Biblioteca:A sagrada família

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A sagrada família
Escrito porKarl Marx & Friedrich Engels
Escrito emNovembro de 1844
Publicado 1ª vezFevereiro de 1845
TipoLivro
FonteEPUB

Prefácio

O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo –, que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a “autoconsciência” ou o “espírito” e ensina, conforme o evangelista: “O espírito é quem vivifica, a carne não presta”. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito em sua própria imaginação. O que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura. Ela representa, para nós, a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental.

Nossa exposição se atém principalmente ao “Jornal Literário Geral” de Bruno Bauer – e seus oito primeiros cadernos estavam a nosso dispor –, porque é ali que a Crítica baueriana, e com ela o despropósito da especulação alemã como um todo, alcançam o ápice. A Crítica crítica[p 1] (ou seja, a crítica do “Jornal Literário”) torna-se tanto mais instrutiva quanto mais converte a inversão da realidade, empreendida através da filosofia, na mais plástica das comédias. Veja-se, por exemplo, Faucher e Szeliga. O “Jornal Literário” oferece um material à luz do qual também o grande público poderá ser informado a respeito das ilusões da filosofia especulativa. E é essa a finalidade de nosso trabalho.

Nossa exposição naturalmente é condicionada por seu objeto. Em regra, a Crítica crítica se encontra abaixo das alturas alcançadas pelo desenvolvimento teórico alemão. A natureza de nosso objeto justifica, portanto, o fato de aqui não avaliarmos esse mesmo desenvolvimento.

A Crítica crítica obriga, muito antes, a mostrar a validade dos resultados já disponíveis como tais, opondo-os aos resultados que ela alcançou.

É por isso que antepomos essa polêmica aos escritos propriamente ditos, nos quais nós – cada um por si, entenda-se[p 2] – haveremos de expor nossa visão positiva, e com ela nossa atitude positiva ante as novas doutrinas filosóficas e sociais.

Engels & Marx
Paris, setembro de 1844

Notas

  1. Em alemão: kritische Kritik. Para diferenciar o substantivo do adjetivo – em português ambos são escritos de maneira exatamente igual, ao contrário do que acontece no alemão –, manteremos o primeiro em maiúscula. Além da diferença, estará sendo mostrada a ênfase especial e a análise diferenciada – e crítica – que Marx e Engels dão à Crítica de Bruno Bauer e seus consortes.
  2. A autoria específica dos artigos aparece definida no Índice. A sagrada família é o resultado do trabalho conjunto de Marx e Engels e foi encaminhada a partir do segundo encontro dos dois pensadores, em agosto de 1844, em Paris. A contribuição de Marx é bem maior – e a avaliação é apenas volumétrica – que a de Engels, e reúne suas anotações acerca dos Manuscritos econômico-filosóficos bem como suas anotações acerca da Revolução Francesa. O livro é – descontadas as duas contribuições de Marx aos Anais franco-alemães (Deutsch-Französische Jahrbücher), quais sejam: “Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução” e “Sobre a questão judaica” – o único escrito rigorosamente filosófico do período precoce publicado pela intervenção direta dos autores. Obras como os Manuscritos de Paris (Pariser Manuskripte), Sobre a crítica do Estado de direito hegeliano (Zur Kritik des Hegelschen Staatsrechts, 1843, publicada apenas em 1927), de Marx, ou até mesmo A ideologia alemã (Deutsche Ideologie, 1846, publicada apenas em 1932), que os dois também escreveram juntos, seriam publicadas apenas postumamente. A sagrada família apareceria já em fins de fevereiro de 1845.

“A crítica crítica sob a feição do mestre encadernador” ou a crítica crítica conforme o senhor Reichardt

Friedrich Engels

A Crítica crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela mesma massa. Foi tão grande o amor da Crítica pela massa que ela enviou seu próprio filho unigênito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. E eis que a Crítica se torna massa e habita entre nós, e nós vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigênito do pai. Quer dizer, a Crítica torna-se socialista e fala de “escritos sobre o pauperismo”. Ela não vê um assalto no fato de querer ser igual a Deus, mas apenas renuncia a si mesma e assume a feição de mestre encadernador, rebaixando-se ao nível mais absurdo – sim, ao absurdo crítico em línguas estrangeiras. Ela, que em sua pureza virginal e celeste, retrocedia assustada diante do contato com a massa pecadora e leprosa, dominou-se a ponto de dar importância a “Bodz” e “todos os escritores-fonte do pauperismo, marchando há anos passo a passo com o mal de nossa época”; ela desdenha escrever aos eruditos especializados e escreve para o grande público, afasta todas as expressões de caráter estranho, todo o “cálculo latino, todo o jargão corporativo” – tudo isso ela afasta dos escritos de outros, pois seria querer pedir demais desejar que a Crítica se submetesse, ela mesma, a “este regulamento da administração”. Todavia até mesmo isso ela chega a fazer – em parte, pelo menos – desembaraçando-se com admirável facilidade, se não das palavras em si, pelo menos de seu conteúdo; e quem haverá de acusá-la de fazer uso da “grande pilha de palavras estrangeiras ininteligíveis”, se ela mesma nos obriga a chegar a essa conclusão através de manifestações sistemáticas que dão conta de que essas palavras permaneceram ininteligíveis também para ela? Algumas provas dessa manifestação sistemática:

Por isso lhes são abomináveis as instituições do pauperismo.

Uma lição de responsabilidade, na qual toda emoção do pensamento humano se converte na imagem da mulher de Ló.

Sobre a pedra que coroa este edifício artístico, de fato rico em convicções.

Este é o conteúdo fundamental do testamento político de Stein, que o grande estadista entregou antes mesmo de se despedir do serviço ativo do governo e de todos seus escritos.

Este povo não possuía ainda nenhumas dimensões para uma liberdade tão ampla.

Porquanto ele, no fim de seu escrito publicista, parlamentou com relativa certeza, assegurando que falta apenas confiança.

Ao juízo varonil que levanta o Estado, que sabe elevar-se acima da rotina e do temor pusilânime, que se forjou na história e se nutriu com viva intuição nas instituições públicas estrangeiras. A educação de uma beneficência nacional geral. A liberdade permaneceu morta no seio da missão popular prussiana, sob o controle das autoridades públicas.

Publicística orgânico-popular.

Ao povo, ao qual também o senhor Brüggemann distribui a certidão de batismo de sua emancipação.

Uma contradição bastante vivaz contra as demais determinações, proclamadas na obra com respeito aos dotes vocacionais do povo.

O egoísmo enfadonho dissolve todas as quimeras da vontade nacional com rapidez.

A paixão de adquirir muito etc., esse era o espírito que permeou toda a época da Restauração e que se integrou aos novos tempos com uma quantidade bastante significativa de indiferença.[1 1]

O obscuro conceito de significação política, passível de ser encontrado na nacionalidade prussiana de caráter rural, descansa sobre a lembrança de uma grande história.

A antipatia desapareceu e converteu-se em um estado de exaltação completa.

Cada qual a seu modo ainda expôs, nesta maravilhosa transição, a perspectiva de seus especiais desejos.

Um catecismo em untuosa linguagem salomônica, cujas palavras esvoaçam leves como pombas e se elevam – frufru! – à região do páthos e dos aspectos tonitruantes.[1 2]

Todo o diletantismo de um abandono de trinta e cinco anos.

As condenações demasiado vivazes dos cidadãos através de um de seus antigos comitês até poderiam ser aceitas pela tranquilidade de ânimo de nossos representantes, caso a concepção de Benda acerca do regime municipal de 1808 não laborasse por uma afecção conceitual muçulmana sobre a natureza e o emprego da ordem citadina.

E a intrepidez estilística do senhor Reichardt anda lado a lado com a intrepidez do raciocínio em si. Ele é capaz de entabular transições como as que seguem:

O senhor Brüggemann... ano de 1843... teoria do Estado... todo o probo... a grande modéstia de nossos socialistas... milagres naturais... exigências a serem expostas à Alemanha.... milagres sobrenaturais... Abraão... Filadélfia... maná... mestre-padeiro... mas porque nós estamos a falar de milagres, Napoleão logrou etc.

Depois dessas amostras, não é de estranhar – nem um pouco, aliás – que a Crítica crítica sempre ofereça uma “explicação” à frase que ela mesma considera um “modo popular de se exprimir”. Pois ela “apetrecha seus olhos com a força orgânica de penetrar o caos”. E, sendo assim, resta dizer que nem mesmo o “modo popular de se exprimir” da Crítica crítica pode restar incompreensível no final. Ela se dá conta de que o caminho dos literatos permanece torto, caso o sujeito que o trilha não se mostrar forte o suficiente a ponto de conseguir endireitá-lo e, por isso, atribui com naturalidade “operações matemáticas” ao escritor.

Per si se compreende, e a história, que prova tudo o que per si se compreende, prova também isso: que a Crítica não se torna massa a fim de permanecer massa, mas para libertar a massa de sua massificação massiva, ou seja, para elevar o modo popular de se exprimir na linguagem crítica da Crítica crítica. Este é o estágio mais estagiário da humilhação, quando a Crítica aprende a linguagem popular das massas e transcende esse jargão tosco para o cálculo superabundante da dialética criticamente crítica.

Notas

  1. As construções bizarras do senhor Reichardt são um dos pontos criticados com dureza por Engels, autor deste capítulo.
  2. Outro aspecto criticado é o nefelibatismo pseudo-poético de construções como a presente, cheias de pomposidade e vazias de conteúdo, até ridículas. A relação da “Crítica crítica” com a “massa” é ironizada com virtuosismo; a primeira está para o Deus cristão, que sente piedade ante a limitação da segunda, os mortais, ou seja, a massa.

“A crítica crítica” na condição de “Moinhotenente” ou a crítica crítica conforme o senhor Jules Faucher

Friedrich Engels

Depois de a Crítica ter se rebaixado até o absurdo em línguas estrangeiras, de ter prestado à autoconsciência os serviços mais essenciais, e ao mesmo tempo ter libertado o mundo do pauperismo através disso, ela se rebaixa também ao absurdo na práxis e na história. Ela se apossa das “questões inglesas do dia” e nos oferece um esboço da história da indústria inglesa, que é genuinamente crítico.

A Crítica, que se basta a si mesma, que se completa e encerra-se em si mesma, naturalmente não pode reconhecer a história tal como ela de fato aconteceu, pois isso significaria reconhecer a massa ruim em toda sua massificação massiva, quando se trata justamente de libertar a massa da massificação. Com isso, a história é libertada de sua massificação, e a Crítica, que adota uma atitude livre em relação a seu objeto, grita para a história: tu deves ter ocorrido de tal ou qual modo! As leis da Crítica têm, todas elas, efeito retroativo; antes de seus decretos, a história ocorria de modo bem diferente do que passou a ocorrer depois deles. Eis aqui por que a história massiva, a chamada história real, desvia-se de maneira significativa da crítica, que passa a acontecer a partir da página 4 do Caderno VI do “Jornal Literário Geral”.

Na história massiva não houve nenhuma cidade fabril antes de haver fábricas; mas na história crítica, na qual o filho gera o próprio pai – coisa que já acontecia em Hegel, aliás –, Manchester, Bolton e Preston são florescentes cidades fabris, antes mesmo de se ter pensado em fábricas. Na história real, a indústria de algodão foi criada sobretudo graças à “Jenny” de Hargreaves e à “throstle” (máquina hidráulica de fiar) de Arkwright, ao passo que a “mule” de Crompton[2 1] não foi mais que um aperfeiçoamento da Jenny através do princípio descoberto por Arkwright; mas a história crítica sabe distinguir, despreza a unilateralidade da Jenny e da throstle e dá a coroa à mule, fazendo dela a identidade especulativa do extremo. Na realidade, a invenção da throstle e da mule trouxe consigo de imediato a utilização da força hidráulica para esse tipo de máquinas, mas a Crítica crítica diferencia os princípios amontoados e confusos da história bruta e faz com que a utilização apareça apenas bem mais tarde, como se fosse algo bastante particular. Na realidade a descoberta da máquina a vapor precedeutodas as descobertas acima citadas, mas na Crítica vemos que ela ocorre no final, na condição de coroa para o todo.

Na realidade, a aliança de negócios entre Liverpool e Manchester foi, em seu significado atual, a consequência da exportação de mercadorias inglesas; na Crítica essa aliança de negócios é a causa desse fenômeno e ambas – aliança e exportação – a consequência do fato de aquelas duas cidades serem vizinhas. Na realidade, quase todas as mercadorias saem de Manchester, passam por Hull ao continente; na Crítica elas passam por Liverpool.

Na realidade há, nas fábricas inglesas, todas as gradações de salário, de um e meio xelim a 40 xelins e inclusive mais; na Crítica paga-se apenas um salário ao trabalhador: 11 xelins. Na realidade a máquina substitui o trabalho manual; na crítica ela substitui o ato de pensar. Na realidade uma união dos trabalhadores com o objetivo de aumentar o salário é permitida na Inglaterra; mas na Crítica ela é proibida, uma vez que a massa tem, ela mesma, de perguntar à Crítica, se quiser se permitir tomar uma atitude. Na realidade o trabalho na fábrica fatiga de maneira significativa o trabalhador e origina enfermidades típicas – há, inclusive, várias obras medicinais que tratam exclusivamente dessas enfermidades; na crítica “o esforço excessivo não impede nem estorva o trabalho, pois a força é empreendida toda ela pela máquina”. Na realidade a máquina é uma máquina; na Crítica ela é dotada de vontade, pois, uma vez que ela não descansa, o trabalhador também não pode descansar e torna-se súdito de uma vontade estranha.

