Biblioteca:Contribuição para a crítica da economia política: mudanças entre as edições

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== Prefácio ==
Considero o sistema da economia burguesa por esta ordem: ''capital, propriedade fundiária, trabalho assalariado; Estado, comércio externo, mercado mundial.'' Sob as três primeiras rubricas investigo as condições econômicas de vida das três grandes classes em que se decompõe a sociedade burguesa moderna; a conexão das três outras rubricas salta à vista. A primeira secção do livro primeiro, que trata do capital, consiste dos seguintes capítulos:
# a mercadoria;
# o dinheiro ou a circulação simples;
# o capital em geral.
Os dois primeiros capítulos formam o conteúdo do presente fascículo. Tenho diante de mim todo o material sob a forma de monografias, as quais foram redigidas, em períodos que distam largamente uns dos outros, para minha própria compreensão, não para o prelo, e cuja elaboração conexa segundo o plano indicado dependerá de circunstâncias exteriores.
Suprimo uma introdução geral que tinha esboçado<ref group="p">Trata-se da “Introdução” inacabada que Marx escreveu para a grande obra econômica que tinha projetado
A obra de Marx ''Para a Crítica da Economia Política'' constitui uma etapa  importante na criação da Economia Política marxista. A redação deste livro foi  precedida de quinze anos de investigação científica, no decurso dos quais Marx  estudou uma enorme quantidade de publicações e elaborou as bases da sua teoria econômica. Marx tencionava expor os resultados do seu trabalho numa grande obra  econômica. Em agosto-setembro de 1857 iniciou a sistematização do material  recolhido e elaborou um primeiro esboço do plano dessa obra. Nos meses seguintes  elaborou em pormenor o seu plano e decidiu publicar a obra por partes, em  fascículos separados. Depois de ter assinado um contrato com o editor de Berlim F. Duncker, começou a trabalhar no primeiro fascículo, que foi publicado em  Junho de 1859.
Imediatamente a seguir à publicação do primeiro fascículo Marx dispôs-se a  publicar o segundo, no qual deviam ser tratados os problemas do capital. No  entanto, investigações suplementares obrigaram Marx a modificar o plano inicial  da sua grande obra. Em vez do segundo fascículo e dos seguintes, Marx preparou ''O  Capital'', no qual incluiu, depois de as redigir de novo, as teses fundamentais do  livro ''Para a Crítica da Economia Política''.</ref> porque, reflectindo mais a fundo, me parece prejudicial toda a antecipação de resultados ainda a comprovar, e o leitor que me quiser de facto seguir terá de se decidir a ascender do singular para o geral. Algumas alusões ao curso dos meus próprios estudos político-econômicos poderão, pelo contrário, ter aqui lugar.
O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redactor da ''Rheinische Zeitung'',<ref group="p">''Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe'' (''Gazeta Renana sobre  Política, Comércio e Indústria''): jornal publicado em Colônia de 1 de Janeiro de  1842 a 31 de Março de 1843. Marx colaborou no jornal a partir de Abril de 1842,  e em Outubro desse mesmo ano tornou-se seu redator.</ref> vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do ''Landtag'' Renano sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária, a polémica oficial que ''Herr'' von Schaper, então ''Oberprásident'' da província renana, abriu com a ''Rheinische Zeitung'' sobre a situação dos camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e tarifas alfandegárias proteccionistas deram-me os primeiros motivos para que me ocupasse com questões econômicas. Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de"ir por diante" repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões — tornado audível na ''Rheinische Zeitung'' um eco do socialismo e comunismo francês, sob uma ténue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com a ''Allgemeine Augsburger Zeitung'',<ref group="p">''Allgemeine Augsburger Zeitung'' (''Jornal Geral de Augsburg''): jornal  reaccionário alemão fundado em 1798; entre 1810 e 1882 publicou-se em Augsburg.  Em 1842 publicou uma falsificação das ideias do comunismo e do socialismo  utópicos, que Marx desmascarou no seu artigo “O Comunismo e o ''Allgemeine Zeitung'' de Augsburg”.</ref> que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar a mãos ambas a ilusão dos directores da ''Rheinische Zeitung,'' que acreditavam poder levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo.
O primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma revisão crítica da filosofia do direito que Hegel, um trabalho cuja introdução apareceu nos ''Deutsch-Französische Jahrbücher''<ref group="p">''Deutsch-Französische Jahrbücher'' (''Anais Franco-Alemães'') foram publicados em  Paris sob a direção de K. Marx e A. Ruge em língua alemã. Saiu apenas um  número, duplo, em Fevereiro de 1844. Incluía as obras de K. Marx ''Sobre a Questão  Judaica'' e ''Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução'', assim  como as obras de F. Engels ''Esboços para Uma Crítica da Economia Política'' e ''A  Situação em Inglaterra: “O Passado e o Presente”, de Thomas Carlyle''. Estes  trabalhos traduzem a passagem definitiva de Marx e Engels para o materialismo e  o comunismo. A causa principal do desaparecimento da revista foram as  divergências de princípio entre Marx e o radical burguês Ruge.</ref> publicados em Paris em 1844. A minha investigação desembocou no resultado de que relações jurídicas, tal como formas de Estado, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira dos ingleses e franceses do século XVIII, resume sob o nome de"sociedade civil", e de que a anatomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia política. A investigação desta última, que comecei em Paris, continuei em Bruxelas, para onde me mudara em consequência duma ordem de expulsão do Sr. Guizot. O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento econômico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superstrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições econômicas da produção, o qual é constatável rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da formação econômica e social. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção, antagônica não no sentido de antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.
Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de ideias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos ''Deutsch-Französi-sche Jahrbücher),'' tinha chegado comigo, por uma outra via (comp. a sua ''Situação da Classe Operária em Inglaterra),'' ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele se radicou igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de facto ajustar contas com a nossa consciência ''[Gewissen]'' filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grossos volumes em oitavo,<ref group="p">Referência a [[A ideologia alemã|''A ideologia alemã'']].</ref> chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestefália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonámos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objetivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentámos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o ''Manifesto do Partido Comunista'', redigido conjuntamente por Engels e por mim, e um ''Discours sur le libre échange'' publicado por mim. Os pontos decisivos da nossa maneira de ver foram primeiro referidos cientificamente, se bem que polemicamente, no meu escrito editado em 1847, e dirigido contra Proudhon, ''Misere de la philosophie,'' etc. Um estudo escrito em alemão sobre o ''Trabalho Assalariado,'' em que juntei as minhas conferências sobre este assunto proferidas na Associação dos Operários Alemães em Bruxelas,<ref group="p">A ''Associação dos Operários Alemães'' de Bruxelas foi fundada por Marx e Engels  no final de Agosto de 1847 com vista a dar uma formação política aos operários  alemães residentes na Bélgica e a fazer propaganda entre eles das ideias do  comunismo científico. Sob a direção de Marx e Engels e dos seus colaboradores,  a Associação tornou-se um centro legal de agrupamento dos proletários  revolucionários alemães na Bélgica. Os melhores elementos da Associação faziam  parte da organização de Bruxelas da Liga dos Comunistas. A atividade da  Associação dos Operários Alemães de Bruxelas terminou pouco depois da revolução  burguesa de Fevereiro de 1848 em França, em virtude da prisão e da expulsão dos  seus membros pela polícia belga.</ref> foi interrompido no prelo pela revolução de Fevereiro e pelo meu afastamento forçado da Bélgica ocorrido em consequência da mesma.
A publicação da ''Neue Rheinische Zeitung''<ref group="p"> ''Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie'' (''Nova Gazeta Renana''. ''Órgão da  Democracia''): jornal que se publicou em Colónia sob a direcção de Marx de 1 de  Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849; Engels fazia parte da redacção.</ref> em 1848 e 1849, e os acontecimentos que posteriormente se seguiram interromperam os meus estudos econômicos, os quais só puderam ser retomados em Londres no ano de 1850. O material imenso para a história da economia política que está acumulado no British Museum, o ponto de vista favorável que Londres oferece para a observação da sociedade burguesa, [e] finalmente o novo estádio de desenvolvimento em que esta última pareceu entrar com a descoberta do ouro da Califórnia e da Austrália determinaram-me a começar de novo tudo de princípio e a trabalhar criticamente o novo material. Estes estudos conduziram, em parte por si mesmos, a disciplinas aparentemente muito distanciadas em que eu tinha de permanecer menos ou mais tempo. Mas o tempo ao meu dispor era nomeadamente reduzido pela necessidade imperiosa de uma actividade remunerada. A minha colaboração, agora de oito anos, no primeiro jornal anglo-americano, o ''New-York Tribune'',<ref group="p">''Tribune'': título abreviado do jornal burguês progressista ''The New- York Daily  Tribune'' (''A Tribuna Diária de Nova Iorque''), que se publicou entre 1841 e 1924.  Entre Agosto de 1851 e Março de 1862 Marx e Engels colaboraram no jornal.</ref> tornou necessária, como só excepcionalmente me ocupo com correspondência jornalística propriamente dita, uma extraordinária dispersão dos estudos. Entretanto, [os] artigos sobre acontecimentos econômicos notórios em Inglaterra e no Continente constituíam uma parte tão significativa da minha colaboração que fui obrigado a familiarizar-me com pormenores práticos que ficam fora do âmbito da ciência da economia política propriamente dita.
Este esboço sobre o curso dos meus estudos na área da economia política serve apenas para demonstrar que as minhas opiniões, sejam elas julgadas como forem e por menos que coincidam com os preconceitos interesseiros das classes dominantes, são o resultado duma investigação conscienciosa e de muitos anos. À entrada para a ciência, porém, como à entrada para o inferno, tem de ser posta a exigência:<blockquote>''Qui si convien lasciare ogni sospetto''
''Ogni viltà convien che qui sia morta.''<ref group="p">Aqui tem de se banir toda a desconfiança. Toda a cobardia tem aqui de ser morta. (Dante Alighieri, A Divina Comédia.)</ref></blockquote>{{Assinatura-parágrafo|Karl Marx|Londres, janeiro de 1859}}
=== Notas ===
<references group="p" />

