Biblioteca:Contribuição para a crítica da economia política

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O 18 Contribuição para a crítica da economia política
Escrito porKarl Marx
Escrito emJaneiro de 1859
Publicado 1ª vezBerlin 1859.
TipoLivro
Fontehttp://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2450


Prefácio

Considero o sistema da economia burguesa por esta ordem: capital, propriedade fundiária, trabalho assalariado; Estado, comércio externo, mercado mundial. Sob as três primeiras rubricas investigo as condições econômicas de vida das três grandes classes em que se decompõe a sociedade burguesa moderna; a conexão das três outras rubricas salta à vista. A primeira secção do livro primeiro, que trata do capital, consiste dos seguintes capítulos:

  1. a mercadoria;
  2. o dinheiro ou a circulação simples;
  3. o capital em geral.

Os dois primeiros capítulos formam o conteúdo do presente fascículo. Tenho diante de mim todo o material sob a forma de monografias, as quais foram redigidas, em períodos que distam largamente uns dos outros, para minha própria compreensão, não para o prelo, e cuja elaboração conexa segundo o plano indicado dependerá de circunstâncias exteriores.

Suprimo uma introdução geral que tinha esboçado[p 1] porque, reflectindo mais a fundo, me parece prejudicial toda a antecipação de resultados ainda a comprovar, e o leitor que me quiser de facto seguir terá de se decidir a ascender do singular para o geral. Algumas alusões ao curso dos meus próprios estudos político-econômicos poderão, pelo contrário, ter aqui lugar.

O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redactor da Rheinische Zeitung,[p 2] vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do Landtag Renano sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária, a polémica oficial que Herr von Schaper, então Oberprásident da província renana, abriu com a Rheinische Zeitung sobre a situação dos camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e tarifas alfandegárias proteccionistas deram-me os primeiros motivos para que me ocupasse com questões econômicas. Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de"ir por diante" repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões — tornado audível na Rheinische Zeitung um eco do socialismo e comunismo francês, sob uma ténue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com a Allgemeine Augsburger Zeitung,[p 3] que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar a mãos ambas a ilusão dos directores da Rheinische Zeitung, que acreditavam poder levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo.

O primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma revisão crítica da filosofia do direito que Hegel, um trabalho cuja introdução apareceu nos Deutsch-Französische Jahrbücher[p 4] publicados em Paris em 1844. A minha investigação desembocou no resultado de que relações jurídicas, tal como formas de Estado, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira dos ingleses e franceses do século XVIII, resume sob o nome de"sociedade civil", e de que a anatomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia política. A investigação desta última, que comecei em Paris, continuei em Bruxelas, para onde me mudara em consequência duma ordem de expulsão do Sr. Guizot. O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento econômico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superstrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições econômicas da produção, o qual é constatável rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da formação econômica e social. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção, antagônica não no sentido de antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.

Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de ideias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos Deutsch-Französi-sche Jahrbücher), tinha chegado comigo, por uma outra via (comp. a sua Situação da Classe Operária em Inglaterra), ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele se radicou igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de facto ajustar contas com a nossa consciência [Gewissen] filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grossos volumes em oitavo,[p 5] chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestefália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonámos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objetivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentámos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o Manifesto do Partido Comunista, redigido conjuntamente por Engels e por mim, e um Discours sur le libre échange publicado por mim. Os pontos decisivos da nossa maneira de ver foram primeiro referidos cientificamente, se bem que polemicamente, no meu escrito editado em 1847, e dirigido contra Proudhon, Misere de la philosophie, etc. Um estudo escrito em alemão sobre o Trabalho Assalariado, em que juntei as minhas conferências sobre este assunto proferidas na Associação dos Operários Alemães em Bruxelas,[p 6] foi interrompido no prelo pela revolução de Fevereiro e pelo meu afastamento forçado da Bélgica ocorrido em consequência da mesma.

A publicação da Neue Rheinische Zeitung[p 7] em 1848 e 1849, e os acontecimentos que posteriormente se seguiram interromperam os meus estudos econômicos, os quais só puderam ser retomados em Londres no ano de 1850. O material imenso para a história da economia política que está acumulado no British Museum, o ponto de vista favorável que Londres oferece para a observação da sociedade burguesa, [e] finalmente o novo estádio de desenvolvimento em que esta última pareceu entrar com a descoberta do ouro da Califórnia e da Austrália determinaram-me a começar de novo tudo de princípio e a trabalhar criticamente o novo material. Estes estudos conduziram, em parte por si mesmos, a disciplinas aparentemente muito distanciadas em que eu tinha de permanecer menos ou mais tempo. Mas o tempo ao meu dispor era nomeadamente reduzido pela necessidade imperiosa de uma actividade remunerada. A minha colaboração, agora de oito anos, no primeiro jornal anglo-americano, o New-York Tribune,[p 8] tornou necessária, como só excepcionalmente me ocupo com correspondência jornalística propriamente dita, uma extraordinária dispersão dos estudos. Entretanto, [os] artigos sobre acontecimentos econômicos notórios em Inglaterra e no Continente constituíam uma parte tão significativa da minha colaboração que fui obrigado a familiarizar-me com pormenores práticos que ficam fora do âmbito da ciência da economia política propriamente dita.

Este esboço sobre o curso dos meus estudos na área da economia política serve apenas para demonstrar que as minhas opiniões, sejam elas julgadas como forem e por menos que coincidam com os preconceitos interesseiros das classes dominantes, são o resultado duma investigação conscienciosa e de muitos anos. À entrada para a ciência, porém, como à entrada para o inferno, tem de ser posta a exigência:

Qui si convien lasciare ogni sospetto Ogni viltà convien che qui sia morta.[p 9]

Karl Marx
Londres, janeiro de 1859

Notas

  1. Trata-se da “Introdução” inacabada que Marx escreveu para a grande obra econômica que tinha projetado A obra de Marx Para a Crítica da Economia Política constitui uma etapa importante na criação da Economia Política marxista. A redação deste livro foi precedida de quinze anos de investigação científica, no decurso dos quais Marx estudou uma enorme quantidade de publicações e elaborou as bases da sua teoria econômica. Marx tencionava expor os resultados do seu trabalho numa grande obra econômica. Em agosto-setembro de 1857 iniciou a sistematização do material recolhido e elaborou um primeiro esboço do plano dessa obra. Nos meses seguintes elaborou em pormenor o seu plano e decidiu publicar a obra por partes, em fascículos separados. Depois de ter assinado um contrato com o editor de Berlim F. Duncker, começou a trabalhar no primeiro fascículo, que foi publicado em Junho de 1859. Imediatamente a seguir à publicação do primeiro fascículo Marx dispôs-se a publicar o segundo, no qual deviam ser tratados os problemas do capital. No entanto, investigações suplementares obrigaram Marx a modificar o plano inicial da sua grande obra. Em vez do segundo fascículo e dos seguintes, Marx preparou O Capital, no qual incluiu, depois de as redigir de novo, as teses fundamentais do livro Para a Crítica da Economia Política.
  2. Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana sobre Política, Comércio e Indústria): jornal publicado em Colônia de 1 de Janeiro de 1842 a 31 de Março de 1843. Marx colaborou no jornal a partir de Abril de 1842, e em Outubro desse mesmo ano tornou-se seu redator.
  3. Allgemeine Augsburger Zeitung (Jornal Geral de Augsburg): jornal reaccionário alemão fundado em 1798; entre 1810 e 1882 publicou-se em Augsburg. Em 1842 publicou uma falsificação das ideias do comunismo e do socialismo utópicos, que Marx desmascarou no seu artigo “O Comunismo e o Allgemeine Zeitung de Augsburg”.
  4. Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães) foram publicados em Paris sob a direção de K. Marx e A. Ruge em língua alemã. Saiu apenas um número, duplo, em Fevereiro de 1844. Incluía as obras de K. Marx Sobre a Questão Judaica e Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução, assim como as obras de F. Engels Esboços para Uma Crítica da Economia Política e A Situação em Inglaterra: “O Passado e o Presente”, de Thomas Carlyle. Estes trabalhos traduzem a passagem definitiva de Marx e Engels para o materialismo e o comunismo. A causa principal do desaparecimento da revista foram as divergências de princípio entre Marx e o radical burguês Ruge.
  5. Referência a A ideologia alemã.
  6. A Associação dos Operários Alemães de Bruxelas foi fundada por Marx e Engels no final de Agosto de 1847 com vista a dar uma formação política aos operários alemães residentes na Bélgica e a fazer propaganda entre eles das ideias do comunismo científico. Sob a direção de Marx e Engels e dos seus colaboradores, a Associação tornou-se um centro legal de agrupamento dos proletários revolucionários alemães na Bélgica. Os melhores elementos da Associação faziam parte da organização de Bruxelas da Liga dos Comunistas. A atividade da Associação dos Operários Alemães de Bruxelas terminou pouco depois da revolução burguesa de Fevereiro de 1848 em França, em virtude da prisão e da expulsão dos seus membros pela polícia belga.
  7. Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie (Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia): jornal que se publicou em Colónia sob a direcção de Marx de 1 de Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849; Engels fazia parte da redacção.
  8. Tribune: título abreviado do jornal burguês progressista The New- York Daily Tribune (A Tribuna Diária de Nova Iorque), que se publicou entre 1841 e 1924. Entre Agosto de 1851 e Março de 1862 Marx e Engels colaboraram no jornal.
  9. Aqui tem de se banir toda a desconfiança. Toda a cobardia tem aqui de ser morta. (Dante Alighieri, A Divina Comédia.)

A mercadoria

À primeira vista, a riqueza da sociedade burguesa aparece como uma imensa acumulação de mercadorias, sendo a mercadoria isolada a forma elementar dessa riqueza. Mas, cada mercadoria se manifesta sob o duplo aspecto de valor de uso e de valor de troca.[1 1]

A mercadoria, na linguagem dos economistas ingleses, é, em primeiro lugar, "uma coisa qualquer, necessária, útil ou agradável à vida", objeto de necessidades humanas, meio de existência na mais lata acepção da palavra. A forma sob a qual a mercadoria é um valor de uso confunde-se com sua existência material tangível. O trigo, por exemplo, é um valor de uso especial, que se distingue dos valores de uso como o algodão, vidro, papel etc. O valor de uso não tem valor senão para o uso, e não adquire realidade senão no processo de consumo. Um mesmo valor de uso pode ser utilizado de diversas maneiras. Não obstante, a soma de seus empregos possíveis decorre de seu caráter de objeto com propriedades definidas. Ademais, não só está determinado qualitativamente, mas também quantitativamente. Os valores de uso diferentes têm medidas distintas em harmonia com suas particularidades naturais; por exemplo: uma fanga [55,2 litros] de trigo, uma resma de papel, um metro de tecido etc.

Qualquer que seja a forma social da riqueza, os valores de uso constituem sempre seu conteúdo, que permanece em primeiro lugar, indiferentemente a essa forma. Ao provar o trigo, não se conhece quem o cultivou: servo russo, modesto aldeão francês ou capitalista inglês. Ainda que o valor de uso seja objeto de necessidades sociais e se articule, por conseguinte, à sociedade, não expressa, todavia, uma relação de produção social. Seja esta mercadoria considerada em seu valor de uso: um diamante, por exemplo. Olhando o diamante, não se percebe que é uma mercadoria. Quando serve como valor de uso, estético ou mecânico, sobre o colo de uma dama ou na mão do lapidário, é diamante e não mercadoria. Parece tornar-se necessário que a mercadoria seja um valor de uso, mas indiferente que o valor de uso seja uma mercadoria. O valor de uso, quando encarado de modo indiferente em relação à determinação econômica formal, isto é, o valor de uso como tal, encontra-se fora da esfera de investigação da Economia Política.[1 2]

O valor de uso entra nela somente quando é determinado de forma econômica. Diretamente, é a base material com que se manifesta uma relação determinada: o valor de troca.

