Ensaio:O populismo e o idealismo

Da ProleWiki, a enciclopédia proletária
Revisão de 07h10min de 14 de agosto de 2022 por Cmrd deltaV (discussão | contribs) (Adicionei o texto escrito por mim)
(dif) ← Edição anterior | Revisão atual (dif) | Versão posterior → (dif)

Fundamentação téorica da análise

A partir do pensamento marxista podemos interpretar a história segundo uma concepção dialética que nos concederá a percepção encara a reincidência das investidas reacionárias pelo prisma materialista. Sobre essa disposição, Marx se debruçou no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, o que rendeu, para além da famosa citação, também uma percepção histórica dos fenômenos políticos de inegável elegância

As ressurreições de mortos protagonizadas por aquelas revoluções serviram, portanto, para glorificar as novas lutas e não para parodiar as antigas, para exaltar na fantasia as missões recebidas e não para esquivar-se de cumpri-las na realidade, para redescobrir o espírito da revolução e não para fazer o seu fantasma rondar outra vez. (MARX, )

Em adição, tal pensamento se mostra historicamente bastante assertivo por seu caráter radical perante a interpretação do mundo, sujeitando-a as condições de produção vigentes em determinado momento histórico.

[...] o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto - de sua estrutura e dinâmica - tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador. A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. (NETTO, 2011)

Antes de tudo, o exame materialista é um esforço consciente para evitar tornar-se uma proposição que vise a este viés farsante apontado por Marx enquanto uma realidade histórica no 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

“O idealismo considera o espírito (a consciência, os conceitos, o sujeito) como a fonte de tudo o que existe no mundo, e a matéria (a natureza e a sociedade, o objeto) como secundária e subordinada.” (ZEDONG, 2019).

É, antes de tudo, por não tratar como ponto de partida os “espíritos”, mas a própria realidade material, que a ciência marxista tem logrado análises bem sucedidas durante sua história de desenvolvimento. Assim, desconectar uma crítica do recrudescimento do reacionarismo populista mundo afora da infraestrutura material sob a qual a maior parte das sociedades está fundada na atualidade não nos trará senão uma percepção parcial da amplitude deste fenômeno.

Havendo, portanto, estabelecido o substrato teórico sob a qual minhas reflexões terão respaldo,buscarei no decorrer deste ensaio explicar o populismo de direita como uma resposta ambígua às contradições da social-democracia populista de uma esquerda conciliatória, tendo como objetivo final da minha exposição a dissociação dos conceitos de poder popular e populista e as suas implicações para a democracia.

Populismo de Direita

A questão do populismo apresenta contradições na sua própria definição, desgastada e esvaziada pelo uso cotidiano e desregrado, e que traz a tona um juízo de moral que conota uma expressão classista preconizada pelos meios de comunicação de massa.

Na linguagem jornalística e do mainstream da Ciência Política de hoje, populismo é um rótulo genérico que identifica qualquer liderança ou discurso que seja considerado demagógico e que se afaste do consenso liberal. Os dois aspectos, aliás, são complementares, já que tudo o que se afasta deste consenso é considerado demagógico a priori. A ideia de populismo é útil, portanto, para construir a imagem de um centro virtuoso e igualar seus adversários à esquerda e a à direita. (MIGUEL, 2020)

Compreendo que esta percepção corrente no mainstream é dotada do idealismo que previamente critiquei, ao conceber um centro equilibrado, neutro, virtuoso, em contraponto às demais propostas que devem ser sumariamente demonizadas por destoar do neoliberalismo, o viés da classe beneficiária desta doutrina econômica torna-se cristalino, afinal, desde a década de setenta já é um estribilho na política que “There’s no alternative” (não há alternativa), frase dita pela 1a ministra britânica conservadora Margareth Thatcher. Entretanto, alternativas existem e devem ser valoradas com rigor metodológico, deste modo adotarei como base a seguinte definição:

O principal responsável pela démarche foi o falecido Ernesto Laclau, que o vê como a invocação de um povo indeterminado e vago, tornado sujeito coletivo da luta contra algum “outro” construído discursivamente. Para Laclau, essa característica do populismo deve ser entendida como resposta a uma realidade social que é, ela própria, marcada por vagueza e indeterminação. (LACLAU apud MIGUEL, 2020)

A partir desta definição do Ernesto Laclau busco pensar a deflagração do populismo nos cargos públicos eletivos na democracia burguesa e a implicação da dominância de classe neste fato. “Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma "ordem" que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes.” (LÊNIN, 2011). Assim, o choque perante a esta realidade material constitui a matéria da minha análise tanto do populismo de direita como de esquerda.