Mas isso ainda não é nada de mais. A Crítica não se contenta com os partidos massivos da Inglaterra; ela cria novos, ela cria um “partido fabril”, pelo que a história por certo haverá de lhe agradecer. Por outro lado, ela atira fabricantes e trabalhadores de fábrica em um único montão massivo – e por que a gente haveria de se preocupar com pequenezas do tipo – e decreta que os trabalhadores de fábrica não contribuíram para o fundo da Anti-Corn-Law-League[2 2] não devido a sua má vontade e ao cartismo, como pensam os fabricantes estúpidos, mas apenas devido à pobreza. Mais adiante ela decreta que com a abolição das leis inglesas acerca dos grãos, os assalariados agrícolas terão de resignar-se com uma redução de seu salário, ainda que nós gostaríamos de observar com humildade que essa classe miserável não pode prescindir de um centavo sequer daquilo que hoje ganha, sem ver-se condenada a morrer de fome. Ela decreta que nas fábricas da Inglaterra são trabalhadas dezesseis horas, mesmo que a legislação simplista e desprovida de espírito crítico da Inglaterra tenha providenciado para que não se possa trabalhar mais do que doze horas por dia. Ela decreta que a Inglaterra tem de ser uma imensa oficina para o mundo, ainda que os americanos, alemães e belgas – massivos e desprovidos de espírito crítico – pouco a pouco deteriorem os mercados ingleses um a um através de sua concorrência. Ela decreta, enfim, que a centralização da propriedade e suas consequências para as classes trabalhadoras não são conhecidas nem pelas classes possuidoras nem pelas desprovidas de posses na Inglaterra, mesmo que os estúpidos cartistas acreditem conhecê-las muito bem e os socialistas já pensem ter apresentado há tempo e no detalhe essas consequências, quando até mesmo tories e whigs[2 3] como Carlyle, Alison e Gaskell já tenham demonstrado ter conhecimento desses resultados em suas obras.

Crítica decreta que a proposta de lei de dez horas encaminhada por lorde Ashley[2 4] constitui uma frouxa medida de juste-milieu [“justo meio”] e que o próprio lorde Ashley seria uma “imagem fiel da ação constitucional”, ao passo que os fabricantes, os cartistas, os proprietários de terras, curto e grosso, toda a massificidade da Inglaterra, vêm considerando até agora a dita medida como a expressão por certo mais moderada possível de um princípio marcado pelo radicalismo, uma vez que dispõem o machado sobre a raiz do comércio exterior, alcançando com isso a raiz do sistema fabril; mais que dispor o machado, aliás, eles cravam-no profundamente dentro dela. Mas a Crítica crítica considera-se melhor ajuizada a respeito. Ela sabe que a questão das dez horas foi tratada ante uma “Comissão” da Câmara dos Comuns, apesar de os jornais acríticos quererem nos fazer crer que essa “Comissão” constituiu a Câmara em si, ou seja, que foi um “Comitê da Câmara inteira”; mas a Crítica necessariamente tem de suspender essa bizarria da Constituição inglesa.

A Crítica crítica, que gera ela mesma a estupidez da massa – sua antagônica –, gera também a estupidez de sir James Graham e põe em sua boca, através do esclarecimento crítico da língua inglesa, coisas que o acrítico Ministro do Interior jamais disse, a fim de que a sabedoria da Crítica refulja de modo tanto mais brilhante ante a estupidez de Graham. Ela afirma que Graham teria dito que as máquinas das fábricas estariam desgastas em doze anos, pouco importando se funcionassem durante dez ou doze horas diárias, razão pela qual o projeto de lei das dez horas diárias impediria os capitalistas de reproduzir em doze anos, mediante o trabalho das máquinas, o capital investido nelas. A Crítica pretende mostrar que, desse modo, pôs uma conclusão falaciosa na boca de sir James Graham, pois uma máquina que trabalhar diariamente um sexto a menos do tempo normal com certeza haverá de poder ser utilizada por um tempo maior.

Por mais correta que seja essa observação da Crítica crítica, inclusive contra sua própria conclusão falaciosa, há que se concordar, por outro lado, com sir James Graham, uma vez que ele mesmo disse que a máquina teria de funcionar tanto mais rápida sob um regime de dez horas, trabalhando mais, ao cabo, do que faria sem a redução do tempo – coisa que até mesmo a Crítica refere no Caderno VIII, página 32 – e que diante dessa premissa o tempo de desgaste acabaria sendo o mesmo, ou seja, doze anos. Isso tem de ser reconhecido, tanto mais porque esse reconhecimento acaba contribuindo para a fama e a glorificação “da Crítica”, uma vez que apenas a Crítica e tão somente a Crítica inventou essa conclusão falaciosa para em seguida, ela mesma, dissolvê-la. A mesma generosidade ela demonstra em relação a lorde John Russel, a quem ela atribui, sub-repticiamente, o propósito de mudar a forma política de governo e do sistema eleitoral, do que somos obrigados a concluir, de duas, uma: ou que o afã da Crítica em produzir necessidades é extraordinariamente grande, ou que lorde John Russel tornou-se um Crítico crítico de uma hora para outra. Mas grandiosa de verdade a Crítica torna-se apenas na fabricação de estupidezes, ao descobrir que os trabalhadores da Inglaterra – trabalhadores que em abril e maio realizaram meetings atrás de meetings, apresentaram petições em cima de petições, e tudo em favor do projeto de lei das dez horas, eles que estavam tão agitados como já há dez anos não estavam, e isso de uma ponta dos distritos fabris até a outra –, ao descobrir que esses trabalhadores, portanto, tinham apenas um “interesse parcial” na questão, ainda que esteja demonstrado que “também a redução legal de tempo de trabalho tenha ocupado sua atenção”; e quando, sobretudo, ela termina fazendo a grande, a maravilhosa, a inaudita descoberta de que “a ajuda aparentemente mais imediata que representa a abolição das leis relativas à entrada de grãos absorve e seguirá absorvendo a maior parte dos desejos dos trabalhadores, até que a realização desses desejos, que evidentemente já não podem mais ser postos em dúvida, lhes demonstre na prática a inutilidade desses mesmos desejos”. E logo os trabalhadores, acostumados a, em todos os meetings públicos, jogar púlpito abaixo aqueles que pregam a abolição da Lei do Grão, logo eles que alcançaram fazer com que a Liga contra a Lei do Grão não se atreva a celebrar um só meeting público nas cidades fabris, logo eles que consideram essa Liga seu único inimigo e que, durante a discussão da lei das dez horas, como quase sempre ocorreu anteriormente em semelhantes questões, foram apoiados pelos tories. Não deixa de ter lá sua beleza verificar também que a Crítica consegue descobrir que “os trabalhadores seguem deixando se seduzir pelas amplas promessas do cartismo”, que no fundo não é mais do que apenas a expressão política da opinião pública entre os trabalhadores; e vê-la dar-se conta, nas profundezas de seu espírito absoluto, de que “as duplas tendências partidárias, a política e a dos proprietários de terras e de moinhos, já não marcham mais juntas e estão longe de coincidir uma com a outra”, sendo que até agora não era conhecido que a tendência política dos proprietários de terra e de moinhos, dado o reduzido número das duas classes de proprietários e os direitos e a legitimidade política de ambos (exceção feita ao restrito número de pairs [“pares”]), era tão abrangente, a ponto de, em vez de representar a expressão consequente, a ponta dos partidos políticos, coincidiam em absoluto e inclusive se identificavam totalmente com essas tendências políticas. Ademais é bonito de ver a Crítica crítica atribuindo aos partidários da abolição da Corn-Law a presunção de que ignoram que, ceteris paribus [“mantidas as mesmas circunstâncias”], a baixa do preço do pão acarretaria também, necessariamente, a baixa dos salários e de que tudo seguiria igual a antes; enquanto essas gentes esperam, aceitando a baixa dos salários e com isso dos custos de produção, que ocorra uma ampliação do mercado e através dela uma diminuição da concorrência entre os trabalhadores, do que resultaria, no final, a manutenção de um salário mais alto do que agora em relação aos preços do pão.

A crítica, movendo-se com beatitude artística na livre criação de seu antagônico, o absurdo, a mesma crítica que proclamava há dois anos: “A Crítica fala alemão, a teologia latim”, essa mesma Crítica agora aprendeu inglês e chama os proprietários de terra de “terratenentes” (land-owners), os fabricantes de “moinhotenentes” (mill-owners) – mill é, na língua inglesa, qualquer fábrica, cujas máquinas são impulsionadas a vapor ou pela força das águas –, os trabalhadores de “mãos” (hands), ao invés de “ingerência” diz interferência (interference) e, levada por sua infinita comiseração pela língua inglesa, regurgitante de massificidade pecaminosa, a Crítica se concede o direito de melhorá-la, inclusive, e acaba com a pedanteria que faz os ingleses assentar o título de “sir” ante os prenomes de cavaleiros e baronetes. A massa diz: “sir James Graham”; a Crítica: “sir Graham”.

Que a Crítica crítica recria a língua e a história inglesas por princípio e não por leviandade, haverá de ser provado em breve através da profundidade com que ela trata a história do senhor Nauwerck.

Notas

  1. Entre 1738 e 1835 foram feitas várias descobertas no que diz respeito à mecanização da atividade de fiar, todas elas de grande importância no desenvolvimento do capitalismo. Em 1764 foi a referida “máquina de Jenny”, de James Hargreaves, aperfeiçoada entre 1769 e 1771 por Richard Arkwright. Em 1779, a “máquina de mule” ou Hand-Mule, de Samuel Crompton. Em 1825 foi a vez da self-acting muleou self-actor (algo como a “auto-ativa”), a máquina de fiar automática de Richard Roberts.
  2. “Liga contra a Lei do Grão”, associação de livre-comércio fundada em 1838 pelos fabricantes Cobden e Bright em Manchester. A assim chamada “Lei do Grão”, que objetivava cercear – conforme o caso, proibir – a entrada de cereais estrangeiros, foi implantada na Inglaterra para defender os interesses dos grandes proprietários de terras, dos lordes rurais. A Liga exigia completa liberdade comercial e lutava pela extinção da “Lei do Grão” com o objetivo de reduzir os salários dos trabalhadores e enfraquecer as posições políticas da aristocracia rural. Em sua luta contra os proprietários de terra, a Liga tentou explorar as massas trabalhadoras. Mas justamente naquela época os adiantados trabalhadores ingleses começavam a trilhar o caminho que levava a um movimento independente e marcadamente político, o cartismo (cujo programa estava inscrito na chamada Carta do Povo). A luta entre a burguesia industrial e a aristocracia rural terminou em 1846 com a aceitação do programa para a abolição da Corn-Law. Depois disso a Liga acabou se dissolvendo.
  3. Whig: o termo nomeia os membros de um dos dois grandes partidos políticos da Inglaterra do século XVII; eram não conformistas que rejeitavam o poder absolutista do rei e opunham-se aos tories (do partido conservador); a palavra, originalmente pejorativa, significava “ladrão de cavalo”.
  4. A luta pela restrição legal do trabalho diário a dez horas já começara na Inglaterra no final do século XVIII e compreendia grande parte do proletariado a partir dos anos 1830. Uma vez que os representantes da aristocracia rural estavam dispostos a explorar essa solução popular em sua luta contra a burguesia industrial, passaram a defender a “proposta de lei de dez horas” no parlamento. O movimento em favor da lei era encabeçado – no parlamento – por lorde Ashley, cognominado “tory filantrópico”.

“A profundidade da crítica crítica” ou a crítica crítica conforme o senhor J. (Jungnitz?)

Friedrich Engels

A querela infinitamente importante do senhor Nauwerck com a Faculdade de Filosofia de Berlim não poderia passar ao largo da avaliação da Crítica crítica; ora, ela passou por experiência semelhante e tinha de tomar os fados do senhor Nauwerck como pano de fundo e através disso destacar com força tanto maior sua horrorosa destituição de Bonn.[3 1] Uma vez que a Crítica está acostumada a considerar a história de Bonn como o acontecimento do século e já escreveu a “Philosophie der Absetzung der Kritik” (Filosofia da Remoção da Crítica), era de se esperar que ela construísse filosoficamente a colisão berlinense de um modo semelhante, indo até o mais ínfimo dos detalhes. Ela prova a priori que tudo tinha de ocorrer tal como ocorreu, e não de outro modo, a saber:

  1. porque a Faculdade de Filosofia tinha de “colidir” não com um lógico e metafísico, mas justamente com um filósofo do Estado;
  2. porque essa colisão não poderia alcançar a dureza e a decisão que teve o conflito da Crítica com a teologia na Universidade de Bonn;
  3. porque a colisão na verdade era uma coisa bem boba, uma vez que a Crítica já havia concentrado todo seu valor, todos seus princípios na colisão de Bonn, razão pela qual a história universal apenas poderia converter-se em plagiária da Crítica;
  4. porque a Faculdade de Filosofia se sentiu atacada, ela mesma, nos escritos do senhor Nauwerck;
  5. porque não restou ao senhor N(auwerck) outra coisa a não ser renunciar voluntariamente;
  6. porque a Faculdade tinha de defender o senhor N(auwerck), caso não quisesse capitular ela mesma;
  7. porque a “cisão interna na essência da Faculdade tinha de manifestar-se necessariamente de tal modo”, concedendo e tirando a razão ao mesmo tempo, tanto ao senhor N(auwerck) quanto ao governo;
  8. porque a Faculdade não encontrou nenhum motivo nos escritos de N(auwerck) que justificasse seu afastamento;
  9. que é o que condiciona toda a obscuridade de todo o processo;
  10. porque a Faculdade “na condição de entidade científica (!), se acredita (!), no direito (!), de enfocar o assunto, tomando-o pelo miolo”; e enfim
  11. porque ainda assim a Faculdade não quer escrever do mesmo modo que o senhor N(auwerck).