O valor de troca aparece primeiramente como uma relação quantitativa na qual os valores de uso são permutáveis. Em tal relação, esses valores constituem uma magnitude idêntica de troca. Desse modo, um volume de Propércio e oito onças [antiga medida de peso inglesa, equivalente a 28,35g] de rapé podem ter o mesmo valor de troca, apesar das diferenças do valor de uso do tabaco e da elegia. Considerado como valor de troca, um valor de uso vale exatamente tanto quanto outro, contanto que se apresente em proporção conveniente. O valor de troca de um palácio pode expressar-se em um número determinado de caixas de betume. Os fabricantes de betume de Londres, inversamente, expressam em palácios o valor de troca de suas caixas de betume multiplicadas. Indiferentemente, pois, a seu modo natural de existência, sem se considerar a natureza específica da necessidade para a qual são valores de uso, as mercadorias, em quantidades determinadas, superpõem-se, suprem-se na troca, reputam-se como equivalentes e representam, assim, a despeito de sua variada aparência, a mesma unidade.

Os valores de uso são, de modo imediato, meios de existência. Inversamente, esses meios de existência são produtos da vida social, resultado da força vital gasta pelo homem, de trabalho objetivado. Como materialização de trabalho social, todas as mercadorias são cristalizações da mesma unidade. Agora precisamos considerar o caráter determinado dessa unidade, isto é, do trabalho, que se manifesta no valor de troca.

Suponhamos que uma onça de ouro, uma tonelada de ferro, uma medida de trigo e 20 metros de seda representem valores de troca da mesma magnitude. Graças a essa equivalência, na qual está eliminada a diferença qualitativa de seu valor de uso, aqueles produtos representam um mesmo volume de trabalho idêntico. E preciso que o trabalho que se realiza neles de um modo idêntico seja do mesmo modo trabalho uniforme, não diferenciado, simples, sendo-lhe tão indiferente manifestar-se em ouro, em ferro, em trigo e em seda, como é indiferente ao oxigênio encontrar-se no óxido de ferro, na atmosfera, no suco das raízes ou no sangue do homem. Mas, cavar o solo para obter o ouro, extrair o ferro da mina, cultivar o trigo ou tecer a seda são gêneros de trabalho que se distinguem qualitativamente uns dos outros. Efetivamente, o que parece ser materialmente uma diferença dos valores de uso surge no processo de produção como uma diferença da atividade que produz os valores de uso. Indiferente à substância particular dos valores de uso, o trabalho, criador do valor de troca, é indiferente à forma particular do próprio trabalho. Os diferentes valores de uso são, ademais, os produtos da atividade de distintos indivíduos; quer dizer, o resultado de trabalhos que diferem individualmente. Como valores de troca, não obstante, representam trabalho homogêneo não diferenciado, isto é, trabalho no qual desaparece a individualidade dos trabalhadores. O trabalho que cria o valor de troca é, pois, trabalho geral-abstrato.

Se uma onça de ouro, uma tonelada de ferro, uma medida de trigo e 20 metros de seda são valores equivalentes ou de igual magnitude, uma onça de ouro, meia tonelada de ferro, três fangas de trigo e cinco metros de seda são valores de magnitude completamente distinta, e essa diferença quantitativa é a única de que podem ser suscetíveis, considerados como valores de troca. Posto que são valores de troca de distinta magnitude, representam, um mais, outro menos, quantidades mais ou menos grandes daquele trabalho simples, uniforme, geral-abstrato que constitui a substância de valor permutável. A questão é saber como se podem medir essas quantidades. Ou, melhor, trata-se de saber qual o modo de existência quantitativa desse mesmo trabalho, posto que as diferenças de magnitude das mercadorias como valores de troca não são mais que as diferenças de magnitude de trabalho nelas realizado. Da mesma maneira que o tempo é a expressão quantitativa do movimento, o tempo de trabalho é a expressão quantitativa do trabalho. Conhecida sua qualidade, a única diferença de que o trabalho se torna suscetível é a diferença de sua própria duração. Como tempo de trabalho, tem seu padrão nas medidas naturais de tempo: hora, dia, semana etc. O tempo de trabalho é a substância vital do trabalho, indiferente à sua forma, conteúdo, individualidade; é sua expressão viva quantitativa, ao mesmo tempo que sua medida imanente. O tempo de trabalho realizado nos valores de uso das mercadorias é não somente a substância que faz delas valores de troca, e, por conseguinte, mercadorias, mas é também a medida de seu valor determinado. As quantidades correlativas dos diferentes valores de uso, nos quais se realiza idêntico tempo de trabalho, são equivalentes, ou, dito de outro modo: todos os valores de uso são equivalentes nas proporções em que contêm o mesmo tempo de trabalho concreto, realizado. Consideradas como valores de troca, as mercadorias não são mais que medidas determinadas de tempos de trabalho cristalizado.

Para melhor compreender o fato de que o valor de troca está determinado pelo tempo de trabalho, importa estabelecer os seguintes pontos principais: a redução de trabalho a trabalho simples, sem qualidade, por assim dizer; o modo de ser específico pelo qual o trabalho criador de valor de troca, e, por conseguinte, produtor de mercadorias, é trabalho social; e, por fim, a diferença entre o trabalho enquanto produz valores de uso e o trabalho enquanto produz valores de troca.

Para medir os valores de troca das mercadorias mediante o tempo de trabalho a elas incorporado, é necessário que os diferentes trabalhos sejam reduzidos a trabalho não diferenciado, uniforme, simples; em síntese: a trabalho que é idêntico pela qualidade e não se distingue senão pela quantidade.

Essa redução apresenta a aparência de uma abstração; mas é uma abstração que ocorre todos os dias no processo de produção social. A conversão de todas as mercadorias em tempo de trabalho não supõe uma abstração maior, como tampouco é menos real que a [conversão] de todos os corpos orgânicos em ar. Na realidade, o trabalho que assim se mede com o tempo não aparece como trabalho de distintos indivíduos; os diferentes indivíduos que trabalham surgem antes como simples órgãos de trabalho. Ou também poder-se-ia dizer: o trabalho, tal como se manifesta nos valores de troca, é trabalho humano geral. Essa abstração de trabalho humano geral existe no trabalho médio que cada indivíduo médio de uma sociedade dada pode realizar: um gasto produtivo determinado de músculos, nervos, cérebro humano etc. E trabalho simples,[1 3] para cuja realização cada indivíduo médio pode ser adestrado, trabalho esse que deve efetuar, sob uma forma ou outra. O caráter desse trabalho médio difere nos distintos países e em épocas diversas de cultura, mas parece ocorrer em uma sociedade determinada. O trabalho simples constitui, quando muito, a massa mais considerável do conjunto do trabalho na sociedade burguesa, como qualquer um pode verificar consultando as estatísticas. Que A produza ferro durante seis horas e tecidos durante seis horas, e que B produza também ferro durante seis [horas] e tecidos durante seis horas; ou que A produza ferro durante 12 horas e que B produza tecidos durante 12 horas, evidentemente não existe nesses casos mais que um emprego distinto do mesmo tempo de trabalho. Porém, o que ocorrerá com o trabalho complexo, que se eleva acima do nível médio, como trabalho de maior intensidade e de peso específico superior? Esse gênero de trabalho resolve-se em trabalho simples composto, em trabalho simples de potência mais elevada. De tal modo que um dia de trabalho complexo equivale a três dias de trabalho simples. As leis que regulam essa redução não correspondem a esta parte de nosso estudo. Todavia, está claro que essa redução tem lugar, pois, enquanto é valor de troca, o produto do trabalho mais complexo é, em proporção determinada, o equivalente do produto do trabalho médio simples; forma, portanto, equação com um quantum [quantidade latim] determinado desse trabalho simples.

A determinação do valor de troca pelo tempo de trabalho supõe, ademais, que numa mercadoria dada, seja uma tonelada de ferro, por exemplo, realiza-se uma quantidade igual de trabalho, sem que importe que seja trabalho de A ou de B; quer dizer, os diferentes indivíduos gastam um mesmo trabalho para produzir idêntico valor de uso, determinado qualitativa e quantitativamente. Em outros termos: supõe-se que o tempo de trabalho contido em uma mercadoria é o tempo de trabalho necessário para sua produção ou o tempo de trabalho exigido para produzir um novo exemplar da mesma mercadoria nas condições gerais de produção dadas.

Da análise do valor conclui-se que para criar valor de troca é preciso que o trabalho esteja determinado socialmente, que seja trabalho social, não simplesmente social, mas de um modo particular. É um modo específico da socialidade. Primeiramente, a simplicidade não diferenciada do trabalho é a igualdade dos trabalhos individuais que se relacionam uns com os outros como com o trabalho igual, e isso pela redução efetiva de todos os trabalhos a trabalho homogêneo. O trabalho de cada indivíduo, ainda que se manifeste em vários valores de troca, possui esse caráter social de igualdade, e não se manifesta no valor de troca senão à medida que se refere ao trabalho dos demais indivíduos como trabalho idêntico.

Além disso, no valor de troca, o tempo de trabalho do indivíduo isolado aparece diretamente como tempo de trabalho geral, e esse caráter geral de trabalho isolado reveste um caráter social. O tempo de trabalho representado no valor de troca é o tempo de trabalho do indivíduo, mas do indivíduo que não se distingue dos demais indivíduos, enquanto realizam um trabalho igual, de tal maneira que o tempo de trabalho gasto por um em produzir uma mercadoria determinada, é o tempo de trabalho necessário que qualquer outro empregaria em produzir a mesma mercadoria. E o tempo de trabalho do indivíduo, mas não é seu tempo de trabalho, posto que é o tempo de trabalho comum a todos e, portanto, é indiferente que seja o tempo de trabalho de tal ou qual indivíduo. Como tempo de trabalho geral se realiza em forma de um produto geral, de um equivalente geral, de um quantum dado de trabalho materializado, que é indiferente à forma determinada de valor de uso sob a qual representa diretamente o produto de um indivíduo e pode ser convertido à vontade em qualquer outra forma de valor de uso sob a qual é o produto de outro indivíduo. Não é magnitude social, posto que é de tal magnitude geral. Para que o resultado do trabalho individual seja um valor de troca, é preciso que constitua um equivalente geral; é necessário que o tempo de trabalho do indivíduo represente tempo de trabalho geral, ou que o tempo de trabalho geral represente o indivíduo. O efeito é o mesmo que se os diferentes indivíduos houvessem reunido seus tempos de trabalho e representado quantidades distintas do tempo de trabalho à sua comum disposição por valores diversos de troca. O tempo de trabalho do indivíduo é desse modo, em realidade, o tempo de trabalho que a sociedade deve gastar para produzir um valor de uso determinado, isto é, para satisfazer uma necessidade determinada. Mas agora não se trata mais senão da forma específica sob a qual o trabalho adquire um caráter social. Por exemplo, um operário que fia realiza um trabalho dado em cem libras [sistema inglês de pesos e medidas equivalente a 0,453 kg] de fio de linho. Suponha-se que cem metros de tecido, produto do tecelão, representem um quantum idêntico de tempo de trabalho. Já que esses dois produtos representam um mesmo quantum de tempo de trabalho geral e são, portanto, equivalentes de todo valor de uso que contenha igual quantidade de tempo de trabalho, são equivalentes um do outro. Pela simples razão de que o tempo de trabalho do que fia e o tempo de trabalho do que tece representam tempos de trabalho geral e que seus produtos, por conseguinte, representam equivalentes gerais, o trabalho do tecelão e o do fiandeiro realizam neste caso o trabalho de um para o trabalho de outro, isto é, realizam a forma de aparição social de seu trabalho para ambos. Ao contrário, na indústria patriarcal rural, na qual o que fiava e o que tecia viviam sob o mesmo teto, na qual a parte feminina da família fiava e a masculina tecia para as necessidades da família, fio e tecido eram produtos sociais, fiar e tecer eram trabalhos sociais no seio da família. Porém, seu caráter social não consistia no fato de que o fio, equivalente geral, fosse permutável pelo tecido, equivalente geral do mesmo tempo de trabalho geral. Era a organização familial, com sua divisão de trabalho, que determinava o produto do trabalho com seu característico selo social. Ou melhor, consideremos as corveias e os tributos em espécie da Idade Média. O que constitui aqui o laço social são os trabalhos determinados dos indivíduos em sua forma natural, é a particularidade e não a generalidade do trabalho. Ou consideremos, por fim, o trabalho em comum sob sua forma primitiva, tal como o encontramos no umbral da história de todos os povos civilizados.[1 4] Nesse caso, o caráter social do trabalho não se origina claramente do fato de que o trabalho do indivíduo assuma a forma abstrata da generalidade ou de que seu produto revista a forma de um equivalente geral. A comunidade, na qual se subentende a produção, é que impede que o trabalho do indivíduo seja trabalho privado, e seu produto um produto privado, que, ao contrário, faz aparecer o trabalho individual como função de um membro do organismo social. Compreende-se que o trabalho que se realiza no valor de troca é o trabalho do indivíduo isolado. Para que se converta em trabalho social, lhe é preciso adotar a forma de seu oposto imediato, a forma da generalidade abstrata.