Em uma frase curta, o populismo de direita é a expressão radicalizada da classe dominante na voz da classe dominada. Esta corrente resguarda a sua faceta problemática no desvio da atenção do povo aos fatores que realmente importam na política e nas decisões que visem ao aprofundamento da democracia e a instalação do poder popular para vender um discurso demagógico e essencialmente idealista. Comparado aos intentos do populismo de esquerda, o de direita se mostra mais naturalmente alinhado com os intentos da classe dominante, como previamente disse, se consolidando como uma espécie de cão de guarda da burguesia nas suas expressões mais violentas como o fascismo e o nazismo, o lastro garantidor do status-quo capitalista.

O populismo de direita, portanto, se vende ao povo somente pelas aparências e pela retórica, o verdadeiro compromisso desta corrente é com a classe dominante. Entretanto, este fato não isenta o populismo de direita de suas contradições, tal como a relação com as classes que demonizam no seio do aparato estatal, no caso brasileiro o “centrão”, o establishment.

Por mais promíscua e contraditória seja a relação que estes populistas travem com os grupos que juraram guerra, por se tratar do auge do idealismo o núcleo duro das massas cooptadas não se abalam na sua fé ao mito salvador. Tal como no caso do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, apesar de descumprir seus próprios princípios expostos na campanha eleitoral de 2018 como o diferencial do candidato perante aos demais, ainda conseguiu chegar nas eleições de 2022 ocupando o segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.

Neste sentido, o idealismo elevado ao seu ponto apoteótico afirma as suas raízes, que também são as do neoliberalismo na forma superestrutural, de forma descarada e orgulhosa nas correntes populistas de direita, constituindo a base de suas reivindicações. São exemplos dessas raízes a religiosidade cristã, os costumes, a tradição, a família tradicional, a propriedade privada, entre mil e um outros chavões repetidos ad nauseam por estes grupos. Sendo, entretanto, uma base apoiada, apesar de não expressa, direta e altivamente, pelos ideólogos neoliberais, o populismo de direita não faz senão a propaganda das premissas capitalistas para a classe que mais sofre com este modo de produção.

Esta propaganda não é demasiada distinta dos poderes ideológicos superestruturais que o capital se vale na democracia burguesa sem populismo, baseando-se essencialmente no destoamento da autopercepção de classe do indivíduo e na sua inclusão indireta por razões culturais, tradicionais e morais, na vanguarda da defesa do capitalismo. Ademais, tal retórica discursiva negativa concede a possibilidade daqueles que se valem dela não necessitarem de um programa objetivo e concreto para mobilizar as massas, sendo o esvaziamento e abstracionismo tônicas do discurso populista de direita.

Afinal, o que todas essas particularidades e modus operandi nos permite inferir do populismo de direita? Para tal resposta, assumirei a concepção mainstream de populismo que critiquei no início desta seção por um momento, uma vez que esta denota o cerne da discussão: um populismo de direita que se vale e se aproxima muitas vezes da prática liberal corrente diz muito menos sobre o populismo do que nos tem a oferecer de análise sobre o liberalismo tido como “equilibrado”, “neutro” e “virtuoso”. Quando o populismo de direita tende ao suposto conclamado “centro” simbolizado pelo liberalismo e este o recusa somente discursivamente, há de se concluir que o verdadeiro polo de atração não é da direita para o centro, mas do centro para a direita. Em outras palavras, não há neutralidade alguma no liberalismo preconizado como virtuoso e equilibrado.

Deste modo, o que viabiliza a ascensão vitoriosa do populismo de direita no status-quo liberal é a proximidade consequente do substrato idealista que compõe uma construção ideológica comum, um núcleo duro, ora amenizado, ora radicalizado, mas sempre presente.

Populismo de Esquerda

Enquanto o populismo de direita apresenta tais idiossincrasias, o populismo de esquerda apresenta uma faceta especialmente contraditória. Tendo, também, como alicerce discursivo um exame idealista da conjuntura política, que leva consequentemente a uma fé nas instituições burguesas, a prática dos líderes do populismo de esquerda, apesar de soarem populares, não age senão como uma pavimentação para uma investida reacionária contra o governo constituído. Isto ocorre haja vista o domínio discursivo do idealismo pela ideologia dominante, derivada dos ideólogos iluministas burgueses do século XVIII, que quando apropriada pelas correntes progressistas sempre tendem a uma degeneração à direita dos movimentos que, visando o sucesso de suas pautas, abdicam daquelas que comprometam a manutenção do status-quo.

