da gens como célula fundamental do regime da comunidade primitiva, tendo sido deste modo criada a base científica de toda a história da sociedade primitiva. Ao sintetizar os resultados das investigações de Morgan, Engels desenvolveu em todos os aspectos o conteúdo dos conceitos de "gens" e "tribo" na sua obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884)
  11. A lei agrária dos tribunos populares romanos Licinius e Sextius, adoptada no ano de 367 antes da nossa era, proibia os cidadãos romanos de possuírem mais de 500 jeiras (cerca de 125 hectares) de terra do fundo público de terras (ager publicus).
  12. [No manuscrito encontra-se riscado o passo seguinte:] As ideias que estes indivíduos formam são representações ou da sua relação com a natureza ou da sua relação uns com os outros, ou sobre a sua própria natureza. É evidente que em todos estes casos estas representações são a expressão consciente — real ou ilusória — das suas relações e, actividade reais, da sua produção, do seu intercâmbio, da sua organização social e política. A suposição oposta só é possível quando se pressupõe, além do espírito dos indivíduos reais e materialmente condicionados, ainda um espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória, eles nas suas representações colocam a realidade de cabeça para baixo, e isto por sua vez é uma consequência do seu modo de trabalho material limitado e das relações sociais limitadas que dele resultam.
  13. O erro não é que F[euerbach] subordine o trivialmente óbvio, a aparência sensível, á realidade sensível constatada por meio de uma análise mais rigorosa dos factos sensíveis, mas sim que, em última instância, não seja capaz de lidar com o mundo sensível [Sinnlachkeit] sem o considerar com os "olhos", isto é, através dos "óculos" do filósofo.
  14. Em latim no texto: geração espontânea.
  15. [Riscadas do manuscrito as seguintes palavras:] A minha relação com o que me rodeia é a minha consciência.
  16. [Nota marginal de Marx:] Primeira forma dos ideólogos, padres, coincide com isto.
  17. Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães) foram publicados em Paris sob a direcção de K. Marx e A. Ruge em língua alemã. Saiu apenas um número, duplo, em Fevereiro de 1844. Incluía as obras de K. Marx Sobre a Questão Judaica e Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução, assim como as obras de F. Engels Esboços para Uma Crítica da Economia Política e A Situação em Inglaterra: "O Passado e o Presente", de Thomas Carlyle. Estes trabalhos traduzem a passagem definitiva de Marx e Engels para o materialismo e o comunismo. A causa principal do desaparecimento da revista foram as divergências de princípio entre Marx e o radical burguês Ruge.
  18. Esta conclusão da possibilidade da vitória da revolução proletária apenas em simultâneo nos países capitalistas avançados e, consequentemente, a impossibilidade da vitória da revolução num só país, que recebeu a sua formulação mais completa no trabalho de Engels Princípios Básicos do Comunismo (1847) (ver o presente tomo, pp. 88-89) era justa para o período do capitalismo pré-monopolista. Nas novas condições históricas, no período do capitalismo monopolista, V. I. Lénine, partindo da lei por ele descoberta do desenvolvimento político e económico desigual do capitalismo na época do imperialismo, chegou a uma nova conclusão: a da possibilidade da vitória da revolução socialista inicialmente nalguns ou num só país, individualmente considerado, e da impossibilidade da vitória simultânea da revolução em todos os países ou na maioria deles. A formulação desta nova conclusão surge pela primeira vez no trabalho de Lénine Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa (1915)
  19. Sistema continental ou bloqueio continental: proibição, imposta em 1806 por Napoleão I aos países do continente europeu, de comerciarem com a Inglaterra. O bloqueio continental caiu após a derrota de Napoleão na Rússia.
  20. Hallische Jahrbücher e Deutsche Jahrbücher: título abreviado da revista literário-filosófica dos jovens hegelianos editada sob a forma de folhas diárias em Leipzig de Janeiro de 1838 a Junho de 1841. O título completo era Hallische Jahrbücher für deutsche Wissenschaft und Kunst (Anais de Halle sobre a Ciência e a Arte Alemãs); de Julho de 1841 a Janeiro de 1843 passou a chamar-se Deutsche Jahrbücher für Wissenschaft und Kunst (Anais Alemães sobre a Ciência e a Arte). Em Janeiro de 1843 a revista foi proibida pelo governo.
  21. Trata-se do artigo de L. Feuerbach "Sobre a 'Essência do Cristianismo' em relação ao 'Único e a sua Propriedade' " publicado na revista Wigand's Vierteljahrsschrift, 1845, t. II, pp. 193-205. O artigo termina assim: "Por isso, Feuerbach não pode ser chamado de materialista, nem de idealista, nem de filósofo da identidade. O que é ele, então? Ele é no pensamento o que é na realidade, no espírito o que é na carne, na essência o que é nos sentidos - é o Homem, ou antes - uma vez que Feuerbach transporta a essência do Homem apenas para a sua comunidade - é o Homem social, é comunista."
  22. L. Feuerbach, Grundsätze der Philosophie der Zukunft, Zürich und Winterthur, 1843, S. 47 (L. Feuerbach, Princípios da Filosofia do Futuro, Zurique e Winterthur, 1843, p. 47). Nas suas notas, intituladas Feuerbach e provavelmente destinadas ao primeiro capítulo do primeiro tomo de A Ideologia Alemã, Engels cita e comenta a passagem indicada do livro de Feuerbach: "O Ser não é um conceito universal separável das coisas. É uno com o que existe... O Ser é a posição da Essência. O que é a minha essência é o meu ser. O peixe está na água, mas deste Ser não se pode separar a sua Essência. Já a linguagem identifica Ser e Essência. Só na vida humana, mas também apenas em casos anormais e infelizes, o Ser se aparta da Essência - acontece que não se tem a Essência onde se tem o Ser, mas precisamente por causa deste divórcio também verdadeiramente não se está com a alma onde realmente se está com o corpo. Tu só estás onde está o teu coração. Mas todas as coisas - à excepção dos casos contrários à natureza - gostam de estar onde estão e de ser o que são (p. 47). "Um belo panegírico à ordem vigente. À excepção de casos contrários à natureza e anormais, que são poucos, gostas de com sete anos ser porteiro de uma mina de carvão e de passar catorze horas sozinho no escuro, e porque este é o teu Ser, esta é também a tua Essência. Do mesmo modo piecer num selfactor. [Em inglês no original: piecer - rapariga que trabalha com o selfactor, vigiando a máquina e atando de novo os fios quebrados; selfactor - parte automática de uma máquina de fiar - Nota da edição portuguesa.] É a tua 'Essência' estares subordinado a um ramo do trabalho."
  23. [Riscado no manuscrito:] Estes "conceitos dominantes" terão uma forma tanto mais geral e ampla quanto mais a classe dominante é obrigada a apresentar o seu interesse como o de todos os membros da sociedade. A classe dominante tem, ela própria, em média, a noção de que estes seus conceitos dominam, e distingue-os de representações dominantes de épocas anteriores apenas pelo facto de as apresentar como verdades eternas.
  24. Marx e Engels referem-se ao terceiro capítulo do primeiro tomo de A Ideologia Alemã. Esta parte do capítulo sobre Feuerbach inicialmente fazia parte deste terceiro capítulo e estava imediatamente a seguir ao texto a que aqui se referem Marx e Engels. Na passagem indicada do terceiro capítulo Marx e Engels citam a obra de Hegel Filosofia da História e outras.
  25. Liga contra as leis dos cereais: organização da burguesia industrial inglesa, fundada em 1838 por Cobden e Bright, fabricantes de Manchester. As chamadas leis dos cereais, que tinham como objectivo limitar ou proibir a importação de cereais, foram introduzidas na Inglaterra em benefício dos grandes latifundiários. Apresentando a exigência da total liberdade de comércio, a Liga pretendia a abolição das leis dos cereais com o objectivo de reduzir os salários dos operários e enfraquecer as posições políticas e económicas da aristocracia agrária. Em resultado desta luta as leis dos cereais foram revogadas em 1846, o que significava a vitória da burguesia industrial sobre a aristocracia agrária.