Enfim, o que caracteriza o trabalho que cria valor de troca é que as relações sociais das pessoas aparecem, por assim dizer, invertidas, como a relação social das coisas. Já que um valor de uso se relaciona com o outro como um valor de troca, o trabalho de uma pessoa relaciona-se com o de outra como com o trabalho igual e geral. Se é correto dizer, pois, que valor de troca é uma relação entre as pessoas,[1 5] convém ajuntar uma relação oculta sob uma envoltura material. Do mesmo modq que uma libra de ouro e uma libra de ferro, apesar da diferença de suas qualidades físicas e químicas, representam o mesmo quantum de peso, dois valores de uso que contenham o mesmo tempo de trabalho representam idêntico valor de troca. O valor de troca parece ser assim uma determinação dos valores de uso na sociedade, determinação que lhes corresponde por sua qualidade de objetos e graças à qual suprem-se no processo de troca em proporções quantitativas determinadas e formam equivalentes, do mesmo modo que as substâncias químicas simples se combinam em proporções quantitativas determinadas e formam equivalentes químicos. Unicamente o hábito da vida cotidiana pode fazer aparecer como coisa banal e corrente o fato de que uma relação de produção revista a forma de um objeto, de maneira que as relações das pessoas em seu trabalho se manifestem como uma relação em que as coisas entrem em relações entre si e com as pessoas. Na mercadoria, essa confusão é ainda muito simples. Mais ou menos vagamente, todo o mundo suspeita que as relações entre as mercadorias, como valores de troca, são antes uma relação entre as pessoas em sua atividade produtora recíproca. Nas relações de produção mais elevadas, essa aparência de simplicidade desaparece. Todas as ilusões do sistema monetário provêm de que não se vê que o dinheiro representa uma relação de produção social e que a realiza sob a forma de um objeto natural de propriedades determinadas. A mesma ilusão descobre-se entre os economistas que se riem com tanto desdém das ilusões do sistema monetário, enquanto se ocupam das categorias econômicas superiores, o capital, por exemplo. Denunciam-na ao confessar candidamente seu assombro assim que se lhes apresente como uma relação social o que eles já acreditavam ser um objeto palpável, como os inquieta sob a forma de um objeto aquilo que eles mal haviam assinalado como uma relação social.

Não sendo, em realidade, o valor de troca mais que a relação dos trabalhos individuais, considerados iguais e gerais, uns para com os outros, e nada mais que a expressão objetiva de uma forma social específica de trabalho, é uma tautologia afirmar que o trabalho é a única fonte de valor, partindo da riqueza, enquanto esta consiste em valores de troca. É também uma tautologia dizer que a matéria como tal não tem valor de troca,[1 6] já que não contém trabalho e que o valor de troca, como tal, não contém matéria. Assim, pois, quando William Petty diz: "o trabalho é o pai, e a terra a mãe da riqueza", ou quando o bispo Berkeley pergunta: “se os quatro elementos e o trabalho humano que encerram não são a verdadeira fonte da riqueza”;[1 7] ou quando o estadunidense Thomas Cooper expõe, vulgarizando: "tirai de um pão o trabalho que nele se pôs, o trabalho do padeiro, do moleiro, do lavrador etc., e o que fica? Alguns grãos de erva selvagem, impróprios a qualquer uso humano";[1 8] não se trata, em todos esses conceitos de trabalho abstrato, como fonte do valor de troca, senão do trabalho concreto, como fonte das riquezas materiais, em síntese, do trabalho produtor de valores de uso. Suposto o valor de uso da mercadoria, supõe-se também a utilidade particular, o fim determinado do trabalho que absorveu; mas aqui se detém, do ponto de vista da mercadoria, qualquer consideração do trabalho como trabalho útil. O que nos interessa no pão, como valor de uso, são as propriedades alimentícias, e de nenhum modo os trabalhos do lavrador, do moleiro, do padeiro etc. Se graças a algum invento desaparecessem os 19/20 desses trabalhos, o pão prestaria o mesmo serviço que antes. Se caísse do céu já cozido, não perderia por isso nenhum átomo de seu valor de uso. Enquanto o trabalho que cria o valor de troca se realiza na igualdade das mercadorias como equivalentes gerais, o trabalho, que é a atividade produtora tornada própria para um fim, realiza-se na infinita variedade de seus valores de uso. Enquanto o trabalho, criador do valor de troca, é trabalho geral-abstrato e igual, o trabalho criador do valor do uso é trabalho concreto e especial que, no que concerne à forma e à matéria, se decompõe em modos de trabalho infinitamente vários.

Enquanto produz valores de uso, torna-se falso dizer que o trabalho é a fonte única da riqueza por ele produzida, isto é, da riqueza material. Pois, se o dito trabalho é a atividade que adapta a matéria a tal ou qual fim, subentende-se que a matéria lhe é necessária. A proporção entre o trabalho e a matéria é muito distinta nos diferentes valores de uso, mas o valor de uso contém sempre um substractum [essência latim] natural. Atividade útil que busca a apropriação dos produtos da natureza sob uma ou outra forma, o trabalho é a condição natural da existência humana, a condição, independentemente de todas as formas sociais, do intercâmbio da matéria entre o homem e a natureza. Ao contrário, o trabalho que cria valor de troca é uma forma de trabalho especificamente social. O trabalho material do alfaiate, por exemplo, considerado como atividade produtora particular, produz efetivamente o traje, mas não o valor de troca do traje. Produz esse valor não porque seja trabalho de alfaiate, mas sim porque é trabalho geral-abstrato, e este se articula com um conjunto social que o alfaiate não construiu. Assim é que as mulheres produziam o vestido na indústria doméstica da antiguidade, sem produzir o valor de troca do vestido. O legislador Moisés sabia tão bem como Adam Smith,[1 9] o inspetor aduaneiro, que o trabalho é uma fonte de riqueza material.

Consideremos agora algumas proposições resultantes da redução do valor de troca a tempo de trabalho.

Como valor de uso, a mercadoria exerce uma ação causal. O trigo, por exemplo, atua porque é um alimento. Uma máquina supre o trabalho em proporções determinadas. Essa ação da mercadoria, somente por isso é um valor de uso, um objeto de consumo, pode-se chamar seu serviço, serviço que presta como valor de uso . Mas em sua qualidade de valor de troca a mercadoria jamais é encarada senão do ponto de vista do resultado. Não se trata do serviço que presta, mas do serviço[1 10] que lhe foi prestado por ter sido produzida. Desse modo, o valor de troca de uma máquina não é determinado pelo quantum de tempo de trabalho que supre, porém pelo quantum de tempo de trabalho que nela se realiza e que, por conseguinte, se requer para produzir uma nova máquina da mesma espécie.

Assim, pois, se o quantum de trabalho exigido para a produção de mercadorias permanecesse constante, seu valor de troca seria invariável. Todavia, a facilidade e a dificuldade da produção variam sem cessar. Se sua força produtiva aumenta, o trabalho produz o mesmo valor de uso em menos tempo. Se diminui a força produtiva do trabalho, é preciso mais tempo para produzir o mesmo valor de uso. A magnitude de tempo de trabalho contida em uma mercadoria, ou seja, o seu valor de troca, é portanto variável; aumenta ou diminui na razão inversa do aumento ou diminuição da força produtiva de trabalho. A força produtiva de trabalho, que uma indústria manufatureira aplica em um grau de antemão determinado, encontra-se na agricultura e na indústria extrativa condicionada por circunstâncias naturais que não se podem modificar. Um mesmo trabalho dará um rendimento mais ou menos grande de diferentes metais segundo a abundância ou a escassez relativa desses metais na crosta terrestre. Um mesmo trabalho pode, se o tempo for favorável, converter-se em duas fangas de trigo; se for adverso, em uma fanga somente. As condições naturais de escassez ou abundância parecem determinar aqui o valor de troca das mercadorias, porque determinam a força produtiva, ligada às condições naturais, de um trabalho concreto particular.

Vários valores de usos diferentes contêm, em volumes desiguais, o mesmo tempo de trabalho ou o mesmo valor de troca. Quanto menor é o volume de seu valor de uso, comparado com outros valores de uso, sob o qual uma mercadoria contém um quantum determinado de tempo de trabalho, maior é seu valor de troca específico. Se nos dermos conta de que, em épocas de culturas diferentes e distanciadas umas das outras, certos valores de uso formam entre si uma série de valores de troca específicos que conservam, uns em relação aos outros, se não exatamente a mesma relação numérica, pelo menos a relação geral de superioridade e de inferioridade como, por exemplo, o ouro, a prata, o cobre, o ferro, o trigo, o centeio, a cevada, a aveia, poderemos, unicamente, deduzir que o desenvolvimento progressivo das forças produtivas sociais influi de uma maneira uniforme, ou aproximadamente uniforme, sobre o tempo de trabalho que exige a produção dessas diversas mercadorias.

O valor de troca de uma mercadoria não se manifesta em seu próprio valor de uso. Entretanto, como materialização do tempo de trabalho social geral, o valor de uso de uma mercadoria entra em relação de proporcionalidade com os valores de uso de outras mercadorias. Um equivalente é, na realidade, o valor de troca de uma mercadoria expressa no valor de uso de outra mercadoria. Se eu digo que um metro de tecido vale duas libras de café, o valor de troca do tecido está expresso no valor de uso do café, e isso em um quantum determinado desse valor de uso. Dada essa proporção, posso exprimir o valor de cada quantum de tecido em café. E evidente que o valor de troca de uma mercadoria, de tecido, por exemplo, não está esgotado pela proporção na qual uma mercadoria particular, o café, por exemplo, constitui o seu equivalente. O quantum de tempo de trabalho geral representado em um metro de tecido é realizado, simultaneamente, nos mais diversos volumes de valores de uso de todas as demais mercadorias. Dentro da proporção na qual o valor de uso de qualquer outra mercadoria representa um tempo de trabalho de igual magnitude, constitui um equivalente do metro de tecido. O valor de troca dessa mercadoria isolada não se expressa, pois, de um modo esgotador senão nas inumeráveis equações nas quais os valores de uso de todas as demais mercadorias constituem seu equivalente. Unicamente se exprime dessa maneira como equivalente geral na soma de ditas equações ou na totalidade das diferentes proporções em que uma mercadoria é suscetível de troca por qualquer outra mercadoria. A série de equações:

1 metro de tecido = ½ libra de chá

1 metro de tecido = 2 libras de café

1 metro de tecido = 8 libras de pão

1 metro de tecido = 6 metros de algodão

pode ser assim representada:

1 metro de tecido = ⅛ g de libra de chá + ½ libra de café + 2 libras de pão + 1,50 metro de algodão.