A Crítica crítica resolve essas importantes perguntas em quatro páginas, com rara profundidade, demonstrando a partir da Logik (Lógica) de Hegel por que tudo ocorreu assim e por que nenhum deus poderia intervir mudando o ocorrido. Em outra passagem a Crítica diz que não foi reconhecida ainda nenhuma época histórica; a modéstia impede-a de dizer que reconhece perfeitamente pelo menos a sua própria e a colisão de Nauwerck, que, embora não sejam épocas, fazem época segundo seu ponto de vista.

A Crítica crítica, que “suprassumiu” o “momento” da profundidade dentro de si, tornar-se-á “Quietude do conhecer”.

Notas

  1. Bonner Entsetzung”, no original. O jogo de palavras é brilhante. O verbo “entsetzen” pode significar tanto “destituir” quanto “horrorizar”. Com relação ao fato: o governo prussiano suspendeu temporariamente a licença de professor de Bruno Bauer – que é a quem se refere o “sua”, pois ele é o chefe da “sagrada família” – junto à Universidade de Bonn em 1841, devido a seus escritos críticos em relação à religião. Em março de 1842 ele foi afastado definitivamente da Universidade. O horizonte provinciano da “Crítica crítica” é ridicularizado ao extremo na denúncia de um probleminha de ordem privada que é elevado por seus discípulos à categoria de “acontecimento histórico-universal”.

“A crítica crítica” na condição de quietude do conhecer ou a “crítica crítica” conforme o senhor Edgar

“A Union Ouvrière” de Flora Tristan[4 1]

Friedrich Engels

Os socialistas franceses afirmam: O trabalhador faz tudo, produz tudo, e apesar disso não tem nenhum direito, nenhuma propriedade, enfim, não tem nada. A Crítica crítica responde através da boca do senhor Edgar, a Quietude do conhecer personificada:

Para poder criar tudo, é necessária uma consciência mais forte do que a consciência do trabalhador. Apenas invertida é que a sentença seria verdadeira: O trabalhador não faz nada, por isso não tem nada, mas ele não faz nada porque seu trabalho é sempre, permanentemente, um trabalho concreto, diário, limitado apenas a suas necessidades mais pessoais.

Aqui a Crítica atinge a completude ao alcançar aquela altura da abstração na qual ora considera como “algo”, ora como “tudo”, exclusivamente as criações de seu próprio pensamento e as generalidades contrárias a toda a realidade. O trabalhador não cria nada, porque cria apenas “unidades”, quer dizer, objetos físicos, tangíveis, desprovidos de espírito e de crítica, objetos que são um verdadeiro horror aos olhos da Crítica pura. Tudo o que é real, tudo o que é vivo é acrítico, massivo e, portanto, “nada”, ao passo que apenas as criaturas ideais e fantásticas da Crítica crítica são “tudo”.

O trabalhador não cria nada, porque seu trabalho é sempre, permanentemente, um trabalho concreto, diário, limitado apenas a suas necessidades mais pessoais; ou seja, porque as ramificações concretas e combinadas do trabalho, dentro da atual ordem universal, encontram-se separadas, postas em oposição umas às outras; resumindo, porque o trabalho não está organizado. A própria sentença da Crítica, caso a interpretarmos segundo o único sentido racional que pode ter, exige a organização do trabalho. Flora Tristan, em cujo julgamento essa grande sentença logrou alcançar a luz do dia, postula o mesmo e, por causa dessa insolência – ou seja, por se antecipar à Crítica crítica –, é tratada en canaille.[4 2] O trabalhador não cria nada; esta sentença é, aliás – se prescindirmos do fato de que o trabalhador individual não produz nada que seja total, o que representa uma tautologia –, completamente maluca. A Crítica crítica não cria nada, o trabalhador cria tudo, e tudo de forma tal que enche de vergonha toda a Crítica, também em suas criações espirituais; os trabalhadores franceses e ingleses dão testemunho disso. O trabalhador cria até mesmo o ser humano; o Crítico permanecerá sempre um ser inumano, para o que lhe resta, por certo, a satisfação de ser um Crítico crítico.

Flora Tristan nos dá um exemplo daquele dogmatismo feminino que pretende possuir uma fórmula e a modela para si a partir das categorias do existente.

A Crítica crítica não faz mais do que modelar para si “fórmulas a partir das categorias do existente”, quer dizer, da existente filosofia hegeliana e dos existentes esforços sociais; fórmulas, nada mais que fórmulas, e apesar de todas as suas invectivas contra o dogmatismo ela condena-se a si mesma ao dogmatismo, ao dogmatismo feminino. Sim, ela é e continuará sendo sempre uma mulher velha: a filosofia hegeliana emurchecida e enviuvada, que maquia e adorna seu corpo ressequido a ponto de alcançar a abstração mais asquerosa, olhando de soslaio por todos os cantos em busca de um cliente.[4 3]

Béraud acerca das mulheres da vida

Friedrich Engels

O senhor Edgar, que apenas uma vez sentiu compaixão pelas questões sociais, mete seu bedelho também nas “condições das prostitutas” (Caderno V, página 26).

Ele critica o livro de Béraud, comissário da polícia de Paris, sobre a prostituição, porque lhe interessa “o ponto de vista” a partir do qual “Béraud concebe a posição das mulheres da vida ante a sociedade”. A “Quietude do conhecer” fica admirada com o fato de ver que um homem da polícia tem um ponto de vista policial e dá a entender à massa que esse ponto de vista é de todo errado. O seu próprio ponto de vista... ela não dá a entender. Naturalmente! Quando a Crítica crítica decide interessar-se pelas mulheres da vida, ninguém pode exigir que isso ocorra em público.

O amor

Karl Marx

A fim de atingir a perfeição da “Quietude do conhecer”, a Crítica crítica tem de procurar desembaraçar-se, antes de tudo, do amor. O amor é uma paixão e não há nada mais perigoso para a Quietude do conhecer do que a paixão. Eis aqui o motivo pelo qual, a propósito dos romances da senhora Von Paalzow – que ele garante ter “estudado minuciosamente” –, o senhor Edgar logra manter o domínio sobre “uma criancice semelhante ao chamado amor”. Uma coisa dessas é um pavor e um horror, que atiça a Crítica crítica à fúria, tornando-a quase amargamente biliosa, levando-a à loucura inclusive.

O amor... é um deus cruel que, assim como toda a divindade, quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico. Seu culto é o sofrimento e o ápice desse culto é o autossacrifício, o suicídio.

A fim de metamorfosear o amor em “Moloch”, no diabo em carne e osso, o senhor Edgar transforma-o primeiro em um deus. Feito deus, quer dizer, transformado em um objeto teológico, ele passa com naturalidade ao domínio da Crítica da Teologia, além do que, deus e o diabo jamais andam muito distantes um do outro, conforme se sabe. O senhor Edgar transforma o amor em um deus e em um “deus cruel”, seja dito, ao fazer do homem enamorado, ou seja, do amor do homem, o homem do amor, ao colocar o “amor” à parte do homem como ser, autonomizando-o. Através desse simples processo, através dessa metamorfoseação do predicado no objeto, podem-se transformar criticamente todas as determinações essenciais e todas as manifestações da essência do homem em não essência e em alienações da essência. Dessa maneira, por exemplo, a Crítica crítica faz da crítica, enquanto predicado e atividade do homem, um sujeito à parte, que diz respeito apenas a si mesmo e é, por isso, Crítica crítica: um “Moloch” cujo culto é o autossacrifício, o suicídio do homem, ou seja, da capacidade humana de pensar.

“Objeto”, exclama a Quietude do conhecer, objeto, é esta a expressão correta, pois a amada só é importante para o amante – o feminino na condição de amante pouco importa – enquanto esse objeto externo de sua afecção anímica, enquanto objeto no qual ele quer ver seu próprio sentimento egoísta satisfeito.

Objeto! Pavoroso! Não há nada mais condenável, mais profano, mais massivo do que um objetoà bas [“abaixo”] o objeto! Como poderia a absoluta subjetividade, o actus purus, a crítica “pura” não ver no amor a sua bête noire [“besta negra”], seu satanás em carne e osso; o amor, que é o primeiro a ensinar de verdade ao homem a crer no mundo objetivo fora dele, que não apenas faz do homem um objeto, mas também do objeto um homem?

O amor, conforme prossegue a Quietude do conhecer, totalmente fora de si, nem sequer se contenta sem transformar o ser humano na categoria de “objeto” para o outro ser humano, mas inclusive o transforma em um objeto determinado e real, ou seja, neste objeto individual-mau (vide a “Fenomenologia” de Hegel acerca do Este e do Aquele, na qual se polemiza também contra o “Este” mau), externo, um objeto não apenas interior e esquecido no cérebro, mas também manifesto e aberto aos sentidos.

Amor

Não vive apenas encastelado no cérebro.

Não, a amada é objeto sensual e a Crítica crítica exige, pelo menos – quando tem de se rebaixar ao reconhecimento de um objeto –, um objeto insensato. Mas o amor é um materialista acrítico, acristão.

No fim das contas o amor chega a transformar o homem “neste objeto externo da afecção anímica” de outro homem, no objeto sobre o qual este outro homem satisfaz seu sentimento egoísta; sentimento egoísta porque procura sua própria essência no outro homem, e assim não deve ser. A Crítica crítica é tão livre de qualquer egoísmo, que para ela todo o caráter abrangente da essência humana se reduz a seu próprio eu.

O senhor Edgar naturalmente não nos diz através do que a amada se diferencia dos restantes “objetos externos da afecção anímica, nos quais os sentimentos egoístas dos homens se satisfazem”. O espirituoso, plurívoco e eloquente objeto do amor consegue dizer à quietude do conhecer apenas o esquema categórico: “esse objeto externo da afecção anímica”, assim como o cometa, por exemplo, não revela ao filósofo especulativo da natureza mais do que a “negatividade”. Ao fazer do outro homem o objeto externo de sua afecção anímica, o homem até lhe confere “importância”, conforme a própria Crítica crítica confessa, mas essa importância é, por assim dizer, uma importância objetiva, ao passo que a importância que a Crítica confere aos objetos não é nada mais do que a importância que ela confere a si mesma, e que por isso também não comprova sua competência no “ser exterior e mau”, mas no “nada” do objeto criticamente importante. Todavia, se a quietude do conhecer não possui nenhum objeto no homem real, ela possui, de outra parte, uma coisa na humanidade. O amor crítico “se guarda, sobretudo, de esquecer a coisa ao tratar da pessoa, coisa que não é outra senão a coisa da humanidade”. O amor acrítico não separa a humanidade do ser humano pessoal e individual.

O amor em si, na condição de paixão abstrata, a gente não sabe de onde ele vem e ele vai sabe-se lá para onde e é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior.

O amor é, aos olhos da Quietude do conhecer, uma paixão abstrata segundo a terminologia especulativa, que considera o concreto como abstrato e o abstrato como concreto.

No vale ela não nasceu

Donde ela veio, ninguém viu;

Mas seu rastro logo se perdeu,

Quando a moça se despediu.

O amor é, para a abstração, “a moça do estrangeiro”, sem passaporte dialético, e por isso é expulsa do país pela polícia crítica.

A paixão do amor é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior, porque ela não pode ser construída a priori, porque seu desenvolvimento é um desenvolvimento real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais. Porém o interesse principal da construção especulativa é o “de onde” e o “para onde”. O “de onde” é, por sinal, a “necessidade de um conceito, sua prova e dedução” (Hegel). O “para onde” é a determinação “através da qual cada um dos elos individuais do sistema circulatório especulativo, na condição de animado pelo método, é ao mesmo tempo o começo de um novo elo” (Hegel). Portanto, o amor apenas mereceria o “interesse” da crítica especulativa caso seu “de onde” e seu “para onde” fossem passíveis de ser construídos a priori.

O que a Crítica crítica quer combater com isso não é apenas o amor, mas tudo aquilo que é vivo, tudo que é imediato, toda experiência sensual, toda experiência real, inclusive, da qual não se sabe com antecipação o “de onde” e o “para onde”.

O senhor Edgar se estatuiu plenamente como “Quietude do conhecer”, mediante a dominação do amor, e agora pode comprovar sua competência junto a Proudhon, demonstrando a grande virtuosidade do conhecer, para a qual o “objeto” já deixou de ser “este objeto externo”, cometendo uma falta de amor ainda maior em relação à língua francesa.

Proudhon

Karl Marx

Não foi Proudhon, mas o “ponto de vista proudhoniano” que escreveu a obra intitulada Qu’est-ce que la propriété?, segundo os informes da Crítica crítica.

Eu principio minha exposição do ponto de vista proudhoniano com a caracterização de seu [a partir de seu ponto de vista, portanto] escrito “O que é a propriedade?”

Uma vez que apenas os escritos do “ponto de vista crítico” possuem caráter por si mesmos, a caracterização crítica tem de começar, obrigatoriamente, dando um caráter a esse escrito proudhoniano. O senhor Edgar dá um caráter a esse escrito ao meter os pés pelas mãos, traduzindo-o ele mesmo. E por certo lhe dá um mau caráter, uma vez que o transforma num objetoda Crítica”.

O escrito de Proudhon é submetido, pois, a um ataque duplo por parte do senhor Edgar, um deles implícito, em sua tradução caracterizadora, o outro explícito, em suas glosas críticas marginais. E nós haveremos de demonstrar que o senhor Edgar é ainda mais destrutivo quando traduz do que quando glosa criticamente.

