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Da ProleWiki, a enciclopédia proletária
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=== Os novos defensores da liberdade de crítica ===
=== Os novos defensores da liberdade de crítica ===
É esta palavra de ordem (“liberdade de crítica”) que a Rabótcheie Dielo<ref group="1">Em russo, ''A causa operária''</ref> nº 10, órgão da “União dos Sociais-Democratas Russos” no estrangeiro, formulou solenemente nesses últimos tempos, não como postulado teórico, mas como reivindicação política, como resposta à questão:
<blockquote>“É possível a união das organizações sociais-democratas funcionando no estrangeiro?” — “Para uma união sólida, a liberdadede crítica é indispensável” (p. 36).</blockquote>
Daqui, duas conclusões bastante precisas são extraídas:
# a Rabótcheie Dielo assume a defesa da tendênciaoportunista na social-democracia internacional, em geral;
# a Rabótcheie Dielo reclama a liberdade de oportunismo na social-democracia russa.
Examinemos estas conclusões. O que desagrada ''acima de tudo'' à Rabótcheie Dielo, é a “tendência que têm o Iskra e a Zaria de prognosticar a ruptura entre a Montanha e a Gironda da social-democracia internacional.”<ref group="1">A comparação entre as duas tendências do proletariado revolucionário (tendência revolucionária e tendência oportunista) e as duas tendências da burguesia revolucionária do século XVIII (a tendência jacobina — a “Montanha“ — e a tendência girondina) foi feita no editorial do número 2 do Iskra (fevereiro de 1901). Plekhanov é o autor deste artigo. Falar do “jacobinismo“ na social-dernocracia russa é ainda hoje o tema favorito dos “cadets“. Dos“bezzaglavtsy“, e dos mencheviques. Mas, como Plekânov utilizou esta noção, pela primeira vez, contra a ala direita da social-democracia, hoje em dia prefere-se esquecer ou silenciar sobre o fato. (Nota do autor àedição russa de 1907. N. R.).</ref>
<blockquote>“Falar de uma Montanha e de uma Gironda nos escalões da social-democracia,” escreve o redactor-chefe da Rabótcheie Dielo, B. Kritchévski, “parece-nos uma analogia histórica superficial, singular na pena de um marxista: a Montanha e a Gironda não representavam temperamentos ou correntes intelectuais diversas como poderá parecer aos historiadores ideólogos, mas classes ou camadas diversas: de um lado, a média burguesia, de outro, a pequena-burguesia e o proletariado. Ora, no movimento socialista contemporâneo,não existe coalizão de interesses de classe; em todas (sublinhado por Kritchévski) as suas variedades, aí compreendidos os bernsteinianos mais declarados, o movimento coloca-se inteiramente no campo dos interesses da classe do proletariado, da luta de classe do proletariado para sua emancipação política e económica”(p. 32-33).</blockquote>
Afirmação ousada! Ignora B. Kritchévski ofato, há muito observado, de que foi precisamente a grande participação dacamada de “académicos“, no movimento socialista dos últimos anos,que assegurou a rápida difusão do bernsteinismo? E, ainda mais, em quefundamenta o autor sua opinião para declarar que os “bernsteinianos maisdeclarados“ colocam-se, também eles, no campo da luta de classe para a emancipação política e econômica do proletariado? Não seria possível dizê-lo.
Esta defesa resoluta dos bernsteinianos mais declarados não encontra nenhum argumento, nenhuma razão para apoiá-la. Mas, o que de mais “superficial” pode haver do que esta maneira de julgar toda uma tendência, a partir das próprias convicções daqueles que a representam? O que há demais superficial do que a moral que acompanha esses dois tipos ou caminhosdiferentes, e mesmo diametralmente opostos, do desenvolvimento do Partido (p.34-35 da Rabótcheie Dielo)? Observem que os sociais-democratas alemães admitem a completa liberdade de crítica; os franceses, ao contrário, não o fazem, e é o seu exemplo que demonstra todo o “mal da intolerância”. Respondemos que é precisamente o exemplo de B. Kritchévski aquele que mostra haver pessoas que, intitulando-se, por vezes marxistas, consideram a história exatamente “à maneira de Ilováiski.”