Se tivéssemos à vista a soma completa das equações nas quais se encontra esgotada a expressão do valor de um metro de tecido poderíamos representar seu valor de troca sob a forma de uma série. Em realidade, essa série é interminável, já que o círculo das mercadorias nunca está definitivamente fechado, mas vai se estendendo sempre. Com efeito, se uma mercadoria mede assim seu valor de troca pelos valores de uso de todas as demais mercadorias, os valores de troca das mesmas medem-se inversamente pelo valor de uso daquela mercadoria isolada que se mede por elas.[1 11] Se o valor de troca de um metro de tecido se expressa em ½ libra de chá, em duas libras de café, em seis metros de algodão e em oito libras de pão, deduz-se que café, chá, algodão, pão etc. são iguais entre si na proporção em que são iguais a um terceiro objeto, o tecido; este lhes serve, pois, de medida comum de seus valores de troca. Cada mercadoria como tempo de trabalho geral realizado, quer dizer, como quantum de tempo de trabalho geral, expressa seu valor de troca sucessivamente em quantidades determinadas de valores de uso de todas as demais mercadorias, e os valores de troca das demais mercadorias medem-se inversamente pelo valor de uso daquela mercadoria exclusiva. Mas, a título de valor de troca, cada mercadoria é também a mercadoria exclusiva que serve de medida comum dos valores de troca de todas as demais mercadorias, a qual, de outro lado, não é mais que uma das numerosas mercadorias em cuja série completa qualquer outra mercadoria representa diretamente seu valor de troca.

A magnitude de valor de uma mercadoria não é afetada porque existem ao seu lado poucas ou muitas mercadorias de outra classe. Mas a magnitude da série de equações nas quais se realiza seu valor de troca depende da variedade mais ou menos grande das demais mercadorias. A série de equações nas quais se representa, por exemplo, o valor do café expressa a esfera de suas possibilidades de troca, os limites dentro dos quais atua como valor de troca. Ao valor de troca de uma mercadoria, como materialização do tempo de trabalho social geral, corresponde a expressão de sua equivalência em valores de uso infinitamente variados.

Vimos que o valor de troca de uma mercadoria varia com a quantidade de tempo de trabalho a ela incorporado. O valor de troca realizado, isto é, expresso em valores de uso de outras mercadorias, deve depender igualmente das proporções nas quais varia o tempo de trabalho empregado na produção de todas as demais mercadorias. Se o tempo de trabalho necessário para produzir uma fanga de trigo continuasse sendo o mesmo, enquanto o tempo para produzir as demais mercadorias dobrasse, o valor de troca da fanga de trigo, expresso em seus equivalentes, desceria à metade. O resultado seria praticamente o mesmo se o tempo necessário para produzir a fanga de trigo baixasse à metade, e o tempo de trabalho necessário para a produção das demais mercadorias não tivesse variado. O valor das mercadorias está determinado pela proporção em que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho. Para ver de que variações é suscetível essa proporção, tomemos duas mercadorias A e B.

  1. suponhamos que o tempo de trabalho exigido para a produção de B permaneça sempre o mesmo. Nesse caso, o valor de troca de A, expresso em B, baixa ou sobe diretamente segundo diminua ou aumente o tempo de trabalho necessário para a produção de A;
  2. suponhamos que o tempo de trabalho exigido pela produção de A fique o mesmo. O valor de troca de A expresso em B baixa ou sobe na razão inversa à alta ou baixa de tempo de trabalho exigido para produzir B;
  3. que o tempo de trabalho necessário para a produção de A e de B diminua ou aumente em igual proporção. A expressão da equivalência de A em B continua então a mesma. Se, por qualquer circunstância, a força produtiva de todos os trabalhos diminuísse em uma medida igual, de maneira que todas as mercadorias exigissem na mesma proporção mais tempo de trabalho para sua produção, o valor de todas as mercadorias aumentaria; a expressão real de seu valor de troca não variaria e a riqueza da sociedade diminuiria, pois seria preciso mais tempo de trabalho para criar a mesma massa de valores de uso;
  4. o tempo de trabalho necessário para a produção de A e de B pode aumentar ou diminuir para ambos, mas de um modo desigual; o tempo de trabalho exigido para A pode aumentar, enquanto que o necessário para B diminua, ou vice-versa. Todos esses casos podem simplesmente reduzir-se ao seguinte: o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria não varia enquanto que o tempo que é necessário para produzir as demais aumenta ou diminui.

O valor de troca de cada mercadoria exprime-se no valor de uso de outra qualquer, seja integralmente, seja por frações desse valor de uso. Como valor de troca, cada mercadoria é tão divisível como o tempo de trabalho que representa. A equivalência das mercadorias é tão independente da divisibilidade física de seus valores de uso como indiferente é a soma das mercadorias à variação de formas que sofrem os valores de uso das mesmas em sua refundição em uma nova mercadoria.

Até aqui, consideramos a mercadoria do duplo ponto de vista de valor de uso e de valor de troca, unilateralmente cada vez. Assim, como mercadoria, é imediatamente unidade de valor de uso e de valor de troca; ao mesmo tempo, só é mercadoria em relação às demais mercadorias. A relação real de umas mercadorias com outras é seu processo de troca. O processo de troca é um processo social em que intervêm indivíduos independentes uns dos outros, fazendo-o unicamente por sua qualidade de possuidores de mercadorias; existem uns para os outros porque suas mercadorias existem também; e assim é que não aparecem senão como os agentes conscientes do processo de troca.

A mercadoria é valor de uso, seja trigo, tecido, diamante, máquina etc.; ao mesmo tempo, como mercadoria, não é valor de uso. Se fosse valor de uso para seu possuidor, isto é, um meio imediato de satisfação de suas próprias necessidades, não seria mercadoria. Para seu possuidor é, ao contrário, não-valor de uso, ou seja, simples suporte material do valor de troca, ou simples meio de troca; e sendo o suporte ativo do valor de troca, o valor de uso chega a ser meio de troca.[1 12] Para seu possuidor não é valor de uso, porque é valor de troca. Como valor de uso, é preciso que chegue a sê-lo, em primeiro lugar para os demais. Não sendo valor de uso para seu próprio possuidor, o é para os possuidores das demais mercadorias. Caso contrário, seu trabalho seria inútil e o produto deste não seria uma mercadoria. Doutra parte, é necessário que chegue a ser valor de uso por si mesma, pois seus meios de subsistência existem fora dela nos valores de uso das outras mercadorias. Para se converter cm valor de uso, é preciso que a mercadoria se encontre diante da necessidade especial que pode satisfazer. Os valores de uso das mercadorias chegam a ser, portanto, tais porque mudam universalmente de posição, passando das mãos que constituem meio de troca àquelas em que são objeto de utilidade. Graças unicamente a essa alienação universal das mercadorias, o trabalho que contém converte-se em trabalho útil. Nesse processo em que as mercadorias se relacionam umas com as outras na qualidade de valores de uso, não adquirem uma nova fixidez de forma econômica. Antes, desaparece a forma determinada que as caracteriza como tais mercadorias. O pão, ao passar das mãos do padeiro às do consumidor, não modifica o seu modo de ser como pão. É o inverso que se dá; é o consumidor, o primeiro que se relaciona com o pão, como a um valor de uso, como a esse alimento determinado, enquanto que na mão do padeiro era suporte de uma relação econômica, um objeto sensível: suprassensível. A única transformação que sofrem as mercadorias em sua conversão em valores de uso é, pois, a obliteração de sua existência formal no que eram não-valores de uso para seus possuidores e valores de uso para os não-possuidores. Para se tornarem valores de uso é preciso que as mercadorias sejam universalmente alienáveis, que entrem no processo de troca; mas sua forma de ser na troca é sua forma de valor. Para ter realidade como valores de uso, é indispensável, pois, que tenham realidade como valores de troca.

Se do ponto de vista do valor de uso a mercadoria isolada parecia um objeto independente, como valor de troca, ao contrário, desde o primeiro momento, era considerada em relação com as demais mercadorias. Contudo, essa relação não era mais que teórica, existindo apenas no pensamento. Realiza-se apenas nos processos de troca. De outro lado, a mercadoria é indubitavelmente um valor de troca, pois se encontra nela incorporada uma quantidade determinada de tempo de trabalho, porque dita mercadoria é tempo de trabalho materializado. Todavia, tal como é imediatamente, não é mais que tempo de trabalho individual materializado, que possui um conteúdo particular; não é tempo de trabalho geral. Em primeiro lugar, não pode ser materialização de tempo de trabalho geral, já que representa tempo de trabalho aplicado a um fim útil determinado, porque representa um valor de uso. Esta era a condição material em que se admitia como social, geral, o tempo de trabalho contido nas mercadorias. Se a mercadoria unicamente pode se converter em valor de uso realizando-se como valor de troca, não pode, doutro lado, realizar-se como valor de troca, a não ser sob a condição de que jamais cesse, em sua alienação, de ser valor de uso. Uma mercadoria não pode ser alienada a título de valor de uso senão em benefício daquele para quem constitui uma utilidade, isto é, o objeto de uma necessidade determinada. Ainda assim, não pode ser alienada senão por outra mercadoria, ou, se nos colocamos do lado do possuidor da outra mercadoria, este tampouco pode alienar, isto é, realizar a sua, senão pondo-a em contato com a necessidade especial cujo objeto constitui. Na alienação universal das mercadorias, na qualidade de valores de uso, elas relacionam-se umas com as outras, em virtude de sua diferença material, como objetos particulares que por suas propriedades específicas satisfazem necessidades também particulares. Mas como simples valores de uso, são objetos sem interesse uns para os outros e sem relação entre si; os valores de uso não podem trocar-se senão sendo relacionados com necessidades particulares. Não são permutáveis senão quando são equivalentes e não são equivalentes senão quando representam quantidades iguais de tempo de trabalho materializado, de tal maneira que qualquer consideração das qualidades naturais que possuem os valores de uso e, partindo da relação das mercadorias com as necessidades particulares, fica eliminada. Como valor de troca, uma mercadoria se manifesta antes pelo que substitui como equivalente a uma quantidade determinada de qualquer outra mercadoria, sem que importe que seja ou não seja um valor de uso para o possuidor da outra mercadoria. Mas não chega a ser mercadoria para este, salvo no momento em que é para ele valor de uso, e não se converte em valor de troca para seu próprio possuidor senão no instante em que é mercadoria para o outro. A mesma relação deve ser, pois, a das mercadorias que constituem magnitudes de igual essência e não diferem mais que quantitativamente; devem pôr-se em equação como matéria de tempo de trabalho geral ao mesmo tempo em sua relação como objetos qualitativamente distintos, como valores de uso especiais para necessidades também especiais; em síntese: uma relação que os distinga como valores reais de uso. Porém, esse modo de pô-las em equação e essa diferenciação se excluem reciprocamente e chega-se, assim, não somente a um círculo vicioso de problemas, no qual a solução de um pressupõe a de outro, mas também a todo um conjunto de postulados contraditórios, já que a realização de uma condição está diretamente ligada à realização de sua oposta.