Tradução caracterizadora número I

Eu não quero [ou seja, o Proudhon traduzido criticamente não quer] “oferecer nenhum sistema do novo, eu não quero nada mais do que a abolição do privilégio, a aniquilação da escravatura... Justiça, nada mais do que justiça, é isso o que eu penso.

O Proudhon caracterizado se limita a “querer” e “pensar”, porque a “boa vontade” e a “opinião” acientífica são atributos característicos da massa acrítica. O Proudhon caracterizado se apresenta tão cheio de humildade, conforme aliás convém à massa, e subordina aquilo que quer àquilo que não quer. Ele não ousa querer dar um sistema do novo; ele quer menos, ele inclusive não quer nada mais do que a abolição do privilégio etc. Além dessa subordinação crítica da vontade, que ele tem, à vontade, que ele não tem, suas primeiras palavras já se caracterizam por uma falta característica de lógica. O escritor que abre seu livro proclamando não querer oferecer um sistema do novo por certo dirá o que ele quer oferecer: seja algo velho provido de sistema, seja algo novo desprovido de sistema. Todavia o Proudhon caracterizado, que não quer oferecer um sistema do novo, quererá ele oferecer a abolição dos privilégios? Não. Ele a quer.

O Proudhon real diz: “Je ne fais pas de système; je demande la fin du privilège” etc.;[4 4] quer dizer, o Proudhon real esclarece que não segue nenhum objetivo abstratamente científico, mas que impõe, de imediato, exigências práticas à sociedade. E a exigência que ele impõe não é arbitrária. Ela é motivada e justificada por todo o desenvolvimento que ele oferece, ela é o resumo desse desenvolvimento, pois: “Justice, rien que justice; tel est le resumé de mon discours[4 5] O Proudhon caracterizado e seu “justiça, nada mais que justiça, é isso o que eu quero dizer” cai em perplexidade, tanto mais significativa quando diz “pensar” muitas outras coisas. Segundo os informes do senhor Edgar Bauer, ele “pensa”, por exemplo, que a filosofia não foi suficientemente prática, e “pensa” em refutar Charles Comte etc. O Proudhon crítico se pergunta: “Terá o ser humano de ser para sempre infeliz?”, quer dizer, ele pergunta se o infortúnio é a determinação moral do ser humano. O Proudhon real é um francês leviano e pergunta se o infortúnio é uma necessidade material, se ele é uma obrigação. (L’homme doit-il être éternellement malheureux?)[4 6]

O Proudhon massivo diz:

Et sans m’arrêter aux explications à toute fin des entrepreneurs de réformes, accusant de la détresse générale ceux-ci la lâcheté et l’impéritie du pouvoir, ceux-là les conspirateurs et les émeutes, d’autres l’ignorance et la corruption générale etc.[4 7]

Porque a expressão à toute fin é uma expressão ruim e típica da massa, que não pode ser encontrada nos massivos dicionários alemães, o Proudhon crítico naturalmente deixa de lado essa determinação mais acurada das “discussões”. Esse termo é emprestado à massiva jurisprudência francesa, e explications à toute fin significam discussões que cortam toda e qualquer objeção. O Proudhon crítico ofende os “reformistas”, um partido socialista francês,[4 8] enquanto o Proudhon da massa ofende os fabricantes de reformas. No Proudhon da massa há diferentes classes de entrepreneurs de réformes. Estes, ceux-ci, dizem isso, aqueles, ceux-là, aquilo, outros, d’autres, outra coisa. O Proudhon crítico, ao contrário, faz com que os mesmos reformistas “acusem ora isso, ora aquilo e depois ainda outra coisa”, o que, em todo caso, é um testemunho de sua inconstância. O Proudhon real, que se orienta na práxis massiva francesa, fala de “les conspirateurs et les émeutes”, quer dizer, primeiro dos conspiradores e só em seguida de seu modo de agir, os motins. O Proudhon crítico, que juntou em um só monte as diferentes classes de reformistas, ao contrário, elabora uma classificação para os rebeldes, e por isso diz: os conspiradores e sediciosos. O Proudhon da massa fala da ignorância e da “corrupção geral”. O Proudhon crítico transforma a ignorância em estupidez, a “corrupção” em “abjeção” e por fim – assumindo o papel de Crítico crítico – também torna à estupidez geral. Ele mesmo dá, sem perder tempo, um exemplo dessa estupidez geral, ao empregar générale no singular, em vez de fazê-lo no plural. Ele transforma: l’ignorance et la corruption générale em “a geral estupidez e abjeção”. Segundo a gramática francesa acrítica isso deveria ser escrito assim: l’ignorance et la corruption générales.

O Proudhon caracterizado, que pensa e fala de modo diferente do Proudhon da massa, também passou, necessariamente, por um processo de formação bem distinto. Ele “consultou os mestres da ciência, leu cem volumes da filosofia e da ciência do direito etc., e no final viu que nós jamais chegamos a compreender o sentido das palavras justiça, equidade, liberdade”. O Proudhon real acreditava reconhecer, desde o começo (je crus d’abord reconnaître),[4 9] o que o crítico apenas verificou “no final”. A transformação crítica do d’abord em enfin[4 10] é necessária, porque a massa não pode reconhecer nada “de antemão”. O Proudhon da massa conta expressamente como esse resultado surpreendente de seus estudos o abalou, e como não quis lhe dar confiança. Ele decidiu, por causa disso, fazer uma “contraprova” e se perguntou: “Será possível que a humanidade se enganou de modo geral e por tanto tempo a respeito dos princípios da aplicação da moral?” etc. Ele fez a correção de suas observações depender da solução dessas perguntas. E descobriu que na moral, bem como em todos os outros ramos do saber, os equívocos “são degraus da ciência”. O Proudhon crítico, ao contrário, confia desde logo na primeira impressão que seus estudos da economia política, das ciências jurídicas e semelhantes deixaram sobre ele. Claro, é natural; pois a massa não pode jamais proceder de maneira minuciosa, ela tem de elevar os primeiros resultados de seus estudos a verdades indiscutíveis. Ela “chega a suas conclusões de antemão, antes mesmo de se medir com conclusões antagônicas”, por isso é que “fica claro”, posteriormente, “que ela nem sequer chegou ao começo quando já acredita ter alcançado o fim”.

E justamente devido a isso o Proudhon crítico segue raciocinando do modo mais infundado e incoerente:

Nosso conhecimento das leis morais não é completo de antemão; assim, ele pode satisfazer por algum tempo o progresso social; mas a longo prazo nos levará por um caminho falso.

O Proudhon crítico não dá os motivos pelos quais um conhecimento incompleto das leis morais pode satisfazer o progresso social, por um dia que seja. O Proudhon real, depois de ter se confrontado com a pergunta acerca do se e do por quê a humanidade pôde se equivocar por tanto tempo e de modo tão geral, e depois de ter encontrado a solução de que todos os equívocos são degraus da ciência, de que nossos juízos incompletos encerram uma soma de verdades suficientes para um certo número de induções e para um determinado círculo da vida prática, acima de cujo número e além de cujo círculo conduzem teoricamente ao absurdo e praticamente à decadência, já pode afirmar que até mesmo um conhecimento incompleto das leis morais pode satisfazer por algum tempo ao progresso social. O Proudhon crítico:

Todavia, caso um novo conhecimento se torne necessário, desata-se uma luta encarniçada entre os velhos preconceitos e a nova ideia.

Mas como pode desatar-se uma luta contra um oponente que ainda não existe? Embora o Proudhon crítico tenha dito que uma nova ideia tornou-se necessária, ele não disse que ela já se tornou real. O Proudhon massivo:

Assim que o conhecimento superior se torna indispensável, ele não falta jamais [de modo que está à disposição]. Aí então começa a luta.

O Proudhon crítico afirma que “a determinação do homem é se instruir passo a passo”, como se o homem não tivesse uma determinação bem diferente, qual seja, a de ser homem, e como se a autoinstrução “passo a passo” necessariamente o conduzisse um passo adiante. Eu posso andar passo a passo e acabar chegando exatamente ao ponto do qual parti. O Proudhon acrítico[4 11] não fala da “determinação”, mas da condição (condition) para o homem se instruir, não passo a passo (pas à pas), conforme estabelece a Crítica, mas sim gradualmente (par degrés). O Proudhon crítico diz a si mesmo:

Entre os princípios sobre os quais repousa a sociedade há um que ela não compreende, que sua ignorância corrompe e que é a causa de todos os males. E mesmo assim se honra esse princípio e se o quer, caso contrário ele careceria de influência. Esse princípio, pois, que é verdadeiro segundo sua essência, mas falso em nossa maneira de concebê-lo... qual é ele?

Na primeira frase o Proudhon crítico diz que o princípio é corrompido, mal entendido pela sociedade, o que significa que é, em si mesmo, correto. De modo redundante ele confessa, na segunda frase, que ele é verdadeiro segundo sua essência, e nem por isso deixa de repreender a sociedade por querer e honrar “esse princípio”. O Proudhon da massa, ao contrário, não censura o fato de esse princípio ser desejado e honrado, mas o fato de esse princípio, assim como a nossa ignorância o falsificou, ser desejado e honrado. (“Ce principe... tel que notre ignorance l’a fait, est honoré.”)[4 12] O Proudhon crítico acha que a essência do princípio em sua feição inverdadeira é verdadeiro. O Proudhon da massa acha que a essência do princípio falsificado está em nossa concepção falsa, mas que o princípio é verdadeiro em seu objeto (objet), exatamente do mesmo modo que a essência da alquimia e da astrologia está em nossa fantasia, ao passo que seu objeto – os movimentos dos astros e as características químicas dos corpos – é verdadeiro. O Proudhon crítico prossegue em seu monólogo:

O objeto de nossa investigação é a lei, a determinação do princípio social. Agora os políticos, quer dizer, os homens da ciência social que se acham embrulhados em (...) completa ignorância: mas como há uma realidade fundamentando cada equívoco, poder-se-á achar a verdade em seus livros, que eles trouxeram ao mundo sem mesmo saber.

O Proudhon crítico raciocina do modo mais aventureiro que se possa imaginar. Do fato de os políticos serem ignorantes e pouco claros, ele prossegue aventando, de modo totalmente arbitrário, que há uma realidade fundamentando cada equívoco, coisa que não pode ser posta em dúvida, tanto mais pelo fato de que há uma realidade fundamentando o equívoco na pessoa do equivocado. Daí, do fato de uma realidade fundamentar cada equívoco, ele segue concluindo que nos livros dos políticos pode ser encontrada a verdade. E por fim ele faz com que essa verdade seja levada ao mundo pelos políticos. Ora, se eles a tivessem levado ao mundo, a gente não precisaria procurá-la em seus livros! O Proudhon massivo escreveu:

Os políticos não se entendem uns aos outros [ne s’entendent pas]; logo, seu equívoco é um equívoco subjetivo, fundamentado neles mesmos [donc c’est en eux que’est l’erreur].

Sua mútua incompreensão demonstra sua unilateralidade. Eles confundem “sua opinião privada com a razão saudável”, e “uma vez que” – segundo a dedução anterior – “cada equívoco tem por objeto uma verdadeira realidade, tem de ser possível de se achar a verdade em seus livros, que eles puseram ali”, quer dizer em seus livros, “de maneira inconsciente, mas não levaram ao mundo (Dans leurs livres doit se trouver la vérité, qu’à leur insu ils y auront mise.)”

O Proudhon crítico se pergunta: “O que é a justiça, qual é sua essência, seu caráter, seu significado?”, como se ela devesse ter um significado diferenciado e à parte de sua essência e de seu caráter. O Proudhon acrítico se pergunta: Qual é seu princípio, seu caráter e sua fórmula (formule)? A fórmula é o princípio na condição de princípio do desenvolvimento científico. Na massiva língua francesa formule e signification são essencialmente diferentes. Na língua francesa crítica eles acabam se encontrando, significando a mesma coisa.

Depois dessas elucidações, por certo bem pouco objetivas, o Proudhon crítico junta todas suas forças e proclama: “Procuremos aproximar-nos um pouco de nosso objeto”. O Proudhon acrítico, que já alcançou seu objeto há tempo, procura, ao contrário, chegar a uma determinação mais aguda e (mais) positiva de seu objeto (d’arriver à quelque chose de plus précis et de plus positiv). “A lei” é, para o Proudhon crítico, uma “determinação do justo”, já para o Proudhon acrítico ela é uma “declaração” (déclaration) do justo. O Proudhon acrítico combate a concepção de que o direito seja obra da lei. Contudo uma “determinação da lei” pode significar tanto que a lei é determinada quanto que é ela quem determina; já vimos, inclusive, que o próprio Proudhon crítico chegou a falar, acima, da determinação do princípio social conforme o segundo sentido. Mas estabelecer distinções tão sutis por certo é apenas uma inconveniência do Proudhon massivo.

Depois de constatar essas diferenças entre o Proudhon crítico e caracterizado e o Proudhon acrítico e real, não é de admirar que o Proudhon número I procure provar coisas bem diferentes do Proudhon número II.

O Proudhon crítico “procura provar através das experiências da história”, que, “quando a ideia, que nós fazemos do justo e do legítimo é falsa, claramente” (apesar dessa clareza ele procura dar provas) “têm de ser ruins todas suas aplicações na lei e defeituosas todas as nossas instituições”.

O Proudhon massivo está bem longe de querer provar o que já é claro. Ele prefere dizer, muito antes:

Caso a ideia que nós fazemos do justo e do legítimo fosse mal determinada, caso ela fosse incompleta ou até mesmo falsa, passa a ser evidente que todas as nossas aplicações legislativas são ruins etc.

O que o Proudhon acrítico quer provar, pois?