São Bruno

"Campanha" contra Feuerbach

Antes de nos ocuparmos com o combate solene da autoconsciência baueriana consigo mesma e com o mundo, temos de revelar um segredo. São Bruno provocou essa guerra e esses clamores de guerra apenas porque tinha de "proteger" a si mesmo e à sua crítica insossa, azedada, contra o esquecimento ingrato do público, pois tinha de demonstrar que, mesmo sob as condições modificadas do ano de 1845, a crítica permaneceu igual a si mesma e imutável. Ele escreveu o segundo volume de "a boa causa e sua própria causa"; defende o seu próprio terreno, luta pro aris et focis''. Mas, de modo genuinamente teológico, ele esconde essa meta pessoal sob a aparência de querer "caracterizar" Feuerbach. Nosso bom homem já havia sido completamente esquecido, como demonstrou da melhor forma a polêmica entre Feuerbach e Stirner, na qual ele nem sequer foi aludido. Precisamente por isso, ele se aferra a essa polêmica para, na qualidade de contrário aos polos opostos, poder proclamar a si mesmo como a sua unidade suprema, como o Espírito Santo.

São Bruno inaugura a sua "campanha" com uma canhonada contra Feuerbach, c'est-à-dire com a reimpressão revista e ampliada de um ensaio que já aparecera nas Norddeutsche Blâtter. Feuerbach é feito cavaleiro da "substância", a fim de conferir um maior relevo à "autoconsciência" baueriana. Nessa transubstanciação de Feuerbach, supostamente comprovada pelo conjunto de seus escritos, o santo homem salta imediatamente dos escritos de Feuerbach sobre Leibniz e Bayle à Essência do cristianismo e passa por cima do artigo contra os "filósofos positivos" nos Hallische Jahrbücher. Esse "erro" vem bem "a calhar". É que foi justamente nesses textos que Feuerbach revelou, contra os representantes positivos da "substância", todo o saber sobre a "autoconsciência", numa época em que São Bruno ainda especulava sobre a Imaculada Conceição.

Desnecessário referir que São Bruno continua a dar pinotes em seu corcel velho-hegeliano. Ouçamos agora a primeira passagem de suas mais novas revelações do Reino de Deus.

"Hegel havia reunido a substância de Spinoza e o Eu fichtiano; a unidade de ambos, a combinação dessas esferas opostas etc. constituem o interesse peculiar, mas ao mesmo tempo, também, a fraqueza da filosofia hegeliana [...1 Essa contradição, no interior da qual se movia o sistema hegeliano, tinha de ser resolvida e destruída. Mas ele só pôde fazê-lo tornando impossível para sempre a colocação da pergunta: qual a relação entre a autoconsciência e o espírito absoluto? Isso era possível de duas maneiras. Ou a autoconsciência tinha de ser novamente queimada nas chamas da substância, isto é, a pura relação de substancialidade tinha de ser firmada e mantida, ou era preciso mostrar que a personalidade é a criadora de seus próprios atributos e de sua essência, que pertence ao conceito de personalidade em geral pôr a si mesmo" (o "conceito" ou a "personalidade"?) "como limitado e, novamente, suprassumir essa limitação que ela põe por meio de sua essência universal, pois justamente essa essência é apenas o resultado de sua autodiferenciação, de sua atividade." (Wigand, p. [861, 87, 88)

N'A sagrada família (p. 220), a filosofia hegeliana foi apresentada como a união entre Spinoza e Fichte, ao mesmo tempo em que foi enfatizada a contradição que reside nessa união. É característico de São Bruno que ele, diferentemente dos autores d'A sagrada família, não considera a relação da autoconsciência com a substância como uma "questão controversa no interior da especulação hegeliana", mas como uma questão histórico-mundial e, até mesmo, como uma questão absoluta. Essa é a única forma na qual ele pode expressar os conflitos do presente. Ele realmente acredita que o triunfo da autoconsciência sobre a substância exerce uma influência essencial não apenas no equilíbrio europeu, mas também em todo o futuro desenvolvimento da questão do Oregon. Em que medida depende disso a abolição das leis dos cereais na Inglaterra, até agora foi pouco debatido.

A expressão abstrata e nebulosa na qual, em Hegel, uma colisão real é distorcida, vale, para essa mente "crítica", como a colisão real. Ele aceita a contradição especulativa e afirma uma parte dela em oposição à outra. A fraseologia filosófica sobre uma questão real é, para ele, a própria questão real. Consequentemente, por um lado, em vez de homens reais e suas consciências reais de suas relações sociais, que aparentemente os confrontam como algo independente, ele tem a mera fraseologia abstrata: a autoconsciência, assim como, em vez da produção real, ele tem a atividade dessa autoconsciência, tornada independente; por outro lado, em vez da natureza real e das relações sociais realmente existentes, ele tem o resumo filosófico de todas as categorias filosóficas ou os nomes dessas relações na fraseologia: a substância, pois Bruno, juntamente com todos os filósofos e ideólogos, erroneamente considera os pensamentos, as ideias - a independente expressão intelectual do mundo existente - como a base desse mundo existente. É evidente que com essas duas abstrações, que se tornaram carentes de sentido e de conteúdo, ele pode executar todo tipo de truques, sem saber nada dos homens reais e de suas relações. (Veja-se, aliás, o que é dito sobre a substância em relação a Feuerbach e o que é dito sobre o "liberalismo humano" e sobre o "Sagrado" em relação a São Max.) Portanto, ele não abandona a base especulativa para resolver as contradições da especulação; ele manobra a partir dessa base e ele mesmo ainda permanece tanto sobre a base especificamente hegeliana que' a relação da "autoconsciência" com o "espírito absoluto" continua a roubar-lhe o sono. Em uma palavra, temos aqui a filosofia da autoconsciência, que fora anunciada na Crítica dos sinópticos, realizada n'O cristianismo revelado, e que, infelizmente, há muito tempo fora antecipada na Fenomenologia de Hegel Essa nova filosofia baueriana teve sua completa elucidação n'A sagrada família, na p. 220 ss. e na p. 304-7. Aqui, entretanto, São Bruno consegue até mesmo caricaturar a si próprio, ao contrabandear a "personalidade" para poder, com Stirner, apresentar o indivíduo como sua "obra própria" e apresentar Stirner como obra de Bruno. Esse passo à frente merece uma curta nota.