O processo de troca das mercadorias deve ser, em conjunto, o desdobramento e a evolução dessas contradições, que, entretanto, não podem manifestar-se no processo desse modo simples. Vimos, unicamente, que as mercadorias se relacionavam umas com as outras como valores de uso, isto é, que apareciam como tais valores no interior do processo de troca. Ao contrário, o valor de troca, tal como o temos considerado até agora, não era mais que uma abstração que fizemos, ou, se se preferir, uma abstração feita pelo possuidor individual das mercadorias; sob a forma de valor de uso, [ele] possui as mercadorias em seu celeiro, sob a forma de valor de troca, [ele] as tem em sua consciência. Com efeito, nos limites do processo de troca, as mercadorias devem ser umas para as outras não somente valores de uso, mas também valores de troca, e esse modo de existência deve assumir a forma de sua relação recíproca própria. A dificuldade que, em primeiro lugar, nos detinha era que na qualidade de valor de troca, de trabalho materializado, tornava-se necessário que a mercadoria fosse previamente alienada como valor de uso, que tivesse encontrado quem a adquirisse, enquanto que, ao contrário, sua alienação sob a forma de valor de uso supõe sua existência na forma de valor de troca. Mas suponhamos que essa dificuldade se encontre resolvida; que a mercadoria se tenha despojado de seu valor de uso particular e por alienação deste tenha cumprido a condição material de ser trabalho útil social em vez de trabalho particular feito para si mesmo. Em sua qualidade de valor de troca é preciso, então, que no processo de troca se converta em equivalente geral, tempo de trabalho geral materializado para as demais mercadorias e que adquira, assim, não a ação limitada de um valor de uso particular, mas a faculdade de representar-se imediatamente em todos os valores de uso considerados como seus equivalentes. Todavia, cada mercadoria é a mercadoria que, ao alienar seu valor de uso particular, deve manifestar-se como a materialização direta do tempo de trabalho geral. Doutro lado, no processo de troca, unicamente confrontam-se as mercadorias particulares, os trabalhos dos indivíduos privados incorporados a valores de uso particulares. O próprio tempo de trabalho geral é uma abstração que, como tal, não existe para a mercadoria.

Consideremos o sistema de equações nos quais o valor de troca de uma mercadoria encontra sua expressão real. Por exemplo:

1 metro de tecido = 2 libras de café

1 metro de tecido = ½ libra de chá

1 metro de tecido = 8 libras de pão etc.

Essas equações enunciam somente que um tempo de trabalho social, geral, da mesma magnitude, se concretiza em um metro de tecido, duas libras de café, meia libra de chá etc.

Todavia, na realidade os trabalhos individuais representados nesses valores particulares de uso não se convertem em trabalho geral, e, por conseguinte, em trabalho social, senão porque se trocam realmente entre eles, em proporção à duração do tempo de trabalho que contêm. O tempo de trabalho social não existe nessas mercadorias, por assim dizer, mais que em estado latente, manifestando-se apenas em seu processo de troca. O ponto de partida não é trabalho individual considerado como trabalho comum, mas, ao contrário, parte-se de trabalhos particulares de indivíduos privados, trabalhos que não revestem o caráter de trabalho social geral no processo de troca senão quando se despojam de seu caráter primitivo. O trabalho social geral não é, pois, uma pressuposição preparada, mas um resultado que se obtém. E daqui surge uma nova dificuldade: que as mercadorias, de um lado, devem entrar no processo de troca como tempo de trabalho geral balizado, e que, doutro lado, a realização do tempo de trabalho dos indivíduos como tempos de trabalho geral não é mais que o produto do processo de troca.

Cada mercadoria deve, por alienação de seu valor de uso, ou seja, de seu modo primitivo de existência, adquirir sua forma de existência adequada de valor de troca. É necessário que a mercadoria duplique sua existência no processo de troca. Doutro lado, sua segunda forma de existência, em forma de valor de troca, não pode ser senão outra mercadoria, pois no processo de troca só há mercadorias que se confrontam. Como representar imediatamente uma mercadoria em forma de tempo de trabalho geral materializado, ou, o que é a mesma coisa, como imprimir imediatamente o caráter de generalidade ao tempo de trabalho individual, materializado, numa mercadoria particular? A expressão concreta do valor de troca de uma mercadoria, isto é, de qualquer mercadoria como equivalente geral, representa-se por meio de uma interminável série de equações, tais como:

1 metro de tecido = 2 libras de café

1 metro de tecido = ½ libra de chá

1 metro de tecido = 8 libras de pão

1 metro de tecido = 6 metros de algodão

1 metro de tecido = etc.

Essa representação era teórica, porque a mercadoria foi unicamente pensada como uma quantidade determinada de tempo de trabalho geral realizado. O funcionamento de uma mercadoria particular como equivalente geral converte-se de uma simples abstração em resultado social do próprio processo de troca por mera inversão da série de equações antes expressa. Assim, por exemplo:

2 libras de café = 1 metro de tecido

½ libra de chá = 1 metro de tecido

8 libras de pão = 1 metro de tecido

6 metros de algodão = 1 metro de tecido

Enquanto o café, o chá, o pão, o algodão, resumidamente, enquanto todas as mercadorias expressam em tecido o tempo de trabalho que contêm, o valor de troca do tecido desenvolvese inversamente em todas as demais mercadorias como seus equivalentes, e o tempo de trabalho nele mesmo materializado converte-se imediatamente em tempo de trabalho geral, que fica representado igualmente em distintos volumes de todas as demais mercadorias. Nesse caso, o tecido torna-se equivalente geral pela ação universal que sobre ele exercem todas as demais mercadorias. Como valor de troca, cada mercadoria convertia-se em medida dos valores de todas as mercadorias. Aqui, inversamente, porque todas as demais mercadorias medem seu valor de troca por uma mercadoria particular, a mercadoria excluída toma a forma de aparição adequada do valor de troca, sua forma de aparição como equivalente geral. Ao contrário, a infinita série, ou as inumeráveis equações que representavam o valor de troca de cada mercadoria, reduz-se a uma só equação com dois termos somente. Duas libras de café igual a um metro de tecido é agora a expressão que esgota o valor de troca do café, já que nessa expressão aparece imediatamente como equivalente de uma quantidade determinada de qualquer outra mercadoria. Dentro dos limites do processo de troca, as mercadorias existem agora, pois, umas para as outras, ou se manifestam umas diante das outras como valores de troca em forma de tecido. O fato de que todas as mercadorias consideradas como valores de troca se relacionem umas com as outras como quantidades distintas de tempo de trabalho geral realizado apresenta-se agora desta forma: como valores de troca, as mercadorias não representam mais que quantidades diferentes do mesmo objeto, de tecido. Por sua vez, o tempo de trabalho geral assume a forma de uma coisa particular, de uma mercadoria à parte e distinta de todas as demais mercadorias. Ao mesmo tempo, a equação em que a mercadoria representa a mercadoria como valor de troca, por exemplo, duas libras de café igual a um metro de tecido, é uma identidade que fica por realizar. Unicamente por sua alienação a título de valor de uso, a qual só se efetua quando se confirma no processo de troca como objeto de uma necessidade, a mercadoria transforma-se realmente de sua forma de café em sua forma de tecido, toma o aspecto de equivalente geral e converte-se realmente em valor de troca de todas as mercadorias. Inversamente, porque todas as mercadorias, graças à sua alienação na qualidade de valores de uso se transformam em tecido, este torna-se a forma metamorfoseada de todas as demais mercadorias, e precisamente porque estas se metamorfosearam nele é que vem a ser a realização imediata do tempo de trabalho geral, isto é, produto da alienação geral, eliminação dos trabalhos individuais. Se as mercadorias duplicam assim sua existência para serem valores de troca umas para as outras, a mercadoria excluída na qualidade de equivalente universal duplica seu valor de uso. Além de seu valor de uso especial, como mercadoria particular que é, adquire um valor de uso geral. Seu próprio valor de uso é uma forma determinada, isto é, nasce do papel específico que desempenha no processo de troca, em consequência da ação universal que as demais mercadorias exercem sobre aquela. O valor de uso de cada mercadoria, já que é objeto de uma necessidade particular, tem um valor distinto nas diferentes mãos; é um valor distinto na mão de quem o aliena como na de quem o adquire. A mercadoria, a título de equivalente geral, é agora objeto de uma necessidade geral ocasionada pelo próprio processo de troca, e possui para cada um a mesma utilidade, que é a de ser portador do valor de troca, meio de troca universal. Assim fica resolvida numa só mercadoria a contradição que encerra como tal: ser, sob a forma de valor de uso particular, ao mesmo tempo equivalente geral e, em consequência, valor de uso para cada um, valor de uso geral. Enquanto agora todas as demais mercadorias representam seu valor de troca como uma equação ideal, que fica por estabelecer, com a mercadoria exclusiva, o valor de uso dessa mercadoria exclusiva, ainda que real, aparece no próprio processo como puramente formal, não se realizando senão por s u a transformação em valor de uso real. Em sua origem, a mercadoria aparecia como uma mercadoria em geral, como um tempo d e trabalho geral materializado num valor de uso particular. No processo de troca, todas as mercadorias se referem à mercadoria exclusiva como à mercadoria em geral, como à mercadoria, como a um tempo de trabalho geral concretizado num valor de uso particular. Como mercadorias particulares, se conduzem antiteticamente em relação a uma mercadoria particular considerada como a mercadoria geral. Referindo-se reciprocamente a seus trabalhos como ao trabalho social geral, os que trocam [os possuidores de mercadorias] parecem referir-se às suas mercadorias como a valores de troca; a relação das mercadorias umas com as outras como valores de troca assume, nesse processo de troca, a forma de uma relação geral com uma mercadoria particular como a expressão adequada de seu valor; o que inversamente parece ser a relação especifica dessa mercadoria particular com todas as demais mercadorias, e, portanto, o caráter determinado, e, por assim dizer, naturalmente social de uma coisa. A mercadoria particular que, desse modo, representa a forma adequada do valor de todas as mercadorias, ou o valor de troca das mercadorias, que aparece como uma mercadoria particular, exclusiva, é o dinheiro. O dinheiro é uma cristalização do valor de troca das mercadorias, produzido por elas no próprio processo de troca. Enquanto, pois, as mercadorias, dentro dos limites do processo de troca, se convertem em valores de uso uns para os outros, despojando-se de toda fixidez de forma e relacionando-se uns c o m os outros sob sua forma material imediata, lhes é necessário, para aparecerem umas às outras como valores de troca, adquirir unia nova forma determinada, evoluir para chegar a constituir o dinheiro. O dinheiro não é símbolo tanto quanto não o é o valor de uso sob a forma de uma mercadoria. O que caracteriza todas as formas sociais do trabalho criador do valor de troca é a inversão, a mistificação prosaica e real e não imaginária que supõe o fato de que uma relação de produção social apareça como algo separado dos indivíduos e de que as relações determinadas, nas quais esses indivíduos entram no processo de produção de sua vida social, apareçam como propriedades específicas de um objeto. Mais do que na mercadoria, é principalmente no dinheiro que esse fato chama a atenção.

As propriedades físicas necessárias da mercadoria particular, na qual a forma-dinheiro deve cristalizar-se, do mesmo modo que estão determinadas diretamente pela natureza do valor de troca, são a divisibilidade, a homogeneidade, a uniformidade de todos os espécimes dessa mercadoria. Como matéria do tempo de trabalho geral, ela deve ser matéria homogênea e capaz de representar diferenças puramente quantitativas. A outra propriedade necessária é a durabilidade de seu valor de uso, que deve subsistir durante o processo de troca. Os metais preciosos possuem essa qualidade em grau superior. Não sendo o dinheiro o produto da reflexão ou da convenção, mas constituindo-se automaticamente no processo de troca, diversas mercadorias, mais ou menos adequadas, preencheram, sucessivamente, a função de dinheiro. A necessidade sentida, em certo grau do desenvolvimento do processo de troca, de distribuir, opostamente às mercadorias, as funções de valores de troca e de valores de uso, de maneira que uma mercadoria seja meio de troca, enquanto que outra se aliena a título de valor de uso, implica que, em toda parte, as mercadorias que possuem utilidade mais geral desempenhem acidentalmente e em primeiro lugar o papel de dinheiro. Se não satisfazem necessidades imediatas, o fato de serem a parte constitutiva materialmente mais importante da riqueza assegura-lhes um caráter mais geral que aquele que os demais valores de uso possuem.