Essa hipótese [ele prossegue] da inversão da justiça em nossa concepção, e consequentemente em nossos atos, seria um fato provado se as opiniões das pessoas em relação ao conceito de justiça e em relação à sua aplicação não tivessem sido sempre constantes, se elas tivessem passado por modificações em épocas diferentes, em uma palavra, se o progresso tivesse acontecido nas ideias.

E justamente essa inconstância, essa mudança, esse progresso “é o que a história demonstra através dos testemunhos mais categóricos”. O Proudhon acrítico cita esses testemunhos categóricos da história. Seu duplo, o Proudhon crítico, do mesmo modo que demonstra uma tese completamente distinta como se fosse provada pelas experiências da história, também apresenta de outra maneira essas mesmas experiências.

No Proudhon real foram “os sábios” (les sages) que previram a queda do Império Romano, no Proudhon crítico foram “os filósofos”. O Proudhon crítico naturalmente deve achar que os únicos homens sábios do mundo são os filósofos... Segundo o Proudhon real os direitos romanos “estavam consagrados através de uma justiça – ou através de uma prática jurídica – milenar” (des droits consacrés par une justice dix fois séculaire); segundo o Proudhon crítico, em Roma houve “direitos consagrados através de uma equidade milenar”.

Segundo o mesmo Proudhon número I, em Roma se raciocinava conforme segue:

Roma... triunfou através de sua política e de seus deuses, qualquer reforma do culto ou do espírito público seria uma tolice, um ultraje [no Proudhon crítico sacrilège não significa, assim como acontece na massiva língua francesa, um ultraje ao sagrado ou uma profanação do sagrado, mas apenas e tão somente um ultraje]; caso quisesse libertar os povos, ela teria de renunciar a seus direitos.

“Desse modo Roma tinha a seu favor fato e direito”, acrescenta o Proudhon número I. No Proudhon acrítico raciocina-se de um modo bem mais fundado em Roma. Detalha-se o fato:

Os escravos são a fonte mais profícua de sua riqueza; a libertação dos povos seria, portanto, a ruína de suas finanças.

E no que se refere ao direito o Proudhon massivo acrescenta: “As pretensões de Roma eram justificadas através do direito dos povos (droit des gens)”. Esse modo de provar o direito da subjugação está de acordo absoluto com a concepção romana de direito. Veja-se o que dizem as Pandectas[4 13] reais: “jure gentium servitus invasit”[4 14] Segundo o Proudhon crítico “o culto aos ídolos, a escravidão, a moleza” geraram “os fundamentos das instituições romanas”, das instituições em geral. O Proudhon real diz:

“Na religião, o fundamento das instituições foi o culto aos ídolos, no Estado foi a escravidão, na vida privada foi o epicurismo” (épicurisme não tem, na profana língua francesa, o mesmo significado de mollesse: moleza).

Em meio a essa situação romana “apareceu”, segundo o Proudhon místico, “a palavra de Deus”; no Proudhon real e racional apareceu um “homem que se dizia a palavra de Deus”. No Proudhon real esse homem chama os padres de víboras (vipères), no Proudhon crítico ele fala de um modo bem mais galante e os chama de “cobras”. Lá ele fala, segundo o modo romano, de “advogados”, aqui, de um modo bem alemão, em “jurisconsultos”. O Proudhon crítico, depois de ter caracterizado o espírito da Revolução Francesa como um espírito da contradição, complementa dizendo:

Isso basta para dar-se conta de que o novo, que veio a ocupar o lugar do velho, não tinha nada de metódico e reflexivo em si mesmo.

Ora, ele tinha de invocar as categorias preferidas da Crítica crítica, o “velho” e o “novo”. Ele não podia deixar de postular o absurdo de que o “novo” tinha de ter algo metódico e reflexivo em si, assim como alguém carrega, por exemplo, uma impureza consigo. O Proudhon real diz:

Isso basta para provar que a ordem das coisas, que veio a ocupar o lugar das velhas, foi totalmente desprovida de método e reflexão.

O Proudhon crítico, arrebatado pela lembrança da Revolução Francesa, revoluciona a língua francesa de modo tão escabroso que traduz un fait physique[4 15] por “um fato da física” e un fait intellectuel por “um fato do bom-senso”. Através dessa revolução da língua francesa, o Proudhon crítico alcança assentar a física na condição de dona de todos os fatos que sucedem na natureza. E se por um lado ele inflaciona a ciência natural, elevando-a tanto, por outro lado ele a rebaixa na mesma proporção, ao negar-lhe o bom-senso, diferenciando um fato do bom-senso de um fato da física. Do mesmo modo, ele torna dispensáveis todos os estudos psicológicos e lógicos que vêm em seguida, ao elevar o fato intelectual imediatamente à categoria de fato do bom-senso. Uma vez que o Proudhon crítico, o Proudhon número I, nem sequer tem ideia do que o Proudhon real, o Proudhon número II, quer provar com sua dedução histórica, naturalmente também deixa de existir para ele o verdadeiro conteúdo dessa dedução, ou seja, a prova das mudanças operadas nas concepções de direito e a prova da contínua realização da justiça através da negação do direito histórico e positivo.

La société fut sauvée par la négation de ses principes... et la violation des droits les plus sacrés.[4 16]

Desse modo o Proudhon real prova como, através da negação do direito romano, foi levada a cabo a ampliação do direito na ideia cristã, como, através da negação do direito da conquista, foi aberto o caminho ao direito das comunidades, como a negação geral do direito feudalista, encaminhada pela Revolução Francesa, levou ao Estado de direito mais amplo de nossos dias.

A Crítica crítica não haveria de conceder a Proudhon, de nenhuma maneira, a fama de ter descoberto a lei da realização de um princípio através de sua negação. Sob essa formulação consciente, esse pensamento foi uma verdadeira revelação para os franceses.

Glosa marginal crítica número I

Assim como a primeira crítica de toda ciência está necessariamente implícita nas premissas da ciência por ela combatida, assim também a obra de Proudhon “Qu’est-ce que la propriété?” é a crítica da economia política a partir do ponto de vista da economia política. – Não necessitamos abordar de maneira mais precisa a parte jurídica do livro, que critica o direito a partir da concepção de direito, uma vez que a crítica da economia política é o que fundamentalmente interessa. – A obra proudhoniana é, portanto, cientificamente superada pela crítica da economia política, inclusive pela economia política conforme aparece na versão proudhoniana. Esse trabalho só passou a ser possível graças ao próprio Proudhon, do mesmo modo que a crítica de Proudhon tem como premissas a crítica do sistema mercantil[4 17] através dos fisiocratas,[4 18] a dos fisiocratas através de Adam Smith, a de Adam Smith através de Ricardo e dos trabalhos de Fourier e Saint-Simon.

Todos os desenvolvimentos da economia política têm a propriedade privada como premissa. Essa premissa fundamental constitui para ela um fato irrefutável, que ela não submete a nenhuma análise posterior e que, ademais, conforme Say confessa de modo ingênuo, apenas se põe a falar “accidentellement”. Proudhon, de sua parte, submete a base da economia política, a propriedade privada, a uma análise crítica e, seja dito, à primeira análise decisiva de verdade, implacável e ao mesmo tempo científica. Esse é, aliás, o grande progresso científico feito por Proudhon, um progresso que revolucionou a economia política e tornou possível uma verdadeira ciência da economia política. O escrito de Proudhon “Qu’est-ce que la proprieté?” tem o mesmo significado para a economia política moderna que o escrito de Sieyès “Qu’est-ce que le tiers État?”[4 19] tem para a política moderna.

Se Proudhon não concebe as outras modalidades da propriedade privada, por exemplo o salário, o comércio, o valor, o preço, o dinheiro etc. conforme aconteceu, por exemplo, nos “Anais franco-alemães” (vide o estudo de F. Engels intitulado “Esboços para uma crítica da economia política”),[4 20] vendo-as como modalidades da mesma propriedade privada, mas sim combate os economistas partindo dessas premissas político-econômicas, isso apenas corresponde por inteiro ao seu ponto de vista assinalado acima e justificado historicamente.

A economia política que aceita as relações da propriedade privada como se fossem relações humanas e racionais move-se em uma constante contradição contra sua premissa fundamental, a propriedade privada, numa contradição análoga à do teólogo que interpreta constantemente as noções religiosas a partir de um ponto de vista humano e justamente através disso atenta sem cessar contra sua premissa fundamental, o caráter sobre-humano da religião. Assim, na economia política o salário se apresenta no princípio como a parte proporcional que corresponde ao trabalho gasto no produto. O salário e o lucro do capital mantêm relações mútuas de amizade, aparentemente humanas, condicionado-se mutuamente. Mais tarde, porém, fica claro que a relação entre ambos é a mais hostil que possa existir, que se acham em relação inversa um com o outro. O valor parece ser determinado racionalmente no princípio, através dos custos de produção de uma coisa e através de sua utilidade social. Mais tarde, todavia, fica claro que o valor é uma determinação puramente casual, que não precisa guardar a menor relação nem com os custos da produção nem com a utilidade social da coisa produzida. O tamanho do salário é determinado no início através do acordo livre entre o trabalhador livre e o capitalista livre. Mais tarde fica claro que o trabalhador é obrigado a deixar que determinem o salário como quiserem, assim como o capitalista é obrigado a estipulá-lo em um patamar tão baixo quanto possível. O lugar da liberdade das partes contratantes é ocupado pela coação. E o mesmo ocorre com o comércio e com todas as outras relações da economia política. Os economistas políticos por vezes se dão conta, eles mesmos, dessas contradições, e o desenvolvimento delas constitui o conteúdo fundamental de suas lutas recíprocas. Mas, quando tomam consciência dessas contradições, eles próprios atacam a propriedade privadasob uma forma parcial qualquer, declarando-a falseadora do salário racional em si – ou seja, conforme a sua noção de salário racional em si, de valor racional em si e de comércio racional em si. Dessa maneira, Adam Smith polemiza com os capitalistas de quando em vez, Destutt de Tracy com os banqueiros, Simonde Sismondi contra o sistema fabril, Ricardo contra a propriedade do solo e quase todos os economistas políticos modernos contra os capitalistas não industriais, para os quais a propriedade se manifesta como simples consumidora. Os economistas fazem valer, portanto, ora – ainda que em momentos de exceção, nomeadamente quando atacam um abuso específico qualquer – a aparência do humano nas relações econômicas, ora – e essa é a regra geral – concebem essas relações justamente no aspecto em que se diferenciam aberta e declaradamente do humano, ou seja, em seu sentido estritamente econômico. Nessa contradição eles cambaleiam por aí, inconscientes.

Proudhon pôs, de uma vez por todas, um fim a essa inconsciência. Ele levou a sério a aparência humana das relações econômico-políticas e confrontou-as abruptamente com sua realidade desumana. Obrigou-as a ser na realidade o que eram nas concepções que tinham a respeito de si mesmas ou, muito antes, obrigou-as a deixar de lado as concepções que tinham a respeito de si e a confessarem sua desumanidade real.[4 21] Consequentemente, ele não atacou este ou aquele modo da propriedade privada, conforme o fizeram os outros economistas políticos – de modo parcial –, mas simplesmente tomou a propriedade privada em seu modo universal, apresentando-a na condição de falsificadora das relações econômicas. Proudhon desempenhou tudo aquilo que a crítica da economia política podia desempenhar do ponto de vista econômico-político.

O senhor Edgar, que quer caracterizar o ponto de vista do escrito “Qu’est-ce que la propriété?”, naturalmente não diz uma palavra sequer nem a respeito da economia política nem mesmo a respeito do caráter diferenciado daquele escrito, que reside justamente no fato de ter transformado a pergunta sobre a essência da propriedade privada na pergunta capital da economia política e da jurisprudência. Para a Crítica crítica isso tudo é natural e inclusive compreensível em si mesmo. Proudhon não fez nada de novo com sua negação da propriedade privada. Apenas divulgou um segredo silenciado pela Crítica crítica.

Proudhon [prossegue o senhor Edgar, imediatamente após sua tradução caracterizadora] encontra, portanto, algo absoluto, um fundamento eterno na história, um Deus que guia a humanidade, a justiça.

O texto francês de Proudhon, publicado em 1840, não alcança o ponto de vista do desenvolvimento alemão do ano de 1844. O ponto de vista de Proudhon é compartilhado por um sem-número de escritores franceses diametralmente opostos a ele e, portanto, confere à Crítica crítica a vantagem de haver caracterizado os pontos de vista mais contrários com o mesmo e único rasgo da pena. Basta, ademais, implementar de modo consequente a lei estabelecida pelo próprio Proudhon, qual seja, a da realização da justiça através de sua negação, para suplantar também esse ente absoluto da história. Se Proudhon não prossegue até alcançar essa consequência é apenas porque foi contemplado com o azar de ter nascido francês e não alemão.[4 22] Para o senhor Edgar, Proudhon tornou-se um objeto teológico através do absoluto na história, a crença na justiça; e a Crítica crítica, que é ex professo[4 23] a crítica da teologia, agora pode apoderar-se dele para descarregar suas considerações acerca das “noções religiosas”.

A característica de qualquer noção religiosa é que estabelece o dogma de um estado de coisas no qual, ao fim, uma antítese resta na condição de vitoriosa e única verdadeira.

Haveremos de ver como a religiosa Crítica crítica formula o dogma de um estado de coisas no qual, ao fim, uma antítese, “a crítica”, triunfa sobre a outra, sobre “a massa”, na condição de verdade única. Mas Proudhon cometeu uma injustiça tanto maior ao vislumbrar na justiça da massa um ente absoluto, um Deus da história, uma vez que a Crítica justa reservara expressamente para si mesma o papel desse absoluto, desse Deus da história.