Primeiramente, compare o leitor essa caricatura com o seu original, a explanação da autoconsciência n 'O cristianismo revelado, p. 113, e compare essa explanação, por sua vez, com o seu protótipo, a Fenomenologia de Hegel, p. 575, 583 ss. (Ambas as passagens estão reproduzidas n A sagrada família, p. 221, 223, 224.) Mas voltemo-nos, por ora, à caricatura! "Personalidade em geral"! "Conceito"! "Essência universal"! "Pôr a si mesmo como limitado e novamente suprassumir essa limitação"! "Autodistinção interna"! Que "resultados" fabulosos! "Personalidade em geral" ou é um absurdo "em geral" ou o conceito abstrato da personalidade. Portanto, é parte do conceito de personalidade "pôr a si mesmo como limitado". Essa limitação, que reside no "conceito" de seu conceito, está desde já posta pela personalidade "por meio de sua essência universal". E depois de ter novamente suprassumido essa limitação fica patente que "precisamente essa essência" é "o resultado de sua autodiferenciação interna". Todo o resultado grandioso dessa intricada tautologia se reduz, pois, ao familiar truque hegeliano da autodiferenciação do homem no pensamento, uma autodiferenciação que o infeliz Bruno teimosamente proclama como a única atividade da "personalidade em geral". Já há muito tempo mostrou-se a São Bruno que de nada serve uma "personalidade" cuja atividade se limita a essas cabriolas que hoje já se tornaram triviais. Ao mesmo tempo, essa passagem contém a confissão de que a essência da "personalidade" baueriana é o conceito de um conceito, a abstração de uma abstração.

A crítica de Bruno a Feuerbach, naquilo que ela traz de novo, limita-se a apresentar de forma hipócrita as censuras que Stirner faz a Feuerbach e a Bauer como sendo censuras de Bauer contra Feuerbach. Assim, por exemplo, que "a essência do homem é essência em geral e algo sagrado", que "o homem é o Deus do homem", que o gênero humano é "o Absoluto", que Feuerbach divide o homem "em um Eu essencial e um Eu inessencial" (embora Bruno sempre declare que o abstrato é o essencial e, em sua antítese entre a crítica e a massa, ele conceba essa separação de uma forma muito mais monstruosa do que em Feuerbach), que seria preciso travar a luta contra "os predicados de Deus" etc. Sobre a questão do amor egoísta e do amor desinteressado, Bruno repete, em sua polêmica contra Feuerbach, as palavras de Stirner, quase textualmente e ao longo de três páginas (p. 133-5), assim como também copia desastradamente as fraseologias de Stirner: "cada homem é sua própria criatura", "a verdade é um fantasma" e assim por diante. Enfim, em Bruno a "criatura" transforma-se numa "obra". Voltaremos a falar sobre a exploração de Stirner por São Bruno.

Assim, a primeira coisa que descobrimos em São Bruno foi sua constante dependência de Hegel. Não nos demoraremos, naturalmente, em suas considerações copiadas de Hegel, limitando-nos apenas a reunir algumas frases que demonstram o quão firme é a sua crença no poder dos filósofos e a que ponto ele partilha de sua ilusão de que uma consciência modificada, uma nova orientação na interpretação das relações existentes, poderia revolucionar todo o mundo até aqui existente. Imbuído dessa crença, São Bruno também faz que um de seus pupilos - no fascículo IV da Wigand's Vierteljahrsschrift, p. 327 - forneça o atestado de que suas fraseologias sobre a personalidade acima mencionadas, as quais foram proclamadas no fascículo 111, são "pensamentos que revolucionam o mundo"

São Bruno diz (Wigand, p. 95):

"A filosofia nunca foi outra coisa do que a teologia reduzida à sua forma mais geral e conduzida à sua expressão mais racional."

Essa passagem, dirigida contra Feuerbach, é copiada quase palavra por palavra da Filosofia do futuro, de Feuerbach (p. 2):

"A filosofia especulativa é a teologia verdadeira, consequente, racional."

Bruno prossegue:

"A filosofia, em aliança com a religião, sempre se empenhou na absoluta dependência do indivíduo e realizou isso de fato ao exigir e permitir que a vida individual fosse absorvida na vida universal, o acidente na substância, o homem no espírito absoluto."

Como se a "filosofia" de Bruno, "em aliança com" a de Hegel, e em sua persistente associação proibida com a teologia, não "exigisse", ou então não "permitisse", a "absorção do homem" na representação de um de seus "aci dentes", a autoconsciência, considerada como a "substância"! Além disso, vê-se em toda essa passagem com que alegria o Padre da Igreja, com sua "eloquência de púlpito", continua a professar sua crença "revolucionária" no poder cheio de mistérios dos teólogos e filósofos sagrados. Naturalmente, no interesse "da boa causa da liberdade e da sua própria causa". Na p. 105, nosso devoto homem tem a impudência de repreender Feuerbach:

"Feuerbachfez do indivíduo, do homem desumanizado do cristianismo, não o homem, o homem verdadeiro" (!), "real" (!!), "pessoal" (!!!) (predicados originados nA sagrada família e em Stirner), "mas o homem emasculado, o escravo."

e, com isso, afirma, entre outras coisas, o disparate de que ele, São Bruno, pode fazer homens com o poder da mente. Mais adiante, afirma:

"Em Feuerbach, o indivíduo tem de submeter-se ao Gênero, tem de servi-lo. O Gênero de Feuerbach é o Absoluto de Hegel e, tal como este, também não existe em lugar nenhum."

Aqui, como em todas as outras passagens, São Bruno não se furta à glória de fazer depender as relações reais dos indivíduos da interpretação filosófica dessas relações. Ele sequer suspeita da correlação que há entre as representações do "espírito absoluto" hegeliano e do "gênero" feuerbachiano, de um lado, e o mundo existente, de outro.

Na p. 104, o santo Padre se escandaliza terrivelmente com a heresia de Feuerbach, que transforma a divina trindade Razão-Amor-Vontade em algo que "está nos indivíduos e por sobre os indivíduos"; como se, nos dias de hoje, toda inclinação, todo impulso, toda necessidade não se afirmassem como um poder "no indivíduo por sobre o indivíduo", tão logo as circunstâncias impeçam a sua satisfação. Quando, por exemplo, o santo Padre Bruno sente fome sem ter os meios de saciá-la, então até mesmo o seu estômago se torna uma força "nele e por sobre ele". O erro de Feuerbach não está em ter declarado esse fato, mas em tê-lo hipostasiado, em vez se concebê-lo como o produto de um determinado estágio do desenvolvimento histórico, passível de ser ultrapassado.

P. 111:

"Feuerbach é um escravo e sua natureza servil não lhe permite realizar a obra de um homem, reconhecer a essência da religião" (que bela "obra de um homem"!)... "ele não reconhece a essência da religião porque não conhece a ponte por sobre a qual ele chega à fonte da religião."

São Bruno ainda acredita, com toda a seriedade, que a religião tem sua própria "essência". No que diz respeito à "ponte" "por sobre a qual" se chega à "fonte da religião", essa ponte de asnos" tem necessariamente de ser um aqueduto. São Bruno constitui-se, aqui, ao mesmo tempo, num Caronte17 curiosamente modernizado, aposentado devido à construção da ponte na entrada da qual ele passa a exigir, como tollkeeper"l", alguns centavos a quem quiser atravessá-la e chegar ao reino das sombras da religião. O Santo observa, na p. 120:

"Como poderia Feuerbach existir se não houvesse nenhuma verdade e se a verdade fosse apenas um fantasma" (Stirner nos acuda!) "diante do qual o homem tivesse até então se amedrontado."