Para explicar a unidade do partido alemão e a dispersão do partido socialista francês, não há nenhuma necessidade de se buscar as particularidades da história de um ou outro país, de se fazer comparações entre as condições do semi-absolutismo militar e do parlamentarismo republicano, de se examinar as consequências da Comuna e da lei de exceção contra os socialistas, de se comparar a situação e o desenvolvimento econômicos, de se levar em conta o fato de que o “crescimento ímpar da social-democracia alemã” foi acompanhado de uma luta de vigor sem precedentes na história do socialismo, não somente contra os erros teóricos (Mühlberger, Dühring,<ref group="1">Quando Engels atacou Dühring, para quem se inclinavam muitos representantes da social-democracia alemã, as acusações de violência, de intolerância, de falta de camaradagem na polêmica ergueram-se contra ele, até mesmo em público, no congresso do partido. Most e seus companheiros propuseram (no congresso de 1877) de não mais publicar no Vorwärts os artigos de Engels por “não apresentarem interesse para a grande maioria dos leitores”; Vahlteich declarou, de sua parte, que a inclusão desses artigos prejudicara muito o Partido; que Dühring também prestara serviços à social-democracia: “Devemos utilizar todo o mundo no interesse do Partido. E se os professores discutem, o Vowärts não é arena para tais disputas”. (Vorwärts n.º. 65, 6 de junho de 1877). Como se vê, também esse é um exemplo de defesa da “liberdade de crítica”,exemplo sobre o qual fariam bem em refletir os nossos críticos legais e oportunistas ilegais, que tanto gostam de se referir aos alemães!</ref> os socialistas da Cátedra), mas também contra os erros táticos (Lassalle), etc.
Tudo isto é supérfluo! Os franceses discutem entre si, porque são intolerantes; os alemães são unidos, porque são bons rapazes. E, note-se bem, através dessa incomparável profundidade de pensamento, “recusa-se” um fato que arruina completamente a defesa dos bernsteinianos. Colocam-se estes últimos no campo da luta de classe do proletariado? Tal questão não pode ser definitivamente resolvida, e sem se voltar atrás, senão pela experiência histórica. Por conseguinte, o mais importante aqui é o exemplo da França, o único país onde os bernsteinianos tentaram voar com suas próprias asas, coma calorosa aprovação de seus colegas alemães (e em parte, dos oportunistas russos: cf. Rab, Dielo, n.º. 2-3, p., 83-84).
Alegar a “intransigência” dos franceses, além do valor “histórico“ de tal alegação (à maneira de Nozdrev, é simplesmente dissimular, sob palavras acrimoniosas, fatos extremamente desagradáveis. Aliás, não temos nenhuma intenção deabandonar os alemães a B. Kritchévski e a outros inúmeros defensores da “liberdade de crítica”. Se os “bernsteinianos mais declarados” ainda são tolerados no partido alemão, é unicamente na medida em que se submetem à resolução de Hanôver, que rejeita deliberadamente as “emendas” de Bernstein, e a de Lübeck, a qual (apesar de toda a diplomacia) contém uma advertência formal dirigida a Bernstein.
Do ponto de vista dos interesses do partido alemão, pode-se discutir a oportunidade desta diplomacia e perguntar se, neste caso, um mau acordo vale mais do que uma boa discussão; em uma palavra, pode-se discordar sobre este ou aquele meio de rejeitar o bernsteinismo, mas não seria possível ignorar o fato de o partido alemão tê-lo repudiado por duas vezes, portanto, aceitar que o exemplo dos alemães confirma a tese de que “os bernsteinianos mais declarados colocam-se no campo da luta de classe doproletariado para sua emancipação económica e política”, significa que não se compreende absolutamente nada do que se passa sob os olhos de todos.