Glosa marginal crítica número II

Proudhon chega unilateralmente a suas considerações através do fato da miséria, da pobreza, na qual vê uma contradição à igualdade e à justiça; ela lhe empresta suas armas. E assim ele considera esse fato como absoluto e legítimo, e o fato da propriedade como ilegítimo.

A quietude do conhecer nos diz que Proudhon vê no fato da miséria uma contradição à justiça, e garante no mesmo instante que esse fato se torna, para o autor francês, um fato absoluto e legítimo.

A economia política anterior partia da riqueza supostamente engendrada para as nações pelo movimento da propriedade privada, para chegar a suas considerações apologéticas sobre o mesmo regime da propriedade privada. Proudhon parte do lado inverso, encoberto sofisticamente pela economia política, ou seja, da pobreza gerada através do movimento da propriedade privada, para chegar a suas considerações que negam a referida propriedade. A primeira crítica verdadeira da propriedade privada naturalmente parte do fato de que sua essência contraditória se manifesta sob a forma mais tangível, mais clamorosa, que mais, e de modo mais imediato, revolta os sentimentos humanos – do fato da pobreza, da miséria.

A crítica, ao contrário, compreende os dois fatos, o da pobreza e o da propriedade, em um só, reconhece a ligação interna dos dois, transforma-os num todo, a ponto de assim fazer perguntas a respeito das premissas de sua existência.

A Crítica, que até agora não captou nada a respeito dos fatos da propriedade e da pobreza, faz valer, “ao contrário”, o ato levado a cabo por ela em sua imaginação, em detrimento do ato real e verdadeiro de Proudhon. Ela compreende os dois fatos em um único e, depois de fazer dos dois um único, passa a reconhecer a ligação interna dos dois. A Crítica não pode negar que também Proudhon reconheceu uma ligação interna entre os fatos da pobreza e da propriedade, uma vez que ele, justamente em virtude dessa ligação, suprime a propriedade para acabar com a miséria. Proudhon chegou a fazer mais, até. Ele provou, e no detalhe, como o movimento do capital gera a miséria. A Crítica crítica, ao contrário, não se deixa levar por pequenezas desse tipo. Ela reconhece que pobreza e propriedade privada são antagonismos: uma noção bastante divulgada, aliás. Ela faz da pobreza e da riqueza um todo único, ao qual “ela interroga enquanto tal sobre as premissas de sua existência”; uma pergunta tanto mais supérflua pelo fato de ela ter acabado de fazer “o todo enquanto tal”, ou seja, transformou o ato de fazê-lo na premissa de sua própria existência.

Ao interrogar “ao todo enquanto tal” pelas premissas de sua existência, a Crítica crítica procura, portanto, de um modo autenticamente teológico, as premissas de sua existência fora do todo. A especulação crítica movimenta-se fora do objeto do qual diz estar tratando. E como toda a antítese não é mais do que o movimento de seus dois extremos, e como é precisamente na natureza desses dois extremos que reside a premissa da existência do todo, ela se escusa do estudo desse movimento real que forma o todo para poder declarar que a Crítica crítica, enquanto Quietude do conhecer, encontra-se solenemente elevada acima dos dois extremos da antítese e que sua atividade, que fez “o todo enquanto tal”, passa a ser também a única capaz de suprassumir o abstrato por ela concebido.

Proletariado e riqueza são antíteses. E nessa condição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedade privada. Do que aqui se trata é da posição determinada que um e outra ocupam na antítese. Não basta esclarecê-los como os dois lados – ou extremos – de um todo.

A propriedade privada na condição de propriedade privada, enquanto riqueza, é obrigada a manter sua própria existência e com ela a existência de sua antítese, o proletariado. Esse é o lado positivo da antítese, a propriedade privada que se satisfaz a si mesma.

O proletariado na condição de proletariado, de outra parte, é obrigado a suprassumir a si mesmo e com isso à sua antítese condicionante, aquela que o transforma em proletariado: a propriedade privada. Esse é o lado negativo da antítese, sua inquietude em si, a propriedade privada que dissolve e se dissolve.

A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. Ela é, para fazer uso de uma expressão de Hegel, no interior da abjeção, a revolta contra essa abjeção, uma revolta que se vê impulsionada necessariamente pela contradição entre sua natureza humana e sua situação de vida, que é a negação franca e aberta, resoluta e ampla dessa mesma natureza.

Dentro dessa antítese o proprietário privado é, portanto, o partido conservador, e o proletário o partido destruidor. Daquele parte a ação que visa a manter a antítese, desse a ação de seu aniquilamento.

Em seu movimento econômico-político, a propriedade privada se impulsiona a si mesma, em todo caso, à sua própria dissolução; contudo, apenas através de um desenvolvimento independente dela, inconsciente, contrário a sua vontade, condicionado pela própria natureza da coisa: apenas enquanto engendra o proletariado enquanto proletariado, enquanto engendra a miséria consciente de sua miséria espiritual e física, enquanto engendra a desumanização consciente – e portanto suprassunsora – de sua própria desumanização.[4 24] O proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia sobre si mesma ao engendrar o proletariado, do mesmo modo que executa a sentença que o trabalho assalariado pronuncia sobre si mesmo ao engendrar a riqueza alheia e a miséria própria. Se o proletariado vence, nem por isso se converte, de modo nenhum, no lado absoluto da sociedade, pois ele vence de fato apenas quando suprassume a si mesmo e à sua antítese. Aí sim tanto o proletariado quanto sua antítese condicionante, a propriedade privada, terão desaparecido.

Se os escritores socialistas atribuem ao proletariado esse papel histórico-mundial, isso não acontece, de nenhuma maneira, conforme a Crítica crítica pretexta dizer que acontece, ou seja, pelo fato de eles terem os proletários na condição de deuses. Muito pelo contrário. Porque a abstração de toda humanidade, até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já é completa entre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do proletariado estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúria absolutamente imperiosa – a expressão prática da necessidade –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas próprias condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias condições de vida sem suprassumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola do trabalho, que é dura mas forja resistência. Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual. E nem sequer é necessário deter-se aqui a expor como grande parte do proletariado inglês e francês já está consciente de sua missão histórica e trabalha com constância no sentido de elevar essa consciência à clareza completa.

“A Crítica crítica” não pode reconhecer esses fatos de modo algum, e tanto mais pelo fato de ter se proclamado a si mesma como o elemento criador exclusivo da história. É a ela que pertencem as antíteses históricas, a ela que pertencem as atividades de superá-las. E por isso ela emite, através de Edgar, a sua encarnação, o seguinte anúncio:

Cultura e incultura, posses e carência de posses, essas antíteses têm de, a menos que sejam profanadas, ficar sob os critérios e cuidados da crítica, total e completamente.

A posse e a carência dela alcançaram a bênção metafísica de se tornarem antíteses criticamente especulativas. E por isso apenas a mão da Crítica crítica pode tocá-las sem cometer um sacrilégio. Capitalistas e trabalhadores não perderam nada no debate, nem devem se imiscuir em suas mútuas relações. O senhor Edgar, bem longe de sequer imaginar que alguém possa tocar sua concepção crítica da antítese, de que esse santuário possa ser profanado, permite que seu adversário oponha uma objeção, que a rigor apenas ele poderia fazer a si mesmo.

Será então possível [pergunta o adversário imaginário da Crítica crítica] servir-se de outros conceitos além dos já existentes da liberdade, da igualdade e assim por diante? Eu respondo [e é importante que se preste atenção no que o senhor Edgar responde] que as línguas grega e romana desapareceram quando se esgotou o círculo de pensamentos ao qual elas serviam de veículos de expressão.

Agora está claro, pois, por que a Crítica crítica é incapaz de expressar um só pensamento em língua alemã. A língua própria de seus pensamentos ainda não surgiu, por mais que o senhor Reichardt, através do manuseio crítico das palavras estrangeiras, o senhor Faucher através do manuseio da língua inglesa e o senhor Edgar através do manuseio da língua francesa tenham tentado preparar o advento da novalíngua crítica.

Tradução caracterizadora número II

O Proudhon crítico:

Os agricultores partilharam a terra entre si; a igualdade apenas santificou a posse; e, nessa oportunidade, santificou a propriedade.

O Proudhon crítico faz com que a divisão da terra origine, de imediato, a propriedade do solo. Ele realiza o trânsito da posse à propriedade com a expressão “e, nessa oportunidade”. O Proudhon real:

A agricultura serviu de base à posse do solo... não foi suficiente garantir o fruto de seu trabalho ao trabalhador, se não se assegurava a ele, ao mesmo tempo, o instrumento da produção. A fim de proteger o mais fraco do abuso do mais forte... sentiu-se a necessidade de traçar linhas divisórias constantes entre os possuidores de terra.

Portanto, nessa oportunidade a igualdade santificou primeiramente a posse.

Ano a ano, e com o aumento da população, viu-se que a ganância e a cobiça dos colonos cresciam; acreditou-se que era necessário pôr fim à ambição mediante barreiras novas e intransponíveis. Assim o chão transformou-se em propriedade pela demanda da igualdade... a divisão jamais foi, sem dúvida, geograficamente igualitária... mas o princípio nem por isso deixou de ser o mesmo; a igualdade havia santificado a posse, a igualdade santificou a propriedade.

No Proudhon crítico,

Os velhos fundadores da propriedade, levados pela preocupação de sua necessidade, perderam de vista que o direito da propriedade correspondia também ao direito de alienar a terra, de vendê-la, de dá-la de presente, comprá-la e perdê-la, o que destruía a igualdade do princípio.

No Proudhon real os fundadores da propriedade não perderam de vista o caminho evolutivo da propriedade por estarem preocupados com a necessidade da propriedade. Na verdade eles não foram capazes de prevê-lo, mas, mesmo que tivessem sido capazes de prevê-lo, mesmo assim a necessidade presente acabaria triunfante ao final. O Proudhon real é, além disso, massivo por demais e pouco crítico para contrapor ao “direito de propriedade” o direito de alienar, vender etc., quer dizer, para contrapor ao gênero suas próprias espécies. Ele contrapõe o “direito de conservar sua parte hereditária” ao “direito de aliená-la etc.”, o que representa, sim, uma contraposição e um progresso reais.

Glosa marginal crítica número III

Pois bem, em que Proudhon baseia sua prova da impossibilidade da propriedade? Isso supera qualquer possibilidade de crença: no mesmo princípio da igualdade!

Para despertar o crença do senhor Edgar bastaria uma reflexão bem curta. Por certo o senhor Edgar não desconhece que o senhor Bruno Bauer fez da “autoconsciência infinita” a base de todos os seus argumentos e concebe este princípio como o princípio criador de tudo, inclusive dos evangelhos, que com sua infinita inconsciência parecem achar-se em flagrante contradição com a autoconsciência infinita. Da mesma forma, Proudhon concebe a igualdade como o princípio criador da propriedade privada, que contradiz flagrantemente a mesma liberdade. Se o senhor Edgar se detivesse um momento que fosse em comparar a igualdade francesa com a autoconsciência alemã, haveria de se dar conta de que o segundo princípio expressa em alemão, quer dizer, no plano do pensamento abstrato, aquilo que o primeiro expressa em francês, quer dizer, na língua da política e da visão pensante. A autoconsciência é a igualdade do homem consigo mesmo no pensamento puro. A igualdade é a consciência do homem a respeito de si mesmo no elemento da práxis, quer dizer, portanto, a consciência do homem a respeito do outro homem como seu igual e o comportamento do homem em relação ao outro homem como seu igual. A igualdade é a expressão francesa para a unidade essencial humana, para a consciência de espécie e para o comportamento de espécie próprio do homem, para a identidade prática do homem com o homem, quer dizer, para a relação social ou humana do homem com o homem. Portanto, assim como a crítica destrutiva na Alemanha, antes de avançar, com Feuerbach, até a visão do homem real, tratava de dissolver tudo o que era determinado e existente através do princípio da autoconsciência, assim também a crítica destrutiva, na França, tratava de dissolvê-lo através do princípio da igualdade.

Proudhon brada contra a filosofia, coisa que, em e para si, não podemos levar a mal. Mas por que ele brada contra ela? A filosofia, conforme ele pensa, não teria sido prática o suficiente até os dias de hoje; ela teria se assentado sob o pedestal inalcançável da especulação e dali os homens teriam lhe parecido demasiado pequenos. Eu penso que a filosofia é excessivamente prática, quer dizer, até hoje ela não foi mais do que a expressão abstrata da situação existente, e sempre se viu aprisionada em suas premissas, concebidas por ela como absolutas.

A opinião de que a filosofia é a expressão abstrata da situação existente não pertence, originalmente, ao senhor Edgar, mas a Feuerbach, o primeiro a caracterizar a filosofia como um empirismo especulativo e místico, provando-o inclusive. Enquanto isso o senhor Edgar aprendeu a dar a essa opinião um revestimento original e crítico. Ou seja, se Feuerbach conclui que a filosofia tem de descer do céu da especulação para as profundezas da miséria humana, o senhor Edgar nos ensina, ao contrário, que a filosofia é excessivamente prática. Na verdade, no entanto, mais parece que a filosofia, justamente porque é apenas a expressão transcendente e abstrata da situação existente, e devido a sua transcendência e abstração, devido a sua diferença imaginária em relação ao mundo, tinha de, por força, considerar aos homens reais como algo que se achava demasiado abaixo dela; que, por outro lado, ao não distinguir-se realmente do mundo, não pôde emitir nenhum juízo real a respeito dele, não pôde fazer valer nenhuma força diferenciativa real contra ele, razão pela qual não pôde tampouco intervir praticamente, tendo que se satisfazer, no máximo, com uma práxis in abstracto. A filosofia era excessivamente prática apenas no sentido de que pairava excessivamente acima da prática. Ao reduzir a humanidade a uma massa carente de espírito, a Crítica crítica nos oferece o testemunho mais categórico da infinita pequenez em que os homens reais apareciam aos olhos da especulação. E a velha especulação coincide com ela nesse ponto de vista. Leia-se, por exemplo, o seguinte trecho da “Filosofia do direito” de Hegel:

Do ponto de vista das necessidades, o que se chama homem é o concreto da representação; é, pois, aqui e somente aqui que se fala do homem nesse sentido.