Edição das 19h07min de 8 de janeiro de 2021

O 18 Contribuição para a crítica da economia política
Escrito emJaneiro de 1859
Publicado 1ª vezBerlin 1859.
TipoLivro
Fontehttp://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2450

Prefácio

Considero o sistema da economia burguesa por esta ordem: capital, propriedade fundiária, trabalho assalariado; Estado, comércio externo, mercado mundial. Sob as três primeiras rubricas investigo as condições econômicas de vida das três grandes classes em que se decompõe a sociedade burguesa moderna; a conexão das três outras rubricas salta à vista. A primeira secção do livro primeiro, que trata do capital, consiste dos seguintes capítulos:

  1. a mercadoria;
  2. o dinheiro ou a circulação simples;
  3. o capital em geral.

Os dois primeiros capítulos formam o conteúdo do presente fascículo. Tenho diante de mim todo o material sob a forma de monografias, as quais foram redigidas, em períodos que distam largamente uns dos outros, para minha própria compreensão, não para o prelo, e cuja elaboração conexa segundo o plano indicado dependerá de circunstâncias exteriores.

Suprimo uma introdução geral que tinha esboçado[p 1] porque, reflectindo mais a fundo, me parece prejudicial toda a antecipação de resultados ainda a comprovar, e o leitor que me quiser de facto seguir terá de se decidir a ascender do singular para o geral. Algumas alusões ao curso dos meus próprios estudos político-econômicos poderão, pelo contrário, ter aqui lugar.