O "homem" que teme o "fantasma" da "verdade" não é ninguém senão o venerável Bruno em pessoa. Dez páginas antes, na p. 110, a visão do "fantasma" da verdade já o fizera soltar os seguintes gritos de pavor capazes de sacudir o mundo: "A verdade, que nunca se pode encontrar por si só como um objeto pronto e que desenvolve a si mesma e se resume numa unidade apenas no desdobramento da personalidade". Desse modo, temos aqui não apenas a verdade, esse fantasma, transformado numa pessoa que desenvolve a si mesma e se resume, mas temos ainda que esse truque é concluído numa terceira personalidade, fora dela, ao modo dos parasitas. Sobre o antigo caso de amor do santo homem com a verdade, quando ele era jovem e os prazeres da carne ainda o moviam fortemente - ver A sagrada família, p. 115 ss. Uma prova de quão purificado de todos os apetites carnais e desejos terrenos o santo homem agora se encontra, evidencia-se em sua polêmica contra o sensível feuerbachiano. Bruno não ataca de modo algum a forma altamente limitada sob a qual Feuerbach reconhece o sensível. A tentativa fracassada de Feuerbach, pelo simples fato de ser uma tentativa de escapar à ideologia, é vista por ele como - pecado. É claro! O sensível - lascívia dos olhos, lascívia da carne e soberba68 são horror e abominação69 aos olhos do Senhor! Não sabeis que ser guiado pela carne é o mesmo que a morte, e que ser guiado pelo espírito significa a vida e a paz? Pois ser guiado pela carne é uma hostilidade à crítica, e tudo o que é carnal é algo deste mundo. E não sabeis também que está escrito: as obras da carne estão manifestas, e são o adultério, a fornicação, a impureza, a luxúria, a idolatria, a feitiçaria, a inimizade, a desavença, a inveja, a raiva, a rixa, a discórdia, a revolta, o ódio, o assassínio, a embriaguez, a gula e outras semelhantes, das quais eu vos disse e repito, que aqueles que cometem tais atos não merecerão o Reino da Crítica70; tanto pior para eles, pois tomam o caminho de Caim e em sua busca do gozo cairão no erro de Balaam e perecerão na revolta de Korah71. Esses obscenos banqueteiam-se desavergonhadamente à custa de vossas esmolas, e regalam-se; são nuvens sem água, guiadas pelo vento, árvores nuas, estéreis, duas vezes mortas e desenraizadas, ondas selvagens do oceano espumando sua própria vergonha, estrelas errantes condenadas à escuridão das trevas por toda a eternidade72. Pois lemos que nos últimos dias haverá tempos terríveis, homens preocupados consigo mesmos, profanadores impuros que amam mais a volúpia do que a crítica, semeadores de revolta, em uma palavra, homens carnais73. Estes são detestados por São Bruno, que se orienta pelo espírito e abomina o revestimento infame da carne74; e por isso ele condena Feuerbach, que é para ele o Korah da revolta, a ficar do lado de fora com os cães, os feiticeiros, os fornicadores e os assassinos75. "O sensível" - ao diabo! Essa palavra não só provoca no nosso santo Padre da Igreja as mais violentas convulsões e arrebatamentos, mas o faz até mesmo cantar, e ele canta, na p. 121, o "cântico do fim e o fim do cântico". O sensível - sabes tu, mal-aventurado, o que é o sensível? O sensível é "um cajado" (p. 130). Em meio a suas convulsões, São Bruno chega a arremeter contra uma de suas frases, tal como o memorável Jacó contra Deus, apenas com a diferença de que Deus deslocou o quadril de Jacó76, enquanto o nosso santo epiléptico apenas desloca os membros e os nervos de sua frase e, desse modo, esclarece a identidade de sujeito e objeto lançando mão de alguns exemplos evidentes:

"Diga Feuerbach o que disser, o fato é que... ele destrói" (!) "no entanto, o homem... pois transforma a palavra homem numa mera fraseologia... pois ele não faz" (!) "e cria" (!) "o homem inteiramente, mas eleva a humanidade inteira ao Absoluto; porque, para ele, além do mais, o órgão do Absoluto não é a humanidade mas, antes, os sentidos, e qualifica de absoluto, de indubitável, de certeza imediata, o objeto dos sentidos, da intuição, da sensação - o sensível." Com isso, Feuerbach - tal é a opinião de São Bruno - "pode muito bem agitar camadas de ar, mas não é capaz de esmagar as manifestações da essência humana, pois sua essência mais íntima" (!) "e sua alma vivificante [...1 destroem de antemão o som externo" (!) "e o tomam oco e rangente." (p. 121)

O próprio São Bruno nos dá, sobre as causas de seu despautério, alguns esclarecimentos misteriosos porém decisivos:

"Como se o meu Eu não possuísse também este sexo determinado, único em relação a todos os outros, e esses órgãos sexuais determinados e únicos!"

(Além de seus "órgãos sexuais únicos", esse nobre homem tem ainda um "sexo único" à parte!) Esse sexo único é-nos explicado, na p. 121, da seguinte forma:

"o sensível, tal como um vampiro, suga a medula e o sangue da vida humana; é a barreira intransponível contra a qual o homem tem de se sofrer o golpe de misericórdia."

Mas nem mesmo o mais santo dos homens é puro! São todos pecadores e carecem da glória que deveriam ter perante a "autoconsciência"! São Bruno, que à meia-noite, na solidão de sua cela, mede forças com a "substância", tem sua atenção atraída para a mulher e para a beleza feminina por obra dos escritos frívolos do herético Feuerbach. Subitamente, o seu olhar escurece; sua pura autoconsciência é maculada e uma imaginação sensual e condenável obseda com imagens lascivas o crítico amedrontado. O espírito tem boa vontade, mas a carne é fraca". Bruno estremece, cai, esquece que ele é o poder "que, com sua força, amarra, liberta e domina o mundo", esquece que esses produtos de sua imaginação são "espírito de seu espírito"; ele perde toda "autoconsciência" e balbucia um ditirambo à beleza feminina, à sua "ternura, brandura e feminilidade", aos seus "sinuosos e torneados membros" e ao corpo da mulher, com suas "formas ondulantes, flutuantes, efervescentes, ruidosas e sibilantes como as ondas". Mas a inocência sempre se revela, até mesmo quando peca. Quem poderia ignorar que um "corpo com formas ondulantes, flutuantes como as ondas" é algo que nenhum olho jamais viu e nenhum ouvido jamais ouviu? Eis por que, serena e amada alma, o espírito não tardará em prevalecer sobre a carne rebelde e em interpor uma "barreira" intransponível no caminho dos apetites lascivos, "contra a qual" eles sofrerão "o golpe de misericórdia".

"Feuerbach" - finalmente o santo homem chegou a essa conclusão, graças a uma compreensão crítica d'A sagrada família - "é um materialista desviado e corrompido pelo humanismo", isto é, um materialista que não é capaz de suportar a terra e seu ser (São Bruno conhece o ser da terra como algo distinto da terra e sabe como se deveria proceder para "suportar o ser da terra"!), "mas que quer espiritualizar a si mesmo e elevar-se ao céu; ao mesmo tempo, ele é um humanista que não pode pensar e construir um mundo espiritual, pois é alguém que está impregnado de materialismo", e assim por diante. (p. 123)

Assim como, para São Bruno, o humanismo consiste no "pensar" e no "construir um mundo espiritual", assim também o materialismo consiste no seguinte:

"O materialista reconhece apenas o ser atual, real, a matéria" (como se o homem, com todos os seus atributos, inclusive o pensamento, não fosse um "ser atual, real"), "e a reconhece como algo que se estende e se realiza ativamente na multiplicidade, como natureza." (p. 123)

A matéria é, primeiramente, um ser atual, real, mas o é apenas em si, como algo oculto; apenas quando ela "se estende e se realiza ativamente na multiplicidade" (um "ser atual, real" "se realiza"!!) é que ela se torna natureza. Existe, em primeiro lugar, o conceito da matéria, o abstrato, a representação, e esta realiza a si mesma na natureza real. Temos aqui, textualmente, a teoria hegeliana da preexistência das categorias criadoras. Desse ponto de vista, também se compreende que São Bruno, por engano, tome as fraseologias filosóficas dos materialistas sobre a matéria pelo verdadeiro núcleo e conteúdo de sua visão de mundo.