Quando a especulação fala do homem em outro sentido, não se refere ao concreto, mas ao abstrato, à ideia, ao espírito etc. Da maneira como a filosofia expressa a situação presente, nos oferecem exemplos impressionantes tanto o senhor Faucher, no que diz respeito à situação presente da Inglaterra, quanto o senhor Edgar, no que diz respeito à situação presente da língua francesa.

De modo que também Proudhon é prático ao encontrar o conceito de igualdade na base das provas em favor da propriedade para em seguida partir do mesmo conceito e se manifestar contra a propriedade.

Proudhon faz, aqui, o mesmo que fazem os críticos alemães ao partir da representação do homem, que eles transformam em base para a existência de Deus, para em seguida se manifestar justamente contra a existência de Deus.

Se as consequências do princípio da igualdade são mais fortes do que a igualdade mesma, como Proudhon quer elevar o princípio à força que ele repentinamente adquire?

Todas as representações religiosas se baseiam, segundo o senhor Bruno Bauer, na autoconsciência. Ela é, na opinião dele, o princípio criador dos evangelhos. Por que, então, as consequências do princípio da autoconsciência foram mais fortes do que ele mesmo? Porque, responde-se em alemão, se bem que a autoconsciência seja o princípio criador das representações religiosas, ela o é, no entanto, como uma autoconsciência fora de si, que se contradiz a si mesma, se aliena e se estranha a si mesma. A autoconsciência voltada para si própria, que se compreende a si mesma e que capta sua própria essência, é, portanto, o poder sobre as criaturas de sua autoalienação. Exatamente o mesmo é o caso de Proudhon; é natural que com a diferença de que ele fala francês e nós falamos alemão, que ele, por isso, expressa de um modo francês o que nós expressamos de um modo alemão.

O próprio Proudhon se pergunta por que a igualdade, ainda que sirva de base, como princípio racional criador que é, à fundação da propriedade, e ainda que seja o fundamento racional último para a propriedade, mesmo assim não existe, e o que existe é, muito antes, a sua negação, a propriedade privada? Devido a isso ele contempla o fato da propriedade em si mesmo. Ele prova “que na verdade a propriedade é impossível como instituição e princípio” (p. 34), quer dizer, que ela se contradiz a si mesma e suspende a si mesma em todos os pontos, que ela, para expressá-lo em alemão, é a existência da igualdade alienada, que se contradiz e se estranha a si mesma. A situação francesa real, como o ato de reconhecer esse estranhamento, indica a Proudhon, aliás com razão, a superação real dela.

Em sua negação da propriedade privada, Proudhon sente a necessidade de justificar historicamente, ao mesmo tempo, a existência da propriedade privada. Assim como todos os primeiros desenvolvimentos desse tipo, também o seu argumento é pragmático, quer dizer, ele parte da suposição de que as gerações passadas quiseram realizar em suas instituições, consciente e reflexivamente, a igualdade, que representa para ele a essência humana.

Nós sempre voltamos ao mesmo ponto... Proudhon escreve no interesse dos proletários.

Ele não escreve no interesse da Crítica que se basta a si mesma, partindo de um interesse abstrato e forjado por si mesmo, mas de um interesse massivo, real e histórico, de um interesse que ele quer levar muito além da crítica, que ele quer levar à crise. Proudhon não escreve apenas no interesse dos proletários; ele mesmo é proletário, ouvrier [“trabalhador”]. Sua obra é um manifesto científico do proletariado francês e por isso tem um significado histórico bem diferente da obra artificial de um Crítico crítico qualquer.

Proudhon escreve no interesse daqueles que não têm nada; ter e não ter são, para ele, categorias absolutas. O ter é, para ele, o ponto máximo, uma vez que não ter aparece, ao mesmo tempo, como o objeto máximo da meditação. Todo homem deve ter, mas tanto quanto o outro, segundo Proudhon. Pense-se, no entanto, que a única coisa que a mim interessa dentre aquilo que tenho é aquilo que eu tenho exclusivamente, aquilo que eu tenho a mais do que o outro. Na igualdade, o ter e até mesmo a igualdade serão para mim algo indiferente.

Na opinião do senhor Edgar, ter e não ter são, para Proudhon, categorias absolutas. A Crítica crítica vislumbra por tudo apenas categorias. Desse modo, o ter e o não ter, o salário e o soldo, a penúria e a necessidade, o trabalho por necessidade são, segundo o senhor Edgar, nada mais do que categorias.

Se a sociedade tivesse que se livrar apenas das categorias do ter e do não ter, quão fácil não seria a qualquer dialético, mesmo que fosse ainda mais fraco do que o senhor Edgar, alcançar a “superação” e a “suprassunção” dessas categorias! O senhor Edgar considera isso de uma pequenez tamanha que julga abaixo de sua dignidade dedicar esforço para dar a Proudhon um esclarecimento que fosse a respeito das categorias do ter e do não ter. Mas como o não ter não é apenas uma categoria, mas também uma realidade totalmente desconsoladora – uma vez que o homem que não tem nada não é nada hoje em dia, já que se acha à margem da existência de um modo geral e, mais ainda, à margem de uma existência humana, pois o estado de não ter é o estado de completo divórcio entre o homem e sua objetividade –, está perfeitamente justificado que o não ter constitua, para Proudhon, o mais alto tema de meditação, tanto mais pelo fato de ter sido meditado tão pouco acerca desse tema antes dele e dos escritores socialistas em geral. O não ter é o espiritualismo mais desesperado, uma irrealidade total do humano, uma realidade total do desumano, um ter assaz positivo, um ter fome, ter frio, ter doenças, crimes, humilhações, hebetismo, um ter todas as coisas desumanas e antinaturais. Mas todo o objeto que pela primeira vez é transformado em objeto de reflexão, com toda a consciência de sua importância, constitui um objeto máximo de reflexão.

O fato de Proudhon querer superar o não ter e a velha forma do ter é algo totalmente idêntico à pretensão de superar a atitude praticamente alienada do homem ante sua essência objetiva, à pretensão de superar a expressão econômico-política da autoalienação humana. Mas, como sua crítica da economia política ainda está presa às premissas da economia política, vemos que a reapropriação do mundo objetivo em si é concebida ainda sob a forma da posse.

Com efeito, Proudhon não opõe, conforme a Crítica crítica o apresenta, o ter ao não ter, mas contrapõe a posse à velha forma de ter, a propriedade privada. Ele esclarece a posse como uma “função social”. Mas o “interessante” em uma função não é a exclusão do outro, mas sim realizar e exercer nossas próprias forças essenciais.

Proudhon não alcançou dar a esse pensamento a elaboração que lhe seria adequada. A ideia da “posse igual” é a expressão econômico-política, e portanto ainda alienada, do fato de o objeto, na condição de ser para o homem, na condição de ser objetivo do homem ser, ao mesmo tempo, a existência do homem para o outro homem, sua atitude humana ante o outro homem, a atitude social do homem ante o homem. Proudhon supera a alienação econômico-política no interior da alienação econômico-política.

Tradução caracterizadora número III

O Proudhon crítico também possui um proprietário crítico, segundo cuja “própria confissão aqueles que deviam trabalhar para ele perdiam aquilo do que ele tomava posse”. O Proudhon massivo fala ao proprietário massivo:

Tu trabalhaste! Não deverás fazer jamais com que outros trabalhem para ti? Como eles haverão de ter perdido, pois, ao trabalhar para ti, o que tu soubeste adquirir quando não trabalhavas para eles?

O Proudhon crítico faz com que Say entenda “richesse naturelle [“riqueza natural.”] como sendo “possuintes naturais”, ainda que Say, a fim de evitar qualquer possibilidade de erro, declare expressamente na Epítome a seu “Traité d’économie politique [“tratado de economia política.”] que por richesse não entende nem a propriedade nem a posse, mas uma “soma de valores”. Naturalmente, do mesmo modo que o Proudhon crítico é reformado pelo senhor Edgar, assim também o senhor Edgar faz com que Proudhon reforme a Say. Assim, segundo ele, Say “conclui de imediato acerca do direito de tomar um campo como propriedade”, porque as terras são mais fáceis de serem transformadas em propriedade do que o ar e a água. Say, bem distante dessa opinião, ao invés de deduzir o direito de propriedade sobre o solo partindo da maior possibilidade de apropriar-se dele, diz expressamente:

“Les droits des propriétaires de terres... remontent à una spoliation” [“Os direitos dos proprietários de terra têm sua origem em uma espoliação.”][4 25]

Por isso, segundo Say, é necessário o “concours de la législation” [“concurso da legislação.”] e do “droit positif” [“direito positivo.”] para fundar o direito à propriedade de terra. O verdadeiro Proudhon não faz com que Say deduza “de imediato” o direito à propriedade de terra partindo da apropriação mais fácil da terra e do solo, mas acusa-o de fazer valer a possibilidade em vez do direito e de confundir a questão do direito com a questão da possibilidade:

Say prend la possibilité pour le droit. On ne demande pas pourquoi la terre a été plutôt appropriée que la mer et les airs; on veut savoir, en vertu de quel droit l’homme s’est approprié cette richesse. [“Say confunde a possibilidade com o direito. Não se pergunta por que a terra foi apropriada antes do mar e dos ares; quer-se saber por força de que direito o homem se apropriou dessa riqueza.”]

O Proudhon crítico prossegue:

Acerca disso basta observar que a apropriação de um pedaço de terra significa também a apropriação dos elementos restantes, ar, água, fogo: terra, aqua, aere et igne interdicti sumus. [“Da terra, água, ar e fogo somos excluídos.”]

Bem longe de “bastar” ao Proudhon real o fato de observar tal coisa, ele diz, muito antes, que “chama a atenção” de passagem (en passant) para a apropriação do ar e da água. No Proudhon crítico se encontra, não se sabe por que cargas d’água, a fórmula romana da interdição. Ele se esquece de dizer quem é esse “nós” que é interditado. O Proudhon real fala aos que não são proprietários:

Proletários... a propriedade nos excomunga, terra etc. interdicti sumus.

O Proudhon crítico polemiza, opondo-se a Charles Comte conforme segue:

Charles Comte entende que o homem, para viver, necessita de ar, de alimento, de roupa. Algumas dessas coisas, como ar e água, são inesgotáveis em sua opinião, e permaneceriam sendo sempre propriedade comum, outras estariam disponíveis em menor quantidade e se transformariam em propriedade privada. Charles Comte prova, portanto, a partir dos conceitos de limitado e ilimitado; talvez ele tivesse chegado a um outro resultado se tivesse feito dos conceitos de dispensável e indispensável suas categorias principais.

Mas que polêmica infantil essa do Proudhon crítico! Ele sugere a Charles Comte que abandone as categorias das quais parte em sua argumentação para adotar outras categorias, a fim de que não chegue a seus próprios resultados, mas, “talvez”, aos resultados do Proudhon crítico.

O Proudhon real não faz tais sugestões a Charles Comte; não o despacha através de um “talvez”, mas bate-o com suas próprias categorias.

Charles Comte, diz Proudhon,[4 26] parte da indispensabilidade do ar, do alimento e, conforme é o caso de algumas situações climáticas, da vestimenta, não para viver, mas sim para não deixar de viver. A fim de se conservar o homem necessita, por isso (segundo Charles Comte), apropriar-se constantemente de diferentes classes de coisas. E essas coisas não existem todas elas na mesma proporção.

A luz dos corpos celestes, ar, água estão disponíveis em quantidade tão grande que o homem não pode aumentá-las ou diminuí-las de maneira sensível; qualquer um pode se apropriar delas, portanto, na quantidade que julgar necessária, sem prejudicar em nada o desfrute dos demais.

Proudhon parte, pois, das próprias determinações de Comte. E prova a ele, em primeiro lugar, que também a terra é um objeto das necessidades primordiais do homem, cujo desfrute deveria estar aberto e livre a todos, segundo a cláusula do mesmo Comte, qual seja: “sem prejudicar em nada ao desfrute dos demais”. Mas por que, então, a terra tornou-se propriedade privada? Charles Comte responde que é porque ela não é ilimitada. Mas sua conclusão deveria ser a contrária, no entanto: justo por ser limitada é que ela não poderia ser transformada em propriedade. Com a apropriação de ar e água não se prejudica ninguém, pois sempre sobrará uma quantidade suficiente, uma vez que são ilimitados. A apropriação arbitrária da terra, ao contrário, prejudica o desfrute dos demais, justamente porque a terra é limitada. Seu desfrute deve, portanto, ser regulamentado a favor do interesse geral. A argumentação de Charles Comte leva a uma prova contrária à sua tese.

Charles Comte, conforme deduz Proudhon [o Proudhon crítico, seja dito],[4 27] parte da concepção de que uma nação pode ser proprietária de um território; no entanto, se a propriedade implica o direito de usar e abusar do que é seu – jus utendi et abutendi re sua [“o direito de usar e abusar de suas coisas.”] –, não se pode reconhecer a uma nação o direito de usar e abusar de um território.