O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redactor da Rheinische Zeitung,[p 2] vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do Landtag Renano sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária, a polémica oficial que Herr von Schaper, então Oberprásident da província renana, abriu com a Rheinische Zeitung sobre a situação dos camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e tarifas alfandegárias proteccionistas deram-me os primeiros motivos para que me ocupasse com questões econômicas. Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de"ir por diante" repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões — tornado audível na Rheinische Zeitung um eco do socialismo e comunismo francês, sob uma ténue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com a Allgemeine Augsburger Zeitung,[p 3] que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar a mãos ambas a ilusão dos directores da Rheinische Zeitung, que acreditavam poder levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo.

O primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma revisão crítica da filosofia do direito que Hegel, um trabalho cuja introdução apareceu nos Deutsch-Französische Jahrbücher[p 4] publicados em Paris em 1844. A minha investigação desembocou no resultado de que relações jurídicas, tal como formas de Estado, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira dos ingleses e franceses do século XVIII, resume sob o nome de"sociedade civil", e de que a anatomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia política. A investigação desta última, que comecei em Paris, continuei em Bruxelas, para onde me mudara em consequência duma ordem de expulsão do Sr. Guizot. O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento econômico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superstrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições econômicas da produção, o qual é constatável rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da formação econômica e social. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção, antagônica não no sentido de antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.

Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de ideias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos Deutsch-Französi-sche Jahrbücher), tinha chegado comigo, por uma outra via (comp. a sua Situação da Classe Operária em Inglaterra), ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele se radicou igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de facto ajustar contas com a nossa consciência [Gewissen] filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grossos volumes em oitavo,[p 5] chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestefália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonámos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objetivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentámos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o Manifesto do Partido Comunista, redigido conjuntamente por Engels e por mim, e um Discours sur le libre échange publicado por mim. Os pontos decisivos da nossa maneira de ver foram primeiro referidos cientificamente, se bem que polemicamente, no meu escrito editado em 1847, e dirigido contra Proudhon, Misere de la philosophie, etc. Um estudo escrito em alemão sobre o Trabalho Assalariado, em que juntei as minhas conferências sobre este assunto proferidas na Associação dos Operários Alemães em Bruxelas,[p 6] foi interrompido no prelo pela revolução de Fevereiro e pelo meu afastamento forçado da Bélgica ocorrido em consequência da mesma.

A publicação da Neue Rheinische Zeitung[p 7] em 1848 e 1849, e os acontecimentos que posteriormente se seguiram interromperam os meus estudos econômicos, os quais só puderam ser retomados em Londres no ano de 1850. O material imenso para a história da economia política que está acumulado no British Museum, o ponto de vista favorável que Londres oferece para a observação da sociedade burguesa, [e] finalmente o novo estádio de desenvolvimento em que esta última pareceu entrar com a descoberta do ouro da Califórnia e da Austrália determinaram-me a começar de novo tudo de princípio e a trabalhar criticamente o novo material. Estes estudos conduziram, em parte por si mesmos, a disciplinas aparentemente muito distanciadas em que eu tinha de permanecer menos ou mais tempo. Mas o tempo ao meu dispor era nomeadamente reduzido pela necessidade imperiosa de uma actividade remunerada. A minha colaboração, agora de oito anos, no primeiro jornal anglo-americano, o New-York Tribune,[p 8] tornou necessária, como só excepcionalmente me ocupo com correspondência jornalística propriamente dita, uma extraordinária dispersão dos estudos. Entretanto, [os] artigos sobre acontecimentos econômicos notórios em Inglaterra e no Continente constituíam uma parte tão significativa da minha colaboração que fui obrigado a familiarizar-me com pormenores práticos que ficam fora do âmbito da ciência da economia política propriamente dita.