Considerações de São Bruno sobre a disputa entre Feuerbach e Stimer

Depois de lançar esses pesados argumentos no coração de Feuerbach, ele passa a se ocupar da disputa entre Feuerbach e o único. A primeira evidência de seu interesse por essa disputa é um sorriso metódico, triplo.

"O crítico percorre seu caminho irresistivelmente, certo da vitória e vitorioso. Caluniam-no: ele sorri. O velho mundo lança-se numa cruzada contra ele: ele sorri."

Fica estabelecido, portanto, que São Bruno segue o seu caminho, mas não o segue como as outras pessoas: ele toma um curso crítico, cumpre esse importante ato com um sorriso.

"Seu sorriso imprime mais linhas em sua face do que aquelas que se veem no novo mapa do globo, que inclui as duas Índias. Se a dama vier a esbofeteá-lo, ele sorrirá e tomará o acontecido por um grande favor"

como o Malvoglio de Shakespeare.

O próprio São Bruno não move sequer um dedo para refutar seus dois oponentes, pois conhece um meio melhor para se desembaraçar deles: ele os abandona - divide et impera[" - à sua própria peleja. A Stirner ele contrapõe o Homem de Feuerbach (p. 124), e a Feuerbach o único de Stirner (p. 126 ss.); ele sabe que os dois são tão furiosos um contra o outro quanto os dois gatos de Kilkermy, na Irlanda, que se devoraram mutuamente a tal ponto que restaram apenas as duas caudas. Sobre essas caudas, São Bruno nos emite o juízo de que elas são a "substância" e, por conseguinte, estão condenadas à danação eterna.

Ao confrontar Feuerbach e Stirner, ele repete o que Hegel dissera de Spinoza e de Fichte, segundo o qual, como sabemos, o Eu reduzido a um ponto é apresentado como um aspecto da substância e, até mesmo, como o seu aspecto mais sólido. Por mais que Bruno tenha anteriormente se voltado contra o egoísmo, que ele chegou a considerar como o odor specificus[2' das massas, na p. 129 ele aceita o egoísmo de Stirner, com a condição de que ele seja "não aquele de Max Stirner", mas naturalmente o de Bruno Bauer. Ele estigmatiza o egoísmo de Stirner atribuindo-lhe o defeito de que "seu Eu, para a sustentação de seu egoísmo, necessita da hipocrisia, da fraude, da violência externa". Quanto ao resto, acredita nos milagres críticos de São Max e vê na luta deste último (p. 126) "um esforço real para destruir a substância desde seu fundamento". Em vez de tratar da crítica que Stirner faz da "crítica pura" baueriana, ele afirma, na p. 124, que a crítica de Stirner poderia afetá-lo tão pouco quanto as outras, "pois ele é o próprio crítico".

Por fim, São Bruno refuta a ambos, São Max e Feuerbach, aplicando a eles, de um modo um tanto quanto literal, a antítese que Stirner localizara entre o crítico Bruno e o dogmático.

Wigand, p. 138:

"Feuerbach opõe-se e, com isso, encontra-se em oposição" (!) "ao único. Ele é um comunista e quer sê-lo; o único é egoísta e deve sê-lo; ele é o santo, o outro o profano, ele é o bom, o outro o mau; ele é Deus, o outro é Homem. Ambos são dogmáticos."

A questão é, portanto, que ele acusa os dois de dogmatismo. O Unico e sua propriedade, p. 194:

"O crítico teme tornar-se dogmático ou sustentar dogmas. É claro que, com isso, ele se tornaria o oposto de um crítico, um dogmático; ele, que como crítico era bom, tornar-se-ia então mau, ou de sua condição de altruísta" (comunista) "passaria a de um egoísta etc. Não ter nenhum dogma - este é o seu dogma."

São Bruno contra os autores d'A sagrada família

São Bruno, que se desembaraçou de Feuerbach e Stirner da maneira que indicamos acima, e que "interrompeu ao único todo progresso", agora se volta contra as pretensas "consequências de Feuerbach", isto é, contra os comunistas alemães e, especialmente, contra os autores d'A sagrada família. A expressão "humanismo real" [reale Humanismus], que ele encontrou no prefácio a esse escrito polêmico, constitui a base principal de sua hipótese. Ele certamente se lembrará desta passagem da Bíblia:

"E eu, irmãos, não pude falar-vos como a seres espirituais, mas como a seres carnais" (no nosso caso, era exatamente o contrário), "como a crianças em Cristo. Dei-vos leite a beber, e não comida, pois ainda não o poderíeis suportar." (1' Epístola aos Cor[íntios] 3,1-2)

A primeira impressão que A sagrada família produz em nosso venerável Padre da Igreja é a de uma profunda aflição e uma séria, respeitosa melancolia. O único aspecto bom do livro é o de ter

"mostrado aquilo que Feuerbach deveria ter se tornado e a posição que sua filosofia pode adotar, se ela quer lutar contra a crítica" (p. 138)

que, por conseguinte, o livro reunia de forma diligente o "querer", o "poder" e o "dever", sem que esse aspecto bom pudesse, entretanto, compensar seus muitos aspectos aflitivos. A filosofia feuerbachiana, aqui pressuposta de um modo ridículo,

"não deve e não pode compreender o crítico - ela não deve e não pode conhecer e reconhecer a crítica - ela não deve e não pode saber que a crítica, em relação a toda transcendência, é uma batalha e uma vitória constantes, uma destruição e uma criação contínuas, o único" (!) elemento criativo e produtivo. Ela não deve e não pode saber de que modo o crítico trabalhou, e ainda trabalha, para pôr e para fazer" (!) "das forças transcendentes, que até então subjugaram a humanidade e impediram-na de respirar e de viver", "aquilo que elas realmente são: o espírito do espírito, o elemento interno saído do elemento interno, um elemento nativo" (!) "fora e dentro de sua terra natal, produtos e criações da autoconsciência. Ela não deve e não pode saber que foi o crítico e apenas o crítico que quebrou a religião em sua totalidade, que fragmentou o Estado em suas diversas manifestações etc.". (p. 138, 139)

Não será isso uma cópia fiel do velho Jeová, que, depois de ser abandonado pelo seu povo, por este ter encontrado mais prazer nos alegres deuses pagãos, corre atrás dele e grita-lhe:

"Escutai-me, Israel, e não fechais os teus ouvidos, Judá! Não sou eu o Senhor vosso Deus que vos conduziu do Egito para o país onde correm o leite e o mel? E vede que, desde a infância, haveis feito aquilo que me faz mal, haveis-me encolerizado com as obras de minhas mãos e me haveis voltado as costas e não a face, embora eu tenha sempre vos guiado; introduzistes vossas abominações em minha casa, para infamá-la, e construístes os lugares altos de Baal, no vale de Ben Himmon, sem que eu vos tenha ordenado nada de semelhante, pois nunca tive a intenção de que cometêsseis tais abominações. Enviei-vos meu servo Jeremias, a quem transmiti minha palavra desde o décimo terceiro ano do rei Josias, filho de Amon, até este dia, e ele pregou-vos zelosamente ao longo de vinte e três anos, mas vós nunca o quisestes ouvir. É por isso que diz o Senhor: quem alguma vez ouviu falar em ações tão abomináveis como aquelas cometidas pela virgem Israel? Pois a água da chuva não se esvai tão rapidamente quanto sou esquecido pelo meu povo. Ó terra, terra, terra, escutai a palavra do Senhor!"