O Proudhon real não fala do jus utendi et abutendi, que o direito à propriedade “carrega consigo”. Ele é demasiado massivo para falar do direito à propriedade que o direito à propriedade carrega consigo. O jus utendi e abutendi re sua é, na verdade, o direito à propriedade em si. Por isso Proudhon nega categoricamente a um povo o direito da propriedade sobre seu território. E àqueles que acham isso exagerado replica que, do direito imaginário da propriedade nacional sobre o território são derivados, em todas as épocas, os direitos de soberania, os tributos, as regalias, as obrigações pessoais etc.

O Proudhon real argumenta contra Charles Comte da seguinte maneira: Comte trata de descobrir como nasce a propriedade e começa pressupondo a nação como proprietária, cai, portanto, em um petitio principii.[4 28] Faz o Estado vender terrenos, que um industrial compra transformando-os em bens; ou seja, ele pressupõe as relações de propriedade que pretende provar.

O Proudhon crítico joga no lixo o sistema decimal francês. Mantém o franc, mas substitui o centime pelo “têrcimo”.[4 29]

Quando eu, prossegue Proudhon [o Proudhon crítico], cedo a outrem um pedaço de terra, não só me privo de uma colheita, mas também despojo a meus filhos e aos filhos de meus filhos de um bem permanente. A terra não possui apenas um valor atual, tem também um valor potencial, um valor futuro.

O Proudhon real não fala do fato de que a terra tem valor não apenas hoje, mas também amanhã; ele opõe o valor pleno e atual ao valor potencial e futuro, que depende de minha aptidão para valorizar a terra. Ele diz:

Destruí a terra, ou vendei-a, o que para vós vem a dar no mesmo; vós não vos desfazeis apenas de uma, duas ou mais colheitas, vós também destruís todos os produtos que poderíeis arrancar dela, vós, vossos filhos e os filhos de vossos filhos.

Para Proudhon não se trata de destacar o antagonismo entre uma colheita e o bem permanente – também o dinheiro que obtenho pela terra vendida pode se transformar de capital em “bem permanente” –, mas sim do antagonismo entre o valor presente e o valor que a terra pode adquirir mediante seu cultivo constante.

O novo valor, diz Charles Comte, que incorporo a uma coisa através do meu trabalho é minha propriedade. Proudhon [o Proudhon crítico] quer refutá-lo da seguinte maneira: Nesse caso o homem deixaria necessariamente de ser proprietário, portanto, ao deixar de trabalhar. A propriedade sobre o produto não pode jamais levar consigo a propriedade sobre a matéria que lhe serve de base.

O Proudhon real:

O trabalhador pode apropriar-se dos produtos de seu trabalho, mas eu não compreendo por que a propriedade sobre os produtos carrega consigo a propriedade sobre a matéria. O pescador que sabe pescar mais peixes do que os outros pescadores na mesma margem do rio, haverá ele de se tornar proprietário da faixa onde pesca apenas por causa de sua habilidade? A habilidade de um caçador por acaso já foi considerada algum dia como título de propriedade de um cantão de caça? A mesma é a situação do agricultor. A fim de transformar a posse em propriedade é necessária mais uma outra condição, além do simples trabalho em si, pois caso contrário o homem deixaria de ser proprietário assim que deixasse de ser trabalhador.

Cessante causa cessat effectus [“quando cessa a causa, cessa o efeito.”]. Quando o proprietário é proprietário apenas como trabalhador, ele deixa de ser proprietário assim que deixa de ser trabalhador.

Por isso, segundo a lei, é a prescrição que faz cessar a propriedade; o trabalho não é mais do que a expressão tangível, o ato material em que se manifesta a ocupação. O sistema da apropriação através do trabalho [prossegue Proudhon] contradiz a lei, portanto; e quando os partidários desse sistema pretextam valer-se dele para explicar as leis, contradizem-se a si mesmos.

Consequentemente, quando, segundo essa mesma opinião, diz-se por exemplo que o arroteamento da terra “cria a plena propriedade sobre ela”, isso não é mais do que uma petitio principii. Fato é que foi criada uma nova capacidade produtiva da matéria. Todavia resta demonstrar que com isso seja criada precisamente a propriedade sobre a matéria mesma. A matéria mesma, não foi o homem que a criou. Ele inclusive apenas cria a capacidade produtiva da matéria, sob a condição de a matéria existir anteriormente.

O Proudhon crítico faz de Gracchus Babeuf um partidário da liberdade; no Proudhon massivo ele é um partidário da igualdade (partisan de l’égalité).

O Proudhon crítico, que pretende taxar os honorários que Homero tem a receber pela Ilíada, diz:

O honorário que eu pago a Homero e aquilo que ele me proporciona devem ser equivalentes. Como é que pode ser determinado o valor de seu desempenho?

O Proudhon crítico está muito acima das pequenezas econômico-políticas para saber que o valor de uma coisa e aquilo que ela concede a outrem são coisas muito diferentes. O Proudhon real diz:

O honorário do poeta deve ser equivalente a seu produto; qual é, pois, o valor desse produto?

O Proudhon real parte do pressuposto de que a Ilíada tem um preço (ou valor de troca, prix) infinito. O Proudhon real opõe o valor da Ilíada, seu valor em sentido econômico-político (valeur intrinsèque) a seu valor de troca (valeur échangeable); o Proudhon crítico contrapõe a seu “valor interior”, quer dizer, a seu valor de poema, o “valor para a permuta”. O Proudhon real:

Entre uma recompensa material e o talento não existe nenhuma medida comum. Nessa relação a situação de todos os produtores é igual. Consequentemente é impossível estabelecer entre eles qualquer comparação e qualquer distinção classificatória de fortuna. (Entre une récompense matérielle et le talent il n’existe pas de commune mesure; sous de rapport la condition de tous les producteurs est égale; conséquemment toute comparaison entre eux et toute distinction de fortunes est impossible.)

O Proudhon crítico:

A relação dos produtores é relativamente igual. O talento... não pode ser pesado materialmente... Qualquer comparação dos produtores entre si, qualquer distinção exterior é impossível.

No Proudhon crítico,

o homem da ciência tem de sentir-se igual dentro da sociedade, já que seu talento e sua razão não são mais que um produto da razão social.

O Proudhon real não fala, em lugar nenhum, dos sentimentos do talento. Ele diz que o talento tem de se curvar sob o nível social. E tampouco afirma que o homem de talento é apenas um produto da sociedade, afirma, muito antes:

O homem de talento contribuiu para produzir em si mesmo um instrumento útil... há nele um trabalhador livre e um capital social acumulado.

O homem de talento contribuiu para produzir em si mesmo um instrumento útil... há nele um trabalhador livre e um capital social acumulado.

Ele deve se mostrar, além disso, satisfeito com a sociedade pelo fato de ela livrá-lo dos demais trabalhos, para poder se consagrar à ciência.

O Proudhon real não recorre em parte alguma à gratidão do homem de talento. Ele diz:

O artista, o erudito, o poeta recebem sua justa recompensa apenas no fato de a sociedade permitir que eles se consagrem exclusivamente à ciência e à arte.

O artista, o erudito, o poeta recebem sua justa recompensa apenas no fato de a sociedade permitir que eles se consagrem exclusivamente à ciência e à arte.

Notas

  1. Nesta seção é analisada e citada a resenha de Edgar Bauer sobre a obra L’union ouvrière (A união obreira), de Flora Tristan, editada em Paris no ano de 1843. O artigo de Edgar Bauer foi publicado no Caderno V do Jornal Literário Geral (abril de 1844).
  2. Outra expressão francesa. O apuro argumentativo é grandioso... O assunto é uma obra francesa, criticada por um autor alemão, e Engels revida usando uma expressão francesa para caracterizar a atitude do crítico alemão. En canaille – que diretamente significa “de modo canalha” – significa também “depreciativamente”, em sua versão mais atenuada.
  3. Uma das críticas mais duras de Marx e Engels à “Sagrada família” reside no fato de ela ter sido um simples complemento da concepção hegeliana da História. Em termos políticos era de fundo conformista e, portanto, negava a realidade – ainda de ponta-cabeça –, repudiando qualquer mudança na ordem social e econômica vigentes. A “Sagrada família” no fundo acreditava que a barreira decisiva a bloquear o desenvolvimento alemão estava nas ideias dominantes, sobretudo no que diz respeito à religião, e não na ordem social reacionária, vigente na época. No posfácio à segunda edição de O capital, escrito em 1873, Marx diria: “O aspecto mistificador da dialética hegeliana já foi criticado por mim há cerca de trinta anos, em uma época em que ainda estava em moda”.
  4. “Eu não construo um sistema; o que exijo é o fim do privilégio etc.”
  5. “Justiça, nada mais que justiça; a isso se resume o meu discurso.”
  6. “Tem de ser o homem eternamente desafortunado?”
  7. “E, sem me deter nas discussões, que cortam toda e qualquer objeção, dos fabricantes de reformas, dos quais estes responsabilizam a covardia e a falta de jeito dos poderosos, aqueles os conspiradores e motins e outros ainda a ignorância e a corrupção geral pela carestia geral, etc.”
  8. Os “reformistas” eram os partidários do jornal parisiense La Réforme, um agrupamento político ao qual pertenciam democratas pequeno-burgueses, republicanos e também socialistas pequeno-burgueses.
  9. “Eu acredito reconhecer desde o começo.”
  10. “Do começo” em “no final”.
  11. O Proudhon acrítico (em oposição ao Proudhon da Crítica, ou Proudhon crítico) é o Proudhon da massa, ou massivo, ou seja, o Proudhon real, deturpado pela tradução “caracterizadora” de Edgar Bauer.
  12. “Esse princípio... assim como nossa ignorância o fez, é honrado.”
  13. Conjunto das decisões dos jurisconsultos romanos mais célebres, transformadas em lei por Justiniano (c. 483-565), imperador romano do Oriente. As Pandectas constituem uma das quatro partes do Corpus Juris Civilis.
  14. Através do direito dos povos disseminou-se a escravidão.”
  15. “Um fato físico.”
  16. “A sociedade foi salva pela negação de seus princípios... e pela violação dos direitos mais sagrados.”
  17. O “sistema mercantilista” e suas implicações econômicas passaram a ser estudados a partir do século XVII, sobretudo na França e na Inglaterra. Os mercantilistas ensinavam que a mais-valia surge da troca e que a riqueza de uma nação só poderia ser alcançada com uma balança positiva no mercado de exportação e importação. A visão de Marx acerca da mais-valia e da mercadoria não era, nem de longe, tão simplista.
  18. Os “fisiocratas” (Quesnay, Mercier de la Rivière, Le Trosne e Turgot, entre outros) eram teóricos franceses do século XVIII. Eles consideravam a renda básica a única forma possível de mais-valia e, por isso, o trabalho rural o único trabalho realmente produtivo, o que também é profundamente ingênuo e bem distante da teoria de Marx.
  19. “O que é o terceiro Estado?”
  20. Os Anais franco-alemães (Deutsch-Französische Jahrbücher) eram publicados em alemão na cidade de Paris, sob a redação de Marx e Arnold Ruge. Alguns dos trabalhos iniciais de Marx foram publicados nesses anais.
  21. Para Marx, o escrito de Proudhon é a prova definitiva da inconciliabilidade entre humanidade e economia política. A maneira como Marx pretende superar – e supera – Proudhon é absolutamente diferente da de Bauer, aliás. Enquanto Bauer ideologiza até mesmo as questões econômicas de Proudhon, Marx transforma até mesmo as questões ideológicas do pensador francês em problemas socioeconômicos. Se Bauer é incapaz de ver o mérito de Proudhon por ter criticado a economia política do ponto de vista da economia política, Marx supera inclusive o ponto de vista limitado da economia política.
  22. A ironia de Marx! Não se deve jamais esquecer a profunda ironia de Marx.
  23. Devido ao cargo. (N.E.A.). A expressão latina ex professo indica, grosso modo, conhecimento de uma matéria a fundo; magistralmente, por extensão.
  24. A consciência – longe da “autoconsciência infinita” e balelas do tipo, reivindicadas por Bruno Bauer – da própria miséria, da própria alienação, da própria desumanização era, para Marx, um dos pressupostos indispensáveis à suprassunção revolucionária (revolutionäre Aufhebung) das relações produtoras da miséria, da alienação e da desumanização.
  25. Traité d’économie politique”, édition III, t. I, p. 136
  26. A argumentação marxiana é brilhante e ademais pontilhada de humor a cada linha. Aqui, o Proudhon “certo” e “genuíno” – antes chamado de Proudhon real, ou Proudhon massivo, às vezes de Proudhon acrítico; em oposição ao Proudhon crítico ou Proudhon caracterizado da Crítica crítica – vira, simplesmente, Proudhon, sem adjetivo nem nada. Isso porque o Proudhon real é o Proudhon que Marx conhece e analisa, o único Proudhon: simplesmente Proudhon.
  27. Quando Edgar Bauer ousa mencionar Proudhon na condição de simplesmente Proudhon, Marx interrompe mostrando o limite.
  28. Petição de princípio, ou seja, uso de uma sentença ainda não provada como base daquilo que se objetiva provar.
  29. Moeda de três fênigues, cunhada em prata no início, em cobre mais tarde. Vigorou até 1873.

“A crítica crítica” na condição de merceeira de mistérios ou a “crítica crítica” conforme o senhor Szeliga

Notas


A crítica crítica absoluta ou a crítica crítica conforme o senhor Bruno

Notas


A correspondência da crítica crítica

Notas


Caminho terreno e transfiguração da “crítica crítica” ou “a crítica crítica” conforme Rodolfo, príncipe de Geroldstein

Notas


O juízo final crítico

Notas