<ref group="1">É preciso notar que, sobre a questão do bernsteinismo no Partido alemão, a Rabótcheie Dielo sempre se contentou em relatar pura e simplesmente os fatos, “abstendo-se” totalmente de uma apreciação própria. Ver, por exemplo, o número 2-3, p. 66, sobre o congresso de Stuttgart: todas as divergênciasse dirigem para a “tática” e se constata apenas que a grande maioria permanece fiel à tática revolucionária anterior. Ou o número 4-5,p. 25 e seguintes, simples repetição dos discursos no congresso de Hanôver,reproduzindo a resolução de Bebel a exposição e a crítica de Bernstein sãonovamente remetidas a um “artigo especial”. 0 curioso é que na página 33, no número 4-5, lê-se: “... Acepções, expostas por Bebel, contam com o apoio da grande maioria do congresso”, e um pouco mais adiante: “... David defendia as concepções de Bernstein... Em primeiro lugar, procurava mostrar que... Bernstein e seus amigos colocavam-se, apesar de tudo(sic) no campo da luta de classes”... Isto foi escrito em dezembro de 1899, e, em setembro de 1901, a Rabótcheie Dieto sem dúvida já perdeu a confiança na exatidão das afirmações de Bebel e retoma o ponto de vista de David como o seu próprio!</ref>
E ainda mais. a Rabótcheie Dielo, como já mostramos, apresenta à social-democracia russa a reivindicação da “liberdade de crítica” e defende o bernsteinismo. Aparentemente, deve ter-se convencido de que nossos “críticos” e nossos bernsteinianos eram injustamente maltratados. Mas, quais? Por quem, onde e quando? Por que injustamente? A esse respeito, a Rabótcheie Dielo cala-se; nem uma só vez menciona um crítico ou um bernsteiniano russo! Só nos resta escolher entre as duas hipóteses possíveis. Ou a parte injustamente ofendida não é senão o própria Rabótcheie Dielo (o que é confirmado pelo fato de os dois artigos do nº 10 falar em unicamente das ofensas infligidas pela Zaria e pelo Iskra à Rabótcheie Dielo).
Mas, daí, como explicar o estranho fato de a Rabótcheie Dielo, que sempre negou obstinadamente qualquer solidariedade com o bernsteinismo, não ter podido se defender senão em favor dos “bernsteinianos maisdeclarados” e da liberdade de crítica? Ou, então, foram terceiros os injustamente ofendidos. Neste caso, quais seriam, pois, os motivos para não serem mencionados? Assim, vemos que a Rabótcheie Dielo continua o jogo de esconde-esconde, ao qual se dedica (como demonstraremos mais adiante) desde que existe. Ademais, note-se esta primeira aplicação prática da famosa “liberdade de crítica”. De fato, esta liberdade logo reconduziu não somente à ausência de toda crítica, mas também à ausência de todo julgamento independente em geral. A mesma Rabótcheie Dielo que oculta, como uma doença secreta (segundo a feliz expressão de Satrover), a existência de um bernsteinismo russo, propõe para curar essa doença copiar pura e simplesmente a última receita alemã para o tratamento da forma alemã de tal doença! Ao invés de liberdade de crítica, imitação servil... pior ainda: simiesca!
As manifestações do atual oportunismo internacional, em toda a parte idêntico em seu conteúdo social e político, variam segundo as particularidades nacionais. Em um país, as oportunidades há muito agrupam-se sob uma bandeira distinta; em outro, desdenhando a teoria, seguem praticamente a política dos socialistas radicais; em um terceiro, alguns membros do partido revolucionário, que se passaram para o campo do oportunismo, desejam atingir os seus fins, não através de luta aberta por princípios e tácticas novas, mas através de corrupção gradual, imperceptível e, se é que se pode dizer, não passível de punição pelo seu partido; enfim, em outro lugar, esses desertores empregam os mesmos procedimentos nas trevas da escravatura política, onde a relação entre a atividade “legal” e a atividade “ilegal” etc., é completamente original.
Fazer da liberdade de crítica e da liberdade do bernsteinismo a condição da união dos sociais democratas russos, sem uma análise das manifestações concretas e dos resultados particulares do bernsteinismo russo, é falar sem nada dizer. Portanto, tentemos nós próprios dizer, ao menos em poucas palavras, o que não quis dizer (ou talvez não tenha sabido compreender) a Rabótcheie Dielo.