Assim, em um longo discurso sobre o dever e o poder, Bruno afirma ter sido mal compreendido por seus adversários comunistas. O modo como, nesse recente discurso, ele descreve uma vez mais a crítica, como transforma as forças precedentes, que suprimiram a "vida da humanidade", em "forças transcendentes", e essas forças transcendentes em "espírito do espírito", o modo como ele apresenta "a crítica" como o único ramo da produção, tudo isso prova que essa pretensa incompreensão não é mais do que uma compreensão que lhe desagradou. Ao provarmos que a crítica baueriana está abaixo de toda crítica, tornamo-nos necessariamente dogmáticos. Ele chega até mesmo a nos repreender, com toda a seriedade, por nossa insolente descrença em suas frases antiquadas. Toda a mitologia dos conceitos autônomos, tendo à cabeça Zeus, o Senhor dos Trovões, a autoconsciência, desfila aqui novamente sob "o tilintar das fraseologias de uma banda inteira de janízaros das categorias correntes" (Lit[eratur]-Z[ei]t[un]gS4, cf. A sagrada família, p. 234). Em primeiro lugar, é claro, o mito da criação do mundo, isto é, do duro "trabalho" do crítico, que é o "único elemento criativo e produtivo, uma batalha e uma vitória constantes, uma destruição e uma criação contínuas", um "trabalhar" e um "ter trabalhado". De fato, o reverendo Padre chega a repreender A sagrada família por ter esta última entendido "a crítica" da mesma forma que ele próprio a entende na presente réplica. Depois de ter remetido a "substância" "de volta ao seu lugar de origem, à autoconsciência, ao homem que critica e" (desde A sagrada família) "ao homem criticado, descartando-a" (a autoconsciência parece desempenhar aqui o papel de um quarto de despejo ideológico), ele prossegue:

"Ela" (a pretensa filosofia feuerbachiana) "não pode saber que a crítica e os críticos, desde que existem (!), têm dirigido e feito a história; que até mesmo os seus adversários e todos os movimentos e agitações do tempo presente são criações suas, que são eles que, sozinhos, detêm o poder em suas mãos, porque extraem o seu poder de si mesmos, de suas ações, da crítica, de seus adversários, de suas criaturas; que somente com o ato da Crítica o Homem é libertado e, desse modo, os homens são libertados, e o Homem é criado (!), e desse modo os homens são criados."

Portanto, a crítica e os críticos são, primeiramente, dois sujeitos totalmente diferentes, que existem e atuam afastados um do outro. O crítico é um sujeito diferente da crítica, e a crítica um sujeito diferente do crítico. Essa crítica personificada, a crítica como sujeito, é precisamente a "Crítica crítica" contra a qual se dirigia A sagrada família. "A crítica e os críticos, desde que existem, têm dirigido e feito a história." É claro que eles não poderiam fazê-lo "desde que" não "existem", e é igualmente claro que eles, "desde que existem", "têm feito história" ao seu modo. Por fim, São Bruno chega ao ponto de "dever e poder" nos dar uma das mais profundas explicações sobre o poder revolucionário da crítica, sobretudo a de que "a crítica e os críticos têm o poder em suas mãos, porque" (belo porque!) "têm a força em sua consciência" e, em segundo lugar, que esses grandes fabricantes da história "têm o poder em suas mãos", pois eles "extraem" "o poder de si mesmos e da crítica" (portanto, novamente de si mesmos) - com o que, infelizmente, ainda não fica provado que se possa "extrair" alguma coisa lá de dentro, de "si mesmo", da "crítica". Com base nos próprios termos da crítica, deveríamos crer, pelo menos, que é difícil "extrair" de lá algo diferente da categoria da "substância" que lá foi "descartada". Finalmente, a crítica ainda "extrai" "da crítica" "a força" para pronunciar um oráculo deveras monstruoso. Ela nos revela, sobretudo, o segredo que permanecia escondido de nossos pais e indecifrável para nossos avós, a saber, que "somente com o ato da crítica o homem é criado e, com ele, também os homens", ao passo que, até agora, a crítica fora considerada como um ato de homens que teriam vindo à existência previamente, por atos de uma natureza totalmente distinta. É por essa razão que o próprio São Bruno parece dever à "crítica", portanto a uma generatio aequivoca"", o fato de "estar no mundo, de ser do mundo e para o mundo". Mas talvez tudo isso seja tão somente uma outra interpretação da seguinte passagem do Gênesis: E Adão conheceu, isto é, criticou, sua mulher Eva, e ela ficou grávida etc.

Aqui, pois, vemos toda a bem conhecida Crítica crítica, já suficientemente caracterizada n'A sagrada família, novamente entrando em cena, com todas as suas charlatanices e como se nada houvera. Não há por que ficarmos surpresos com isto, pois o próprio santo homem lamenta, na p. 140, que A sagrada família "interrompeu à crítica todo progresso". Com a maior indignação, São Bruno ataca os autores d'A sagrada família por terem, mediante um processo químico, evaporado a crítica baueriana de seu estado "fluídico", convertendo-a numa formação "cristalina".

Desse modo, as "instituições de mendicância", o "certificado de batismo da maioridade", a "região do pathos e dos aspectos tonitruantes", a "afecção conceitual muçulmana" (A sagrada família, p. 2, 3, 4, de acordo com a crítica da Literatur-ZeitungS7) são absurdos apenas se interpretados de forma "cristalina"; será que as vinte e oito asneiras históricas que demonstramos à crítica em seu excurso sobre "problemas da atualidade inglesa"" deixam de ser asneiras ao ser consideradas "fluidamente"? A crítica insiste que, considerada fluidamente, profetizou a priori" a polêmica de NauwerckS9 - muito tempo depois de essa polêmica ter sido travada diante de seus olhos - e não a reconstruiu post festum? Ela ainda sustenta que a palavra maréchal, se considerada de maneira "cristalina", possa significar ferreiro, ao passo que, se considerada "fluidamente", deve significar necessariamente marechal? Pretende que, embora para a concepção "cristalina" um fait physique possa significar "um fato físico", a verdadeira tradução "fluida" desse termo seja "um fato da física"? Ou que la malveillance de nos bourgeois juste-milieux continue a significar, em estado "fluídico", "a negligência de nossos bons cidadãos"?" Ela insiste que, considerada "fluidamente", "uma criança que, por sua vez, não venha a ser pai ou mãe é essencialmente filha"? Que a alguém deve caber a tarefa "de representar, por assim dizer, a última lágrima de melancolia do passado"? Que os diferentes porteiros, janotas, rameiras, rufiões, patifes e portas de madeira de Paris não são, em sua forma "fluida", mais do que fases do mistério "em cujo conceito em geral reside o pôr a si mesmo como limitado e, uma vez mais, o suprassumir dessa limitação, que é posta por sua essência universal, pois precisamente essa essência é apenas o resultado de sua autodiferenciação interna, de sua atividade"? Que a Crítica crítica, no sentido "fluídico", "segue o seu caminho irresistivelmente, vitoriosa e confiante na vitória", quando, ao tratar de uma questão, começa por afirmar ter revelado o seu "significado verdadeiro e geral" para, então, admitir que ela "não desejava e não tinha o direito de ultrapassar a crítica" e, finalmente, confessar "que ela deveria ter dado mais um passo ainda, mas esse passo era impossível porque - era impossível" (A sagrada família, p. 184)? Que, considerado "fluidamente", "o futuro continua a ser obra" da Crítica, "independentemente de qual seja a decisão do acaso'? Que, do ponto de vista fluídico, a Crítica não realizou nenhuma tarefa sobre-humana quando "entrou numa contradição com seus elementos verdadeiros, contradição que já havia encontrado sua solução naqueles mesmos elementos"?