A troca direta, forma primitiva do processo de troca, representa antes a transformação inicial dos valores de uso em mercadorias que a das mercadorias em dinheiro. O valor de troca não assume uma forma independente, mas ainda está diretamente )içado ao valor de uso. Isso se manifesta de dois modos. A própria produção está toda ela organizada em função do valor de uso e não do valor de troca; unicamente quando os valores de uso ultrapassam a medida em que são necessários para o consumo, cessam de ser valores de uso e se convertem em meios de troca: em mercadorias. Doutro lado, não se convertem em mercadorias senão nos limites do valor de uso imediato, ainda que distribuídos opostamente, de modo que as mercadorias que precisam ser trocadas entre seus respectivos possuidores devem ser valores de uso para ambos, pois cada mercadoria é um valor de uso para quem não a possui. De fato, o processo de troca das mercadorias não aparece originariamente no seio das comunidades primitivas,[1 13] senão onde estas terminam: em suas fronteiras, nos raros pontos de contato com outras comunidades. Ali começa o comércio por troca, e de lá se estende ao interior da comunidade, sobre a qual atua como um elemento de dissolução. Os valores particulares de uso que, na troca entre comunidades distintas, se convertem em mercadorias, como os escravos, o gado, os metais, constituem amiúde o primeiro dinheiro no interior da comunidade. Vimos que o valor de troca de uma mercadoria se manifesta de uma maneira tanto mais completa quanto mais ampla é a série dos equivalentes, ou quanto maior é a esfera de troca da mercadoria. A gradual extensão da troca, o desenvolvimento das trocas e a multiplicação das mercadorias trocadas tornam necessária a evolução da mercadoria até o valor de troca, incitam à constituição do dinheiro e, por conseguinte, exercem uma ação destrutiva sobre a troca direta. Os economistas têm o hábito de fazer derivar o dinheiro das dificuldades exteriores, com as quais se choca a troca desenvolvida; esquecem, todavia, que essas dificuldades nascem do desenvolvimento do valor de troca, surgem do trabalho social considerado como trabalho geral.

Por exemplo, as mercadorias sob a forma de valores de uso não são divisíveis à vontade, como o devem ser sob a forma de valores de troca. Ou seja, que a mercadoria de A pode ser valor de uso para B, enquanto que a de B não é valor de uso para A. Ou, também, que os possuidores de mercadorias podem necessitar de mercadorias indivisíveis que têm que trocar reciprocamente em proporções distintas de valor. Em outros termos: com o pretexto de estudar a troca simples, os economistas consideram certos aspectos da contradição que a mercadoria encerra como unidade imediata de valor de uso e de valor de troca. Doutro lado, atêm-se logicamente à troca como a forma adequada do processo de troca das mercadorias, e que apenas apresentaria certos inconvenientes técnicos; para evitá-los, o dinheiro seria um expediente habilmente idealizado. Partindo dessa consideração, de todo superficial, um engenhoso economista inglês pôde afirmar, com razão, que o dinheiro não é senão um instrumento material, tal como um navio ou uma máquina a vapor, mas não representa uma relação de produção social e, portanto, não constitui uma categoria econômica. Seria, pois, um abuso tratar do dinheiro na Economia Política, já que nada de comum tem com a tecnologia.[1 14] No mundo do comércio, há, implícita, uma divisão desenvolvida do trabalho, ou, antes, manifesta-se diretamente na multiplicidade dos valores de uso, que se confrontam sob a forma de mercadorias especiais, e que realizam outros tantos gêneros diversos de trabalho. A divisão do trabalho, como totalidade de todos os modos produtivos especiais de atividade, é o aspecto geral do trabalho social da parte material, considerado como trabalho criador de valores de uso. Porém, como tah d o ponto de vista das mercadorias, e nos limites do processo de troca, não existe senão em seu resultado, na especialização das próprias mercadorias.

O intercâmbio de mercadorias é o processo no qual a troca social da matéria, isto é, a troca dos produtos particulares dos indivíduos privados, cria ao mesmo tempo relações sociais determinadas de produção nas quais os indivíduos entram nessa circulação da matéria. As relações evolutivas de umas mercadorias c o m outras se cristalizam em determinações distintas do equivalente çeral e, desse modo, o processo de troca é ao mesmo tempo o processo de formação do dinheiro. O conjunto desse processo, que se manifesta como o movimento de diferentes processos, é a circulação.

Resenha histórica da análise da mercadoria

A análise da mercadoria como trabalho, sob uma forma dúplice, d e valor de uso em trabalho concreto ou atividade produtiva aplicada a um fim, de valor de troca em tempo de trabalho social igual, é o resultado crítico definitivo das investigações, realizadas durante mais de um século e meio, pela Economia Política clássica, q u e começa na Inglaterra com William Petty, na França com Boisguillebert[1 15] e termina com Ricardo na Inglaterra e Sismondi n a França. Petty resume o valor de uso em trabalho sem dissimular que a natureza condiciona sua força criadora. Concebe de imediato o trabalho real em seu conjunto social, como divisão do trabalho.[1 16] Para ele, como para seu compatriota Hobbes, essa concepção da origem da riqueza material não permanece mais ou menos estéril, mas o conduz à Aritmética política, primeira forma sob a qual a Economia Política se destaca como ciência independente.

Entretanto, toma o valor de troca pelo que este parece ser no processo de troca das mercadorias pelo dinheiro, e o dinheiro mesmo por uma mercadoria existente: o ouro e a prata. Imbuído pelas noções do sistema monetário, declara que o gênero particular de trabalho concreto que procura o ouro e a prata é trabalho que cria o valor da troca. Considera que, efetivamente, o trabalho burguês não tem que produzir valor de uso imediato, mas uma mercadoria, um valor de uso capaz, por sua alienação, de manifestar-se no processo de troca sob a forma de ouro e prata, ou seja, dinheiro, valor de troca, trabalho geral materializado. Seu exemplo, doutro lado, é uma prova concludente de que se pode, ao mesmo tempo, reconhecer o trabalho como fonte da riqueza material e desconhecer a forma social particular sob a qual o trabalho é origem do valor de troca.

Boisguillebert resume, por sua parte, se não de modo consciente pelo menos de fato, o valor de troca de uma mercadoria em tempo de trabalho, o que ele chama “o justo valor”, pela exata proporção em que o tempo de trabalho dos indivíduos se encontre repartido entre os distintos ramos da indústria e represente a livre competição como processo social que cria essa justa proporção. Ao mesmo tempo e em contraste com Petty, combate o dinheiro com fanatismo, porque, com sua intervenção, turva o equilíbrio natural ou a harmonia de troca das mercadorias, e, espécie de Moloch fantástico, pede em sacrifício toda a riqueza natural. Contudo, se de um lado essa polêmica contra o dinheiro se relaciona com circunstâncias históricas determinadas, uma vez que Boisguillebert faz guerra à paixão do ouro cegamente destruidora da corte de um Luiz XIV,[1 17] de seus arrendatários gerais e de sua nobreza, enquanto que Petty exalta na paixão do ouro o impulso enérgico que leva um povo a desenvolver a indústria e conquistar o mercado universal, manifesta-se aqui, não obstante, o profundo antagonismo de princípios que se torna a encontrar como um contraste permanente entre a economia verdadeiramente inglesa e a economia verdadeiramente francesa.[1 18] Boisguillebert, com efeito, não tem presente senão o conteúdo material da riqueza; o valor de uso, o desfrute[1 19] a forma burguesa de trabalho é para ele a forma social natural em que o trabalho individual alcança esse fim. Quando o caráter específico da riqueza burguesa se lhe revela no dinheiro, acredita então na ingerência de elementos usurpadores estranhos e indigna-se contra o trabalho burguês sob uma de suas formas, louvando-o, em compensação, como utopista, em outras.[1 20] Boisguillebert nos oferece a prova de que se pode considerar o tempo de trabalho como medida de valor das mercadorias, e, todavia, confundir o trabalho realizado em valor de troca dessas mercadorias e medido pelo tempo, com a atividade natural imediata dos indivíduos.

A primeira análise consciente e de uma clareza quase banal do valor de troca é devida a um homem do Novo Mundo, onde as relações burguesas de produção, importadas ao mesmo tempo que seus agentes, cresciam rapidamente em um terreno que compensava com uma superabundância de húmus sua falta de tradição histórica. Esse homem é Benjamin Franklin, primeiro trabalho de sua juventude, escrito em 1719 e que no editado em 1821, formulava a lei fundamental da Economia Política moderna.[1 21] Afirma a necessidade de encontrar uma medida dos valores distinta dos metais preciosos. Essa medida seria o trabalho.

Por meio do trabalho pode-se medir o valor do dinheiro tão bem como o de qualquer outra coisa. Suponhamos, por exemplo, que um homem se ocupe em produzir trigo, enquanto que outro extrai e purifica prata. Ao fim do ano ou de qualquer outro período de tempo determinado, o produto total de trigo e de prata são os preços naturais de um e de outro, e se o produto de um é de 20 fangas e o de outro de 20 onças, uma onça de prata vale o trabalho empregado na produção de uma fanga de trigo. Todavia, suponhamos que, pelo descobrimento de minas mais próximas, mais acessíveis e de maior rendimento, possa um homem produzir agora 40 onças de prata com a mesma facilidade com que produzia as 20 onças de antes e com o mesmo trabalho que era necessário para produzir as 20 fangas de trigo; nessas condições, duas onças de prata não valeriam mais que o mesmo trabalho empregado na produção de uma fanga de trigo, e essa fanga que antes valia uma onça valerá agora duas, caeteris paribus [Apenas isso muda, as demais coisas ficam invariáveis — latim]. De modo que a riqueza de um país deve ser estimada tendo em conta a quantidade de trabalho que seus habitantes podem comprar.[1 22]

Como os economistas, Franklin considera o trabalho unilateralmente como medida dos valores. A transformação dos produtos reais em valores de troca subentende-se, e trata-se, pois, unicamente de encontrar uma medida para a magnitude do valor.

O comércio, diz Franklin, como não é, em geral, outra coisa senão a troca de trabalho por trabalho, pode-se avaliar o valor das coisas mais exatamente pelo trabalho.[1 23]

Se aqui se substituir a palavra trabalho pela palavra trabalho real, descobre-se imediatamente que há confusão de trabalho sob uma forma com trabalho sob outra. Pelo fato de que o comércio, por exemplo, consista na troca de trabalho de sapateiro, de mineiro, de tecelão, de pintor etc., o valor das botas fica avaliado mais exatamente em trabalho de pintura? Franklin pensava, ao contrário, que o valor das botas, dos produtos das minas, da fiação, da pintura etc. é determinando pelo trabalho abstrato, que não possui qualidade especial e pode-se medir, portanto, por meio da simples quantidade.[1 24] Mas Franklin não desenvolve o trabalho contido no valor de troca como trabalho geral-abstrato, como trabalho social que procede da alienação universal de trabalhos individuais, e, forçosamente equivocado, vê no dinheiro a forma de existência imediata desse trabalho alienado. Por isso, o dinheiro e o trabalho criador do valor de troca não têm para ele conexão interna, pois o dinheiro é, antes, um instrumento introduzido de fora na troca por comodidade técnica.[1 25] A análise do valor feita por Franklin não influiu de uma maneira imediata sobre a marcha geral da ciência, porque ele tratava de questões especiais da Economia Política unicamente por motivos práticos determinados.

A antítese do trabalho útil real e do trabalho criador de valor de troca exercitou o engenho da Europa durante o século 18 sob a forma do seguinte problema: que gênero particular de trabalho real constitui a origem da riqueza social?