=== A crítica na Rússia ===
=== A crítica na Rússia ===

Edição das 23h48min de 6 de janeiro de 2021

Prefácio

De acordo com a intenção original do autor, este trabalho que apresentamos ao leitor devia ser dedicado ao desenvolvimento detalhado das ideias expostas no artigo "Por onde começar?" (Iskra, n.º 4, maio de 1901). Antes de tudo, devemos desculpar-nos perante o leitor pelo atraso verificado no cumprimento da promessa feita nesse artigo (e repetida em resposta a numerosas perguntas e cartas particulares). Uma das razões desse atraso foi a tentativa de unificação de todas as organizações sociais-democratas no estrangeiro, empreendida em junho do ano passado (1901). Seria natural que se aguardasse os resultados dessa tentativa, pois, se tivesse êxito, talvez fosse preciso expor sob um ângulo um pouco diferente os pontos de vista do Iskra em matéria de organização; em todo o caso, o êxito de tal tentativa teria permitido pôr termo, de modo bastante rápido, à existência de duas tendências na social-democracia russa. Como o leitor não ignora, essa tentativa fracassou e, como procuraremos demonstrar mais adiante, não poderia ter outro fim após a mudança inesperada do Rabótcheie Dielo, em seu número 10, em direção ao "economismo". Tornou-se absolutamente necessário empreender uma luta decisiva contra esta tendência vaga e pouco determinada, porém tanto mais persistente e susceptível de renascer sob as mais variadas formas. Desse modo, o plano inicial deste trabalho foi modificado e consideravelmente ampliado. O tema principal deveria abranger as três questões propostas no artigo "Por onde começar?", ou seja: o carácter e o conteúdo essencial de nossa agitação política; nossas tarefas de organização, o plano para a construção de uma organização de combate para toda a Rússia dirigido simultaneamente para diversos fins. Desde há muito tais problemas vêm interessando ao autor, que já procurou abordá-los na Rabótchaia Gazeta, em uma das tentativas malogradas de se renovar essa publicação (ver cap. V). Contudo, minha intenção inicial de me limitar, neste trabalho, somente à análise dessas três questões e de expor meus pontos de vista, sempre que possível, de forma positiva evitando recorrer à polémica, tornou-se completamente impraticável por duas razões. Por um lado, o "economismo" revelou-se muito mais forte do que os supúnhamos (empregamos o termo "economismo" em sentido amplo, como foi explicado no artigo do, Iskra, n.º. 12, dezembro de 1901: "Uma Conversa com os Defensores do Economismo", artigo que traça por assim dizer, o esboço do trabalho que apresentamos ao leitor). Hoje é inegável que as diferentes opiniões a respeito desses três problemas explicam-se muito mais pela oposição radical das duas tendências na social-democracia russa, do, que pelas divergências quanto a detalhes. Por outro lado, a perplexidade suscitada entre os "economistas" pela exposição metódica de nossos pontos de vista no Iskra evidenciou que, frequentemente, falamos línguas literalmente diferentes: que, por conseguinte, não podemos chegar a qualquer acordo se não começarmos de novo; que é necessário tentar. Uma explicação metódica tão popular quanto possível, ilustrada com exemplos concretos muito numerosos, com todos os "economistas", sobre todos os pontos capitais de nossas divergências. E resolvi tentar tal "explicação", compreendendo perfeitamente que ela aumentaria consideravelmente as dimensões deste trabalho e retardaria seu aparecimento, mas não encontrei outro meio de cumprir a promessa feita no artigo "Por onde começar?". As desculpas por esse atraso, é necessário acrescentar outras quanto à extrema insuficiência da forma literária deste trabalho: tive de trabalhar com a maior das pressas e, ademais, foi interrompido frequentemente por toda a sorte de outros trabalhos. A análise das três questões indicadas anteriormente continua a ser o objeto deste trabalho, mas tive de começar por duas outras questões de ordem mais geral: por que uma palavra de ordem tão "inofensiva" e "natural" como "liberdade de crítica" constitui para nós um verdadeiro grito de guerra? Por que, não podemos chegar a um acordo nem sequer sobre a questão fundamental do papel da social-democracia, em relação ao movimento espontâneo das massas? Além disso, a exposição dos meus pontos de vista sobre o carácter e o conteúdo da agitação política visa a explicar a diferença entre a política sindical e a política social-democrata, e a exposição dos meus pontos de vista sobre as tarefas de organização visa a explicar a diferença entre os métodos artesanais de trabalho, que satisfazem os "economistas", e a organização dos revolucionários que consideramos indispensável. Em seguida, insisto mais uma vez sobre o "plano" de um jornal político para toda a Rússia, pois as objecções que têm sido feitas a esse respeito são inconsistentes e não respondem à natureza da questão proposta no artigo "Por onde começar?": como poderemos empreender, simultaneamente e por todos os lados, a formação da organização de que necessitamos? Enfim, na última parte do trabalho espero demonstrar que fizemos tudo o que dependia de nós para evitar a ruptura definitiva com os "economistas", ruptura que, entretanto, tornou-se inevitável; que o Robótcheie Dielo adquiriu uma importância especial, "histórica", se quiserem, porque exprimiu da maneira mais completa e com maior relevo, não o "economismo" consequente, mas a dispersão e as incertezas que constituíram o traço peculiar de todo um período da história da social-democracia russa; que, por conseguinte, apesar de parecer bastante desenvolvida à primeira vista, a polémica com o Rabótcheie Dielo tem sua razão de ser, pois não podemos seguir adiante sem, liquidar definitivamente esse período.