De fato, os autores d'A sagrada família tiveram a frivolidade de conceber essas e centenas de outras sentenças como sentenças que expressam um absurdo firme, "cristalino" - mas os evangelhos sinópticos devem ser lidos "fluidamente", isto é, de acordo com o sentido de seus autores, e de modo algum de modo "cristalino", ou seja, de acordo com a sua verdadeira absurdidade, a fim de se alcançar a fé verdadeira e admirar a harmonia doméstica da Crítica.

"Engels e Marx, por isso, conhecem apenas a crítica da Literatur Zeitung" - uma mentira deliberada, que prova o quão "fluidamente" nosso santo homem leu o livro no qual seus últimos trabalhos são descritos como o mero corolário de todo o seu "trabalho já realizado". Mas também faltou ao Santo Padre a paz necessária para lê-lo cristalinamente, pois ele teme nos adversários o fato de estes contestarem a sua canonização, "de quererem privá-lo de sua santidade a fim de se santificarem a si mesmos".

Notemos ainda, de passagem, o fato de que, de acordo com a presente afirmação de São Bruno, sua Literatur-Zeitung não visava de modo algum fundar a "sociedade social" ou "representar, por assim dizer, a última lágrima de melancolia" da ideologia alemã, tampouco visava direcionar o espírito para a mais aguda oposição à massa e desenvolver a Crítica crítica em toda a sua pureza, mas sim - "expor a mediocridade e a fraseologia oca do liberalismo e do radicalismo do ano de 1842 e de seus ecos"99, ou seja, combater os "ecos" de algo já desaparecido. Tant de bruit pour une omelette!!I" Aliás, é exatamente aqui que a concepção de história própria à teoria alemã mostra-se novamente em sua "mais pura" nitidez. O ano de 1842 é tido como o período mais brilhante do liberalismo na Alemanha porque a filosofia participava, naquela época, da vida política. Para o crítico, o liberalismo desaparece com o fim dos Deutsche Jahrbücher e da Rheinische Zeitung órgãos da teoria liberal e radical. Após seu desaparecimento, ele deixa atrás de si apenas "ecos", ao passo que é apenas agora, quando a burguesia alemã sente uma necessidade real, produzida pelas relações econômicas, de obter o poder político e se esforça para consegui-lo, que o liberalismo tem na Alemanha uma existência prática e, consequentemente, alguma possibilidade de sucesso"

A profunda aflição causada a São Bruno por A sagrada família não lhe permitiu criticar essa obra "a partir de si mesma, por si mesma e em si mesma". Para conseguir dominar seu sofrimento, ele teve, primeiramente, de obter a obra em sua forma "fluida". Ele encontrou essa forma fluida numa resenha confusa e repleta de incompreensões publicada no Westphãlische Dampfboot, número de maio, p. 206-14103 Todas suas citações são extraídas das passagens citadas nesse Westphãlische Dampfboot, sem o qual nada do que está citado é o que de fato está citado.

Até a linguagem do santo crítico é determinada pela linguagem do crítico da Vestfália. Em primeiro lugar, todas as sentenças do prefácio citadas pelo autor da Vestfália (Dampfboot, p. 206) são transpostas para a Wigand's Vierteljahrsschrift (p. 140, 141). Tal transposição forma a parte principal da crítica baueriana, de acordo com o antigo princípio já recomendado por Hegel:

"Confiar no saudável senso comum e, de resto, para prosseguir em conformidade com os tempos e com a filosofia, ler as resenhas de escritos filosóficos, talvez até mesmo seus prefácios e parágrafos introdutórios, pois estes últimos fornecem os princípios gerais de onde tudo provém, e os primeiros, juntamente com a informação histórica, dão-nos uma apreciação que, por se tratar de uma apreciação, chega até mesmo a ultrapassar o objeto apreciado. Esse caminho comum pode ser percorrido de roupão; mas é em vestes sacerdotais que o sentimento elevado do eterno, do sagrado, do infinito percorre seu caminho"

caminho este que, como vimos, São Bruno também sabe "percorrer" enquanto "massacra" seus adversários (Hegel, Fenomenologia, p. 54). Depois de algumas citações do prefácio, o crítico vestfaliano segue em frente:

"Assim, o próprio prefácio nos conduz ao campo de batalha do livro" etc. (p. 206)

O santo crítico, tendo transferido essas citações para o Wigand's Vierteljahrsschrift, faz uma distinção mais sutil, e diz: "Tal é o terreno e o inimigo que Engels e Marx criaram para a batalha" °4

Da discussão do enunciado crítico "o trabalhador não cria nada", o crítico vestfaliano extrai apenas a conclusão resumida"'

O santo crítico realmente crê que isto é tudo o que foi dito sobre o enunciado, copia na p. 141 a citação vestfaliana e se regozija com a descoberta de que apenas "alegações" tenham sido contrapostas à Crítica.

Da elucidação das expectorações críticas sobre o amor, o crítico vestfaliano primeiramente compila, e em parte (p. 209), o coreus delicti" e, então, extrai da refutação algumas frases fora de contexto das quais ele desejaria se servir como autoridade para a aprovação de seu sentimentalismo viscoso.

O santo crítico -o copia palavra por palavra, sentença por sentença, na mesma ordem das citações de seu predecessor.

O crítico vestfaliano exclama, por sobre o cadáver do senhor Julius Faucher: "Tal é o destino do belo sobre a terra!"loa

O santo crítico não consegue completar o seu "árduo trabalho" sem se apropriar dessa exclamação (p. 142) de modo despropositado.

Na p. 212, o crítico vestfaliano faz um pretenso resumo dos argumentos dirigidos contra o próprio São Bruno n A sagrada família.

O santo crítico copia tranquila e literalmente toda essa tralha com todas as exclamações vestfalianas. Nem sequer sonha que, em todo esse escrito polêmico, em nenhum lugar é dito que ele "transforma o problema da emancipação política no problema da emancipação humana", "quer massacrar os judeus", "transforma os judeus em teólogos", "transforma Hegel no senhor Hinrichs"107 etc. Em sua credulidade, o santo crítico repete a declaração do vestfaliano de que n A sagrada família Marx tentaria fornecer uma espécie de pequeno tratado escolástico "como réplica à estúpida autoapoteose de Bauer". Ora, a expressão "estúpida autoapoteose", referida por Bruno como uma citação, não se encontra em nenhum lugar da Sagrada família, mas pode ser encontrada no crítico vestfaliano10S. Tampouco o pequeno tratado é oferecido como uma réplica à "autoapologia" da Crítica (A sagrada família, p. 150-63), mas apenas na seção seguinte (p. 165), por ocasião da questão histórico-mundial: "por que o senhor Bauer teve de fazer política?".