O idealismo, no processo de seu desenvolvimento histórico, representa a ideologia das classes exploradoras e serve a propósitos reacionários. O materialismo, por outro lado, é a concepção do mundo da classe revolucionária; em uma sociedade de classes, surge e se desenvolve no meio de incessante luta contra a filosofia reacionária do idealismo. Por conseguinte, a história da luta entre o idealismo e o materialismo em filosofia reflete a luta de interesses entre a classe reacionária e a classe revolucionária... Uma tendência filosófica dada é em última instância uma manifestação em um aspecto particular da política da classe social a que pertencem esses filósofos. (ZEDONG, 2019)

Em primeiro lugar, um resultado desta percepção política infiltrada no pensamento de esquerda desde seu estabelecimento foi a pulverização das causas e a desconexão das opressões de seu caráter classista, esvaziando-se num populismo idealista. Apesar de muitas análises da natureza dos conflitos individualizados constarem de uma dimensão materialista histórica dialética, o esvaziamento das pautas se resulta desta dinâmica devido a falta de uma compreensão a nível prático das contradições dialéticas presentes nos conflitos pelos quais se luta. Dentro das contradições da sociedade de classes sob o capital não há resposta satisfatória para nenhum dos conflitos, seja LGBTQIA+, feminismo, movimento antirracista, pois estes conflitos estão imbuídos de uma faceta classista, como previamente já explanado.

O problema principal, segundo me parece, é a falta de materialidade das categorias. [...] O povo de Mouffe, “significante vazio”, não remete a nenhuma relação de dominação, logo a relação entre a democracia e o combate às formas de dominação presentes na sociedade não tem como se estabelecer. (MIGUEL, 2020)

Aliás, não há forma de construir um programa de esquerda que não seja populista fora do materialismo histórico dialético, uma vez que a constituição de uma crítica aos valores e premissas do pensamento liberal burguês deve minar o sustentáculo que as estabelecem, ou seja, deslegitimar o ponto de partida da análise ser intrinsecamente idealista. Ademais, historicamente, todas as tentativas pregressas de esquerda idealista, invariavelmente, ou foram solapadas ou se degeneraram a direita, tendo como exemplo, respectivamente, os socialistas utópicos do século XIX, representados por pensadores como Fourier e Saint-Simon e a social-democracia reformista que se apresenta hoje no Brasil através da candidatura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva ao pleito presidencial de 2022 com sua base aliada que consta com o seu histórico opositor Geraldo Alckimin.

Tal impossibilidade se explica pelo fato da conciliação de classes, meio institucional tradicional pelo qual se concretiza a governabilidade de grupos de esquerda, não ser nada além de uma submissão de classes velada, pois toda a pretensa emancipação conclamada pelos setores populistas estão constantemente ameaçados pelo condicionamento ao juízo conjectural e infraestrutural da burguesia, que é a classe dominante do aparato estatal e inimiga frontal das pautas sociais. “É curioso que as instituições representativas estejam no coração do caminho proposto para a nova esquerda no momento mesmo em que, graças ao poder cada vez mais incontrolado do capital, elas se mostram mais esvaziadas de poder.” (MIGUEL, 2020). Assim, a classe dominada não garante pelos próprios meios a sua suposta emancipação, pois se for viável e mais benéfico à classe dominante o apoio aos grupos de direita populista, assim ela fará e tem sido bem sucedida, pondo em cheque todas as conquistas sociais alcançadas. Essa é a raiz das contradições do populismo de esquerda.

Conclusão

A partir destas breves reflexões acerca do tema do “Populismo e Democracia”, tendo em vista que essa suposta democracia que vivemos se mostra naturalmente pendente a um apoio ao populismo de direita quando confrontado com os avanços sociais, podemos tirar algumas conclusões:

  1. A democracia liberal burguesa tem caráter classista e excludente devido a infraestrutura sobre a qual ela é ensejada.
  2. Sendo a radicalização ideológica da direita populista apenas a expressão descarada das bases idealistas pelas quais se funda também o liberalismo hegemônico, a ridicularização da primeira por parte da segunda tem objetivo unicamente alienante, visando através das massas a manutenção da dominação classista.
  3. A ilusão da esquerda populista é deletéria para os próprios interesses, constituindo uma falha estratégica que fortalece a sua antípoda populista

Tal como sintetizado historicamente pela tradição marxista, hoje mais do que nunca a conclusão central que podemos chegar é que dentro de uma sociedade de classes a democracia não passa de uma ilusão.

A existência de contradições de classes (e não apenas de distinções entre grupos sociais) é um aspecto limitante da possibilidade da democracia plena. O que permitiu e permite a democracia “natural” dos povos ancestrais e seus remanescentes que mantiveram sociedades comunais foi exatamente a inexistência de camadas sociais com interesses contraditórios, o que possibilita que todos os membros da comunidade sejam, automaticamente, partícipes das decisões. (ABDALLA, 2017)

Destarte, a democracia liberal burguesa nunca negou o populismo. Pelo contrário, sempre se valeu destes artifícios como modo de manutenção do status-quo superestrutural e infraestrutural, pois ambas manifestações do populismo tem em comum o vício de desviar a atenção das massas ao que de fato é problemático na sociedade e que, se fosse acusado, oneraria o status-quo. Em suma, na intenção de ser um movimento de ruptura, os populismos fortalecem o establishment. Esta é a raiz central das contradições do populismo.