I. Lenin
Fevereiro de 1902

Dogmatismo e "liberdade de crítica"

O que significa a "liberdade de crítica"

"Liberdade de crítica" é, sem dúvida alguma, a palavra de ordem mais em voga atualmente, aquela que aparece com mais frequência nas discussões entre socialistas e democratas de todos os países. À primeira vista, nada parece mais estranho do que ver um dos contraditores exigir solenemente a liberdade de crítica. Acaso nos partidos avançados ergueram-se vozes contra a lei constitucional que na maioria dos países europeus, garante a liberdadeda ciência e da investigação científica? "Há algo escondido"dirá necessariamente qualquer homem imparcial que tenha ouvido essa palavra de ordem emmoda, repetida em todos os cantos, e que ainda não tenha apreendido o sentido dodesacordo. "Essa palavra de ordem é, evidentemente, uma daquelaspequenas palavras convencionais que, como os apelidos, são consagradas pelouso e tornam-se quase nomes comuns".

De fato, não constitui mistériopara ninguém que, na atual social-democracia internacional, se tenhamformado duas tendências, cuja luta ora "se anima e se inflama, ora se extingue sob as cinzas das grandiosas resoluções de tréguas". Em que consiste a "nova tendência que "critica" o "velho" marxismo "dogmático", disse-o Bernstein, e demonstrou-o Millerand com suficiente clareza. A social-democracia deve transformar-se de partido da revolução social em partido democrático de reformas sociais. Essa reivindicação política, foi cercada por Bernstein com toda uma bateria de "novos" argumentos e considerações muito harmoniosamente orquestrados. Nega ele a possibilidade de se conferir fundamento científico ao socialismo e de se provar, do ponto de vista da concepção materialista da história, sua necessidade e sua inevitabilidade, nega a miséria crescente, a proletarização e o agravamento das contradições capitalistas; declara inconsistente a própria concepção do "objetivo final", e rejeita categoricamente a ideia da ditadura do proletariado; nega a oposição de princípios entre o liberalismo e o socialismo, nega a teoria da luta de classes, considerando-a inaplicável a uma sociedade estritamente democrática, administrada segundo a vontade da maioria etc. Assim, a exigência de uma mudança decisiva - da social-democracia revolucionária para o reformismo social burguês - foi acompanhada de reviravolta não menos decisiva em direção à crítica burguesa de todas as ideias fundamentais do marxismo. E como essa crítica, de há muito, era dirigida contra o marxismo do alto da tribuna política e da cátedra universitária, em uma quantidade de publicações e em uma série de tratados científicos: como, há dezenas de anos, era inculcada sistematicamente à jovem geração das classes instruídas, não é de se surpreender que a "nova" tendência "crítica" na social-democracia tenha surgido repentinamente sob sua forma definitiva, tal como Minerva da cabeça de Júpiter. Em seu conteúdo, essa tendência não teve de se desenvolver e de se formar; foi transplantada directamente da literatura burguesa para a literatura socialista. Prossigamos.

Se a crítica teórica de Bernstein e suas ambições políticas permaneciam ainda obscuraspara alguns, os franceses tiveram o cuidado de fazer uma demonstração prática,do "novo método". Ainda desta vez a França justificou sua velha reputação de "país em cuja história a luta de classes, mais do que em qualquer outro, foi resolutamente conduzida até o fim".[1 1] Ao invés de teorizar, os socialistas franceses agiram deliberadamente; as condições políticas da França, mais desenvolvidas no sentido democrático, permitiram-lhes passarimediatamente ao "bernsteinismo prático" com todas as suas consequências. Millerand deu um exemplo brilhante desse bernsteinismo prático; também, comque empenho Bernstein e Volimar apressaram-se em defender e louvar Millerand!