Finalmente, São Bruno apresenta Marx (p. 143) como um "divertido comediante", depois de seu modelo vestfaliano já ter reduzido "o drama histórico-mundial da Crítica crítica" à "mais divertida das comédias" (p. 213).

Vemos, assim, como os oponentes da Crítica "devem e podem" "saber como o crítico trabalhou e ainda trabalha!".

Necrológio de "M. He"

"Aquilo que Engels e Marx ainda não puderam realizar, M.Heís o realiza."109

Tal é a grande, divina transição que, graças aos relativos "poder" e "não poder" dos evangelistasllo agarrou os dedos de nosso santo homem tão firmemente que agora ela tem de encontrar seu lugar, adequado ou não, em cada artigo do Padre da Igreja.

"Aquilo que Engels e Marx ainda não puderam realizar, M.Heis o realiza." E o que é esse "aquilo" que Engels e Marx ainda não puderam realizar? Ora, nada mais nada menos do que - criticar Stirner. E por que Engels e Marx "ainda não puderam" criticar Stirner? Pela razão suficiente de que - o livro de Stirner ainda não havia sido publicado" quando eles escreveram A sagrada família.

Essa mágica especulativa, que consiste em construir tudo de antemão e de colocar as coisas mais diversas numa aparente relação causal, realmente passou da cabeça de nosso santo para seus dedos. Ela atinge, com ele, a mais total ausência de conteúdo e degenera num jeito burlesco de proferir tautologias com ares de importância. Por exemplo, agora já no Allg[emeinen] Literat[ur]-Z[ei]t[un]g (1, 5):

"A diferença entre meu trabalho e as folhas que, por exemplo, um Philippson ocupa com seus escritos" (ou seja, as folhas em branco em que, "por exemplo, um Philippson" escreve) "tem também, portanto, de ser constituída da forma como ela é constituída de fato'!!!n2

"M.Heis", por cujos escritos Engels e Marx não assumem nenhuma responsabilidade, é para o santo crítico uma visão tão estranha que ele não pode fazer nada além de copiar longas passagens de Die letzten Philosophen [Os últimos filósofos] e emitir o juízo de que "em diversos pontos essa crítica não compreendeu Feuerbach, ou então"113 (oh! teologia!) "que o pote quer se rebelar contra o oleiro" (cf. Epístola aos Romanos 9,20-21). Depois de mais um "árduo trabalho" de citações, nosso santo crítico chega enfim à conclusão de que Heis copia Hegel, pelo fato de que ele usa as duas palavras "sintetizado" e "desenvolvimento". Naturalmente, São Bruno não podia deixar de, dando uma meia-volta, lançar sobre Feuerbach a prova de sua total dependência de Hegel apresentada n A sagrada família. "Vejam, assim Bauer havia de terminar! Ele combateu por todos os meios e com toda a sua força todas as categorias hegelianas`14 com exceção da autoconsciência, especialmente na gloriosa batalha da Literatur-Zeitung contra o senhor Hinrichsl15. Como ele lutou e venceu, já vimos anteriormente. Para que não fiquem dúvidas, citemos ainda a seguinte passagem de Wigand (p. 110), onde ele afirma que

"a verdadeira" (1) "solução" (2) "das contradições" (3) "em natureza e história" (4), "a verdadeira unidade" (5) "das relações separadas" (6), "da genuína" (7) "base" (8) "e profundidade" (9) "da religião, a personalidade verdadeiramente" (10), "irresistível, autocriativa" (11), "infinita" (12), "ainda não foi encontrada".116

Em três linhas, não encontramos duas categorias equívocas, como em Heis, mas sim uma dúzia inteira "de verdadeiras, infinitas, irresistíveis" categorias hegelianas, que se confirmam enquanto tais por meio da frase" a verdadeira unidade das relações separadas" - "vejam, assim Bauer havia de terminar"! E se o santo homem pretende ter descoberto em Heis um cristão fiel, não porque Heis "tem esperança" - como o diz Bruno - mas sim porque ele não tem esperança e porque fala da "ressurreição"', então nosso grande Padre da Igreja nos permite demonstrar a existência nele, com base nessa mesma página 110, do mais pronunciado judaísmo. Ele declara que

"o homem real, vivo e em carne e osso ainda não nasceu"!!! (uma nova elucidação sobre a determinação do "sexo único") "e a aberração produzida" (Bruno Bauer?!?) "ainda não se encontra em estado de dominar todas as fórmulas dogmáticas".

Quer dizer, o Messias ainda não nasceu, o filho do Homem deve primeiro vir ao mundo e este mundo, sendo o mundo do Antigo Testamento, permanece ainda sob a égide da lei, "das fórmulas dogmáticas". Da mesma forma como São Bruno utilizou-se acima de "Engels e Marx" como uma passagem a Heg, ele se serve agora de Heis para finalmente estabelecer um nexo causal entre Feuerbach e suas digressões sobre Stirner, A sagrada família e Die letzten Philosophen:

"Vejam, assim Feuerbach havia de terminar!" "A filosofia tinha de acabar piedosamente etc." (Wigand, p. 145)

Mas o verdadeiro nexo causal está em que essa exclamação é um plágio de uma passagem de Die letzten Philosophen, de Heg, dirigida contra Bauer, entre outros (prefácio, p. 4):

"Era assim, [...] e não de outra forma, que os últimos descendentes dos ascetas cristãos haviam de se despedir do mundo."

São Bruno conclui suas alegações contra Feuerbach e seus supostos consortes com uma interpelação a Feuerbach, dizendo que tudo o que ele pode fazer é apenas "trompetear", "fazer soar a fanfarra", ao passo que o Monsieur B. Bauer ou a Madame la critique (para não falar da "aberração produzida" por sua obra de "destruição" contínua) "passa em seu carro triunfante e colhe novos triunfos" (p. 125), "arranca de seu trono" (p. 119), "massacra" (p. 111), "fulmina como um raio" (p. 115), "destrói de uma vez por todas" (p. 120), "espanca" (p. 121), permite à natureza somente "vegetar" (p. 120), "constrói prisões" "mais rigorosas" (!) e, finalmente, com a sua "massacrante" eloquência de púlpito, desenvolve de uma forma ousada-piedosa-alegre-livre o mundo "existente-fixo-firme-sólido" (p. 105), lança à cara de Feuerbach (p. 110) "matéria rochosa e as rochas" e, por fim, com uma reviravolta à direita, triunfa também sobre São Max, ao completar (p. 124) a "Crítica crítica", a "sociedade social", "a matéria rochosa e as rochas" por meio da "abstratividade mais abstrata" e da "dureza mais dura".

São Bruno realiza tudo isso "por si mesmo, em si mesmo e consigo mesmo", pois ele é "Ele mesmo", de fato, ele é "ele próprio sempre o maior e pode sempre ser o maior" (é e pode sê-lo!) "por si mesmo, em si mesmo e consigo mesmo" (p. 136). Sela.

São Bruno seria indubitavelmente um perigo para o sexo feminino - pois ele é a "personalidade irresistível" -, caso ele não temesse "na mesma medida, por outro lado", "o sensível, como barreira contra a qual o homem tem de sofrer o golpe de misericórdia". Consequentemente, é bem provável que ele não venha a colher nenhuma flor "por si mesmo, em si mesmo e consigo mesmo", mas que apenas as deixe murchar na nostalgia infinita e no lânguido desejo que nutre por esta "personalidade irresistível", que "possui este sexo único e estes órgãos sexuais únicos, determinados".`'