Subentendia-se que todo trabalho que se converte em valor de uso ou que disponibiliza produtos não cria imediatamente a riqueza somente por esse fato. Para os fisiocratas, como para os seus adversários, c o n t u d o , a questão palpitante não consiste em saber que trabalho cria valor, mas sim que o trabalho cria a mais-valia. Tratam, pois, o problema s o b uma forma complicada antes de o haverem resolvido em sua forma elementar. Do mesmo modo, a marcha histórica vai sempre por caminhos irregulares, por avanços e recuos, relativamente a seus verdadeiros pontos de partida. Diferentemente dos demais arquitetos, a ciência não constrói unicamente castelos no ar, mas edifica um certo número de andares habitáveis do edifício antes de haver colocado a primeira pedra. Sem nos determos mais nos fisiocratas, e deixando de lado toda uma série de economistas italianos, que, com resultados mais ou menos felizes, pressentiram a análise exata de mercadoria,[1 26] fixemo-nos no primeiro bretão que tratou do sistema completo da economia burguesa: em Sir James Steuart.[1 27] Segundo esse autor, as categorias abstratas da Economia Política encontram-se ainda em vias de separação de seu conteúdo material e, por isso, aparecem flutuantes, ocorrendo o mesmo com as de valor de troca. Em certo lugar, determina o valor real pelo tempo de trabalho ("o que um operário pode produzir num dia"), mas, em compensação, a seu lado figuram confusamente o salário e a matéria-prima. Em outro lugar, debate-se, mais penosamente ainda, contra o conteúdo material de seu tema. A matéria natural contida em uma mercadoria, a prata, por exemplo, em um açafate de prata, chama-a seu valor intrínseco (intrinsic worth), enquanto que designa o tempo de trabalho que contém, seu valor útil (useful value).

A primeira diz é algo que é real em si; o valor de uso, ao contrário, deve ser avaliado tendo em conta o trabalho que custou para produzi-lo. O trabalho aplicado à modificação da matéria representa uma porção de tempo de um homem etc.

O que distingue Steuart de seus predecessores e dos que o seguem é que ele diferencia rigorosamente o trabalho especificamente social, que se manifesta no valor de troca, e o trabalho real, que tem por objeto os valores de uso.

“Ao trabalho diz que por sua alienação cria um equivalente geral (universal equivalente), chama-o indústria.”

Não somente distingue o trabalho sob a forma de indústria de trabalho concreto, mas também das demais formas sociais de trabalho. Para ele, a indústria é a forma burguesa de trabalho em contraste com suas formas antigas e medievais. O que lhe interessa especialmente é o contraste entre o trabalho burguês e o trabalho feudal; este último, havia-o observado em sua decadência, tanto na própria Escócia quanto em suas viagens pelo continente. Naturalmente Steuart sabia muito bem que nas épocas pré-burguesas também o produto havia revestido a forma de mercadoria, e, esta, a forma de dinheiro; mas demonstra detalhadamente que a mercadoria, como forma fundamental elementar da riqueza, e a alienação, como forma de apropriação, não pertencem senão ao período de produção burguesa, e que o caráter do trabalho que cria o valor de troca é, por conseguinte, especificamente burguês.[1 28]

Depois de terem sido, sucessivamente, declaradas como verdadeiras fontes da riqueza as formas particulares de trabalho concreto, tais como a agricultura, a indústria, a navegação, o comércio etc., Adam Smith proclamou o trabalho em geral, e, além disso, sob seu aspecto social total de divisão de trabalho, como a única fonte de riqueza material ou dos valores de uso. Enquanto desatende completamente ao elemento natural, este o persegue pela esfera da riqueza puramente social de valor de troca. Sem dúvida, Adam Smith determina o valor da mercadoria pelo tempo de trabalho que contém, mas para relegar em seguida a realidade dessa determinação do valor aos tempos pré-adamitas. Em outros termos: o que lhe parece certo do ponto de vista da simples mercadoria torna-se-lhe obscuro quando esta é substituída pelas formas superiores e mais complicadas do capital, do trabalho assalariado, da renda fundiária. Expressa isso dizendo: o valor das mercadorias era medido pelo trabalho contido nas mesmas no paradise lost (paraíso perdido) da burguesia, onde os homens não se confrontavam ainda como capitalistas, operários assalariados, proprietários rurais, granjeiros, usurários etc., mas unicamente como simples produtores e cambistas de mercadorias. Confunde sem cessar a determinação do valor da mercadoria pelo tempo de trabalho que contém, com a determinação de seus valores pelo valor do trabalho; vacila ao elaborar os detalhes e toma a equação objetiva que o processo social estabelece violentamente entre os trabalhos distintos pela igualdade de direito subjetivo dos trabalhos individuais.[1 29] Trata de efetuar a passagem do trabalho real ao trabalho que cria o valor de troca, isto é, ao trabalho burguês em sua forma fundamental, por meio da divisão do trabalho. Todavia, se é certo que a troca privada supóe a divisão do trabalho, parece falso dizer que a divisão do trabalho supõe a troca privada. Entre os peruanos, por exemplo, o trabalho encontrava-se extraordinariamente dividido, apesar de que não se efetuava troca privada, troca de produtos em forma de mercadorias.

Contrariamente a Adam Smith, David Ricardo apresenta, com clareza, a determinação do valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e demonstra que essa lei rege até as relações de produção burguesa, que são as que na aparência a contradizem mais. As investigações de Ricardo limitam-se exclusivamente à magnitude de valor e, no que concerne a esta, ele pressente, pelo menos, que a realização da lei depende de determinadas condições históricas. Assim, diz que a determinação da magnitude do valor pelo tempo de trabalho não é válida senão para aquelas mercadorias que “podem ser aumentadas voluntariamente pela indústria, e cuja produção é regida por uma competição ilimitada”.[1 30] O que significa, em realidade, unicamente que a lei do valor supõe, para seu completo desenvolvimento, a sociedade da grande produção industrial e da competição livre, isto é, a sociedade burguesa moderna. Além disso, Ricardo considera a forma burguesa de trabalho como a forma natural e eterna do trabalho social. Segundo esse autor, o pescador e o caçador primitivos trocavam continuamente pescados e caça como possuidores de mercadorias, proporcionalmente ao tempo de trabalho realizado nesses valores de troca. A essa altura, comete um anacronismo, o qual consiste no seguinte: para avaliar seus instrumentos de trabalho, o pescador e o caçador primitivos consultam as tábuas de anuidades em curso em 1817 na Bolsa de Londres. Os "Paralelogramas de M. Owen" parecem ser, para ele, a única forma da sociedade, além da forma burguesa. Ainda que envolvido nesse horizonte burguês, Ricardo faz a dissecação da economia burguesa que é muito mais distinta em suas profundezas do que parece na superfície com tal agudeza teórica, que Lord Broughan disse dele: “O sr. Ricardo parece que caiu de outro planeta”. Sismondi, em uma polêmica direta com Ricardo, insiste no caráter especificamente social do trabalho criador do valor de troca, 60 ao mesmo tempo que observa que o "caráter de nosso programa econômico" é reduzir a magnitude do valor ao tempo de trabalho necessário, "à relação entre a necessidade de toda a sociedade e a quantidade de trabalho suficiente para satisfazer essa necessidade". 61 Sismondi já não se encontra embaraçado pela noção de Boisguillebert, de que o trabalho criador do valor de troca está falsificado pelo dinheiro, mas, como Boisguillebert denunciava o dinheiro, ele denuncia o grande capital industrial. Se, com Ricardo, a Economia Política tira sem temor suas últimas consequências e fica desse modo acabada, Sismondi dá remate a esse acabamento no que ele representa as dúvidas que a Economia Política tem de si mesma.

Como Ricardo, ao dar sua forma acabada à Economia, foi o que mais claramente formulou e desenvolveu a determinação do valor de troca pelo tempo de trabalho, é natural que sobre ele se tenha concentrado a polêmica dos economistas. Despojando-a de sua forma, amiúde inepta, 62 pode-se resumir essa polêmica nos seguintes pontos:

  1. o próprio trabalho tem um valor de troca, e trabalhos diferentes têm distintos valores de troca. Fazer do valor de troca a medida de si mesmo é um círculo vicioso, pois o valor de troca que serve para medir necessitará, por sua vez, de uma medida. Essa objeção resolve-se no problema: dado o tempo de trabalho como medida imanente do valor de troca, desenvolver o salário operário sobre essa base;
  2. se o valor de troca de um produto é igual ao tempo que contém, o valor de troca de um dia de trabalho é igual a seu produto. Ou o salário de trabalho deve ser igual ao produto do trabalho.[1 31] Mas o caso é que sucede o contrário. Ergo [logo, portanto latim] essa objeção resolve-se no problema: como é que a produção, sobre a base do valor de troca criado pelo único tempo de trabalho, conduz ao resultado de que o valor de troca do trabalho é menor que o valor de troca de seu produto? Resolveremos esse problema no estudo do capital;
  3. os preços de venda das mercadorias baixam ou sobem de acordo com seu valor de troca conforme a relação variável da oferta e da procura. E precisamente por isso que o valor de troca das mercadorias é determinado pela relação entre a oferta e a procura e não pelo tempo de trabalho nelas contido. Essa conclusão singular não faz mais que renovar a pergunta: como é que sobre a base do valor de troca se desenvolve um preço de venda distinto de dito valor? Ou, mais exatamente: como é que a lei do valor de troca não se realiza senão em prejuízo próprio? Esse problema está resolvido na teoria da concorrência;
  4. a última contradição, a mais surpreendente na aparência, quando não é exposta, como é corrente, em forma de exemplos raros, é a seguinte: se o valor de troca não é outra coisa que o tempo de trabalho contido em uma mercadoria como podem possuir valor de troca as mercadorias que não contêm trabalho? Ou, em outros termos: de onde provém o valor de troca das simples forças da natureza? Esse problema acha-se resolvido na teoria da renda fundiária.

Notas

  1. Aristóteles, De Republica, livro I, cap. 9 (edição Bekkeri: Oxonii, 1837 - obra, vol X. X, pp. 13 e seg.):

    "toda propriedade tem dois usos, que lhe pertencem essencialmente, sem pertencer-lhe, porém, do mesmo modo: um é específico da coisa, outro não o é. Um sapato pode servir ao mesmo tempo como calçado ou para realizar uma troca ou venda. Pelo menos, pode-se obter deles esse duplo uso. O que troca um sapato de que outro necessita, por dinheiro ou por alimento, indubitavelmente emprega esse sapato como tal, mas, não obstante, não o emprega com sua utilidade característica, porque não foi feito para a troca. Outro tanto poderei dizer de todas as demais propriedades".