Este esboço sobre o curso dos meus estudos na área da economia política serve apenas para demonstrar que as minhas opiniões, sejam elas julgadas como forem e por menos que coincidam com os preconceitos interesseiros das classes dominantes, são o resultado duma investigação conscienciosa e de muitos anos. À entrada para a ciência, porém, como à entrada para o inferno, tem de ser posta a exigência:

Qui si convien lasciare ogni sospetto Ogni viltà convien che qui sia morta.[p 9]

Karl Marx
Londres, janeiro de 1859

Notas

  1. Trata-se da “Introdução” inacabada que Marx escreveu para a grande obra econômica que tinha projetado A obra de Marx Para a Crítica da Economia Política constitui uma etapa importante na criação da Economia Política marxista. A redação deste livro foi precedida de quinze anos de investigação científica, no decurso dos quais Marx estudou uma enorme quantidade de publicações e elaborou as bases da sua teoria econômica. Marx tencionava expor os resultados do seu trabalho numa grande obra econômica. Em agosto-setembro de 1857 iniciou a sistematização do material recolhido e elaborou um primeiro esboço do plano dessa obra. Nos meses seguintes elaborou em pormenor o seu plano e decidiu publicar a obra por partes, em fascículos separados. Depois de ter assinado um contrato com o editor de Berlim F. Duncker, começou a trabalhar no primeiro fascículo, que foi publicado em Junho de 1859. Imediatamente a seguir à publicação do primeiro fascículo Marx dispôs-se a publicar o segundo, no qual deviam ser tratados os problemas do capital. No entanto, investigações suplementares obrigaram Marx a modificar o plano inicial da sua grande obra. Em vez do segundo fascículo e dos seguintes, Marx preparou O Capital, no qual incluiu, depois de as redigir de novo, as teses fundamentais do livro Para a Crítica da Economia Política.
  2. Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana sobre Política, Comércio e Indústria): jornal publicado em Colônia de 1 de Janeiro de 1842 a 31 de Março de 1843. Marx colaborou no jornal a partir de Abril de 1842, e em Outubro desse mesmo ano tornou-se seu redator.
  3. Allgemeine Augsburger Zeitung (Jornal Geral de Augsburg): jornal reaccionário alemão fundado em 1798; entre 1810 e 1882 publicou-se em Augsburg. Em 1842 publicou uma falsificação das ideias do comunismo e do socialismo utópicos, que Marx desmascarou no seu artigo “O Comunismo e o Allgemeine Zeitung de Augsburg”.
  4. Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães) foram publicados em Paris sob a direção de K. Marx e A. Ruge em língua alemã. Saiu apenas um número, duplo, em Fevereiro de 1844. Incluía as obras de K. Marx Sobre a Questão Judaica e Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução, assim como as obras de F. Engels Esboços para Uma Crítica da Economia Política e A Situação em Inglaterra: “O Passado e o Presente”, de Thomas Carlyle. Estes trabalhos traduzem a passagem definitiva de Marx e Engels para o materialismo e o comunismo. A causa principal do desaparecimento da revista foram as divergências de princípio entre Marx e o radical burguês Ruge.
  5. Referência a A ideologia alemã.
  6. A Associação dos Operários Alemães de Bruxelas foi fundada por Marx e Engels no final de Agosto de 1847 com vista a dar uma formação política aos operários alemães residentes na Bélgica e a fazer propaganda entre eles das ideias do comunismo científico. Sob a direção de Marx e Engels e dos seus colaboradores, a Associação tornou-se um centro legal de agrupamento dos proletários revolucionários alemães na Bélgica. Os melhores elementos da Associação faziam parte da organização de Bruxelas da Liga dos Comunistas. A atividade da Associação dos Operários Alemães de Bruxelas terminou pouco depois da revolução burguesa de Fevereiro de 1848 em França, em virtude da prisão e da expulsão dos seus membros pela polícia belga.
  7. Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie (Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia): jornal que se publicou em Colónia sob a direcção de Marx de 1 de Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849; Engels fazia parte da redacção.
  8. Tribune: título abreviado do jornal burguês progressista The New- York Daily Tribune (A Tribuna Diária de Nova Iorque), que se publicou entre 1841 e 1924. Entre Agosto de 1851 e Março de 1862 Marx e Engels colaboraram no jornal.
  9. Aqui tem de se banir toda a desconfiança. Toda a cobardia tem aqui de ser morta. (Dante Alighieri, A Divina Comédia.)