De fato, se a social-democracia não constitui, no fundo, senão um partido dereformas e deve ter a coragem de reconhecê-lo abertamente, o socialismo nãosomente tem o direito de entrar em um ministério burguês, como também deve mesmo aspirar sempre a isso. Se a democracia significa, no fundo, a supressão da dominação de classe, por que um ministro socialista não seduziria o mundo burguês com discursos sobre a colaboração das classes? Por que não conservaria ele sua pasta, mesmo após os assassínios de operários por policiais terem demonstrado pela centésima e pela milésima vez o verdadeiro caráter da colaboração democrática das classes? Por que não facilitaria pessoalmente o czar a quem os socialistas franceses não chamavam senão deknouteur, pendeur et déportateur? E para contrabalançar esse interminável aviltamento e autoflagelação do socialismo perante o mundo inteiro, essa perversão da consciência socialista das massas operárias — única base quenos pode assegurar a vitória —, são nos oferecidos os projetos grandiloquentes de reformas insignificantes, insignificantes ao ponto de se poder ter obtido mais dos governos burgueses!

Aqueles que não fecham os olhos, deliberadamente, não podem deixar de ver que a nova tendência "crítica" no socialismo nada mais é que uma nova variedade do oportunismo. E se tais pessoas forem julgadas, não a partir do brilhante uniforme que vestiram, nem tampouco do título pomposo que se atribuíram, mas a partir de sua maneira deagir e das ideias que realmente divulgam, tornar-se-á claro que "a liberdade de crítica" é a liberdade da tendência oportunista na social-democracia, a liberdade de transformar esta em um partido democrático de reformas, a liberdade de implantar no socialismo as ideias burguesas e os elementos burgueses. A liberdade é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da liberdade da indústria que foram empreendidas as piores guerras de pilhagem, foi sob a bandeira da liberdade do trabalho, que os trabalhadores foram espoliados. A expressão "liberdade de crítica", tal como seemprega hoje, encerra a mesma falsidade.

As pessoas verdadeiramente convencidas de terem feito progredir a ciência não reclamariam, para asnovas concepções, a liberdade de existir ao lado das antigas, mas a substituição destas por aquelas. Portanto, os gritos atuais de "Viva a liberdade de crítica!" lembram muito a fábula do tonel vazio. Pequeno grupo compacto, seguimos por uma estrada escarpada e difícil, segurando-nos fortemente pela mão. De todos os lados, estamos cercados de inimigos, e épreciso marchar quase constantemente debaixo de fogo. Estamos unidos por umadecisão livremente tomada, precisamente a fim de combater o inimigo e não cair no pântano ao lado, cujos habitantes desde o início nos culpam determos formado um grupo à parte, e preferido o caminho da luta ao caminho da conciliação. Alguns dos nossos gritam: Vamos para o pântano! E quando lhes mostramos a vergonha de tal ato, replicam: Como vocês são atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho melhor! Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém,nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos "livres" para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem![1 2]

Os novos defensores da liberdade de crítica

É esta palavra de ordem (“liberdade de crítica”) que a Rabótcheie Dielo[1 3] nº 10, órgão da “União dos Sociais-Democratas Russos” no estrangeiro, formulou solenemente nesses últimos tempos, não como postulado teórico, mas como reivindicação política, como resposta à questão:

“É possível a união das organizações sociais-democratas funcionando no estrangeiro?” — “Para uma união sólida, a liberdadede crítica é indispensável” (p. 36).

Daqui, duas conclusões bastante precisas são extraídas:

  1. a Rabótcheie Dielo assume a defesa da tendênciaoportunista na social-democracia internacional, em geral;
  2. a Rabótcheie Dielo reclama a liberdade de oportunismo na social-democracia russa.

Examinemos estas conclusões. O que desagrada acima de tudo à Rabótcheie Dielo, é a “tendência que têm o Iskra e a Zaria de prognosticar a ruptura entre a Montanha e a Gironda da social-democracia internacional.”[1 4]

“Falar de uma Montanha e de uma Gironda nos escalões da social-democracia,” escreve o redactor-chefe da Rabótcheie Dielo, B. Kritchévski, “parece-nos uma analogia histórica superficial, singular na pena de um marxista: a Montanha e a Gironda não representavam temperamentos ou correntes intelectuais diversas como poderá parecer aos historiadores ideólogos, mas classes ou camadas diversas: de um lado, a média burguesia, de outro, a pequena-burguesia e o proletariado. Ora, no movimento socialista contemporâneo,não existe coalizão de interesses de classe; em todas (sublinhado por Kritchévski) as suas variedades, aí compreendidos os bernsteinianos mais declarados, o movimento coloca-se inteiramente no campo dos interesses da classe do proletariado, da luta de classe do proletariado para sua emancipação política e económica”(p. 32-33).

Afirmação ousada! Ignora