    (A tradução desta passagem foi feita sobre a tradução francesa de J. Barthélemy Saint-Hilaire, livro I, cap. III, Politique d*Aristote - N.T.).
  2. Por isso, os compiladores alemães tratam con amore do valor de uso fixado sob o nome de "bem". Por exemplo, L. Stein, System der Staatswissenschalten, vol. I, capítulo sobre os "Bens". Ideias sensatas podem-se encontrar nos Anwmungen zui Waarenkunde
  3. Os economistas ingleses dizem unskilled labour (trabalho não qualificado).
  4. Nesses últimos tempos, espalhou-se o preconceito ridículo de que a forma primitiva da propriedade comunal é uma forma especificamente eslava e, mesmo, exclusivamente russa. Contudo, é uma forma de propriedade encontrada entre os romanos, os germanos, os celtas e, ainda hoje, pode ser encontrado um tipo padrão, com diferentes amostras, embora em fragmentos e em destroços, entre os hindus. Um estudo aprofundado das formas de propriedade não dividida na Ásia e, sobretudo, na índia mostraria como das distintas formas da propriedade comunal primitiva surgiram formas diversas de dissolução. Assim, por exemplo, os distintos tipos originais da propriedade privada em Roma e entre os germanos podem ser derivados das diferentes formas da propriedade comunal da índia.
  5. “A riqueza é uma relação entre duas pessoas.” Galiani: Della Moneta, p. 221, tomo III da compilação de Custodi, Scrittori classici italiani di economia politica, Parte Moderna, Milão, 1803.
  6. "Em seu estado natural (...) a matéria está sempre destituída de valor". Mac Culloch, A discourse on the rise, progress etc., of political economy, 2ª ed., Edimburgo,1825, p. 48. Vê-se como até um Mac Culloch se eleva acima do fetichismo dos "pensadores" alemães que declaram que a matéria e meia dezena de disparates são os elementos do valor. Por exemplo, L. Stein, op. cit., tomo I, p. 110.
  7. Berkeley, The querist, Londres, 1750, “Whether the four elements, and man's labour therein, be not the true source of wealth?”
  8. Thomas Cooper: Lectures on the elements of political economy. Londres, 1831. Columbia, 1820, p.99
  9. F. List, que nunca pôde compreender a diferença entre o trabalho que ajuda a criar uma utilidade, um valor de uso, e o trabalho que é uma forma social determinada da riqueza e cria o valor de troca - é verdade que sua inteligência interessada e prática não está feita para compreender isso - , não vê nos economistas ingleses modernos senão plagiários de Moisés, o Egípcio.
  10. Compreende-se que "serviço" pôde prestar a categoria "serviço" a economistas da classe de J. B. Say e F. Bastiat, cuja raciocinadora inteligência, como observou muito bem Malthus, faz constantemente abstração da forma determinada específica das relações econômicas.
  11. "É um fato peculiar das medidas estar em tais relações com os objetos medidos que a coisa medida se torna medida da coisa que mede". Montanari. Della moneta, p. 41, compilação de Custodi, vol. III, Parte antica.
  12. Aristóteles concebe o valor de troca sob essa Forma determinada (veja-se a passagem citada, no começo deste capítulo).
  13. Aristóteles observa o mesmo na família privada considerada como comunidade, primitiva. Mas a forma primitiva da família é a família da tribo, em cuja análise histórica somente se desenvolve a família privada.
  14. “O dinheiro não é, na realidade, senão o instrumento para efetuar a compra e a venda (mas, que entendem por comprar e vender?), e o estudo do dinheiro constitui parte da ciência política como o poderia ser o dos navios ou o das máquinas a vapor, ou de qualquer outro instrumento que sirva para facilitar a produção e a distribuição da riqueza.” T. Hodgskin: Popular political economy etc., Londres, 1827, pp. 178-179.
  15. Um estudo comparativo das obras e dos temperamentos de Petty e Boisguillebert, além da luz que jorraria sobre a contradição social da Inglaterra e da França até o fim do século 17 e começo do 18, seria a exposição genética do contraste nacional entre a Economia Política inglesa e a francesa. O mesmo contraste repete-se definitivamente entre Ricardo e Sismondi.
  16. Petty considerou a divisão de trabalho como força produtiva também e o fez com um plano mais grandioso que Adam Smith (veja-se: An essay concerning the multiplication of mankind etc., 3 a ed., 1686, pp. 35-36). Mostra as vantagens da divisão do trabalho para a produção, não somente com o exemplo da fabricação de um relógio, como Adam Smith o fez mais tarde com a de uma agulha; considera também uma cidade e um país inteiro do ponto de vista das grandes fábricas. O Spectator de 16 de novembro de 1711 refere-se a esta "ilustração do admirável sir William Petty". É pois um erro que Mac Culloch presuma que o Spectator confundia Petty com um escritor 40 anos mais jovem (veja-se Mac Culloch: The literature of Political Economy, a classified catalogue, Londres, 1845, p. 105). Petty sabe que é o fundador de uma nova ciência. Diz de seu método que não "é rotineiro". Em lugar de compor uma série de palavras, comparativas e superlativas e argumentos especulativos, empreendeu a tarefa de falar "em termos de número, peso e medida", de servir-se unicamente de argumentos nascidos da experiência material e de não considerar senão somente as causas que "têm fundamentos visíveis na natureza". Deixa para outros o estudo das causas que dependem das "atitudes mutáveis, opiniões, interesses e paixões dos homens particulares" (Political arithmetic etc., Londres, 1699, prólogo). Sua genial ousadia mostra-se em sua proposição de transportar todos os habitantes e bens móveis da Irlanda e Escócia ao resto da Grã-Bretanha. Economizar-se-ia desse modo tempo de trabalho e "o rei e seus súditos seriam mais ricos e mais fortes" (Political arithmetic, cap. IV). É também no capítulo de sua Aritmética política, no qual demonstra, numa época em que a Holanda desempenhava um papel preponderante como nação comercial e a França parecia no caminho de ser a primeira potência comercial, que a Inglaterra estava destinada a conquistar o mercado mundial:

    “Que os súditos do rei da Inglaterra têm um estoque suficiente e próprio para intensificar o comércio do mundo inteiro” (cap. X); “que obstáculos à grandeza da Inglaterra são contingentes e removíveis”,

    Um humour original impregna toda sua obra. Assim, mostra que não foi por coisas de bruxaria que a Holanda, então o país modelo para os economistas ingleses, como a Inglaterra o é agora para os economistas do continente, conquistou o mercado do mundo “sem este espírito e este juízo angélicos que alguns atribuem aos holandeses” (pp. 175-176). Defende a liberdade de consciência que é a condição do comércio, “porque os pobres são laboriosos e consideram o trabalho e a indústria como um dever para com Deus enquanto se lhes permita crer que se possuem menos riqueza têm em compensação mais engenho e inteligência para as coisas divinas, que consideram como pertencentes exclusivamente a eles.”

    O comércio “não está, pois, ligado a um gênero qualquer de religião; tem sempre se mantido ao lado da parte heterodoxa, do conjunto”. Preconiza contribuições públicas em favor dos ladrões, porque é melhor para o público gravar-se a si mesmo em proveito dos ladrões que deixar-se gravar por eles. Ao contrário, opôs-se aos impostos, que transferem a riqueza das pessoas industriosas aos que “não fazem mais que comer, beber, cantar, jogar, dançar e fazer metafísica.”

    As obras de Petty são raras nas livrarias e existem apenas dispersas em edições antigas, e de má qualidade, coisa tanto mais estranha quanto William Petty é não somente o pai da Economia Política inglesa, mas também o antepassado de Henry Petty, aliás marquês de Lansdowne, o Nestor dos Whigs ingleses. E verdade que a família Lansdowne não saberia publicar uma edição completa das obras de Petty sem precedê-las de uma biografia, e aqui se enquadra, como na maior parte das origens das grandes famílias Whigs, a conhecida frase: “the less said of them the better”, quanto menos se diga deles, melhor.

    O cirurgião do exército, audaz pensador, porém substancialmente frívolo como homem, tão disposto à rapina na Irlanda sob a égide de Cromwell como decidido a arrastar-se para obter de Carlos II o título de barão, indispensável na pilhagem, é um retrato de antepassado que parece pouco conveniente à exposição pública. Além disso, Petty procura demonstrar, na maior parte dos escritos que publicou, que a Inglaterra havia chegado a seu apogeu sob Carlos II, opinião heterodoxa para os exploradores hereditários da Glorious Revolution.

  17. Opostamente à “arte negra das finanças” da época, Boisguillebert diz: “A ciência das finanças não é mais que o conhecimento profundo dos interesses da agricultura e do comércio” Le détail de la France, 1697. Edição Eugène Daire, Economiste financière du 18 siècle, Paris, 1843, vol. I, p. 241.
  18. Não na economia romana, pois para os italianos, nas duas escolas, napolitana e milanesa, renovam a oposição entre a economia inglesa e a francesa, enquanto que os espanhóis da época anterior, ou bem são simples mercantilistas, e mercantilistas modificados, como Ustáriz, ou bem como Jovellanos (vejam-se suas Obras, Barcelona, 1839 - 1840), sustém, com Adam Smith, o “justo meio”.
  19. “A verdadeira riqueza... desfrute completo, não somente das necessidades da vida, mas de todo o supérfluo e de tudo que possa agradar a sensualidade” (Boisguillebert, sur la nature de la richesse Dissertation etc., p. 403). Se Petty era um aventureiro frívolo, saqueador e sem caráter, Boisguillebert, apesar de intendente de Luiz XIV, defende as classes oprimidas com tanto valor quanto inteligência.
  20. O socialismo francês sob a forma proudhoniana sofre da mesma enfermidade nacional hereditária.
  21. B. Franklin: The Works of etc., ed. I. Sparks, Vol. II, Boston, 1836. A modest inquiry into the nature and necessity of a paper currency
  22. “Thus the riches of a country are to be valued by the quantity of labour its inhabitants are able to purchasse”, p. 265.
  23. “Trade in general being nothing else but the exchange of labour for labour, the value of all things is, as I said before, most justly measured by labour” (p. 267).
  24. “Remarks and facts relative to the American paper money”, 1764.
  25. Veja-se “Papers on American politics. Remarks and facts relative to the American paper money”, 1764, op. cit.
  26. Galiani, Della moneta, vol. III; Scritori classici italiani di Economia Política, ed. Por Custodi. “A fadiga, diz, é a única que dá valor às coisas” (p. 74). Designar o trabalho com a palavra “fadiga” caracteriza o meridional.
  27. A obra de Steuart, An inquiry into the principles of political economy being an essay on the science of domestic policy in free nations, apareceu, pela primeira vez, em Londres, em dois volumes, in 4°, em 1767, dez anos antes que Wealth of nations, de Adam Smith. Faço a citação da edição de Dublin, de 1770.
  28. Considera a forma patriarcal da agricultura, que se aplica diretamente à produção dos valores de uso para o possuidor do solo, como um “abuso”, não em Esparta e em Roma, nem sequer em Atenas, mas nos países industriais do século 18. “Essa agricultura abusiva não é comércio, mas um meio direto de subsistência”. Do mesmo modo que a agricultura burguesa limpa o país de bocas supérfluas, a indústria burguesa limpa a fábrica de mãos supérfluas.
  29. Diz Adam Smith: “Pode-se dizer que quantidades iguais de trabalho tem em todo tempo e lugar um valor igual para o trabalhador. Em seu estado normal de força, atividade e preparação e com o grau médio de habilidade que pode possuir, é sempre preciso que se de a mesma porção de seu repouso, de sua liberdade e de sua felicidade. Qualquer que seja quantidade de mercadorias que obtenha em recompensa de seu trabalho, o preço que paga será sempre o mesmo. Esse preço pode, com efeito, comprar uma quantidade maior ou menor dessas mercadorias, mas o que varia é o seu valor e não o do trabalho com que ^e compram. Sendo, pois, o trabalho o único que não varia nunca em seu próprio valor é o preço real das mercadorias.”
  30. David Ricardo, On the principles of PoliticaI Economy and taxation, 3ª ed., Londres, 1821, p. 3.
  31. Essa objeção feita a Ricardo pelos economistas burgueses foi renovada mais tarde pelos socialistas. Suposta a correção teórica da fórmula, censurou-se a prática de contradizer a teoria e se convidou a sociedade burguesa a tirar praticamente a pretendida consequência de seu princípio teórico. Pelo menos desse modo os socialistas ingleses tergiversaram a fórmula do valor de troca contra a Economia Política. Estava reservado a Proudhon não somente proclamar o princípio da sociedade nova, mas até fazer-se passar pelo inventor da fórmula na qual Ricardo resumiu o resultado total da Economia clássica inglesa. Demonstrou-se que até a interpretação utopista da fórmula de Ricardo caíra no esquecimento quando M. Proudhon a “descobriu”, do outro lado do canal da Mancha (veja-se meu livro: Miséria da filosofia, Paris, 1847, parágrafo sobre o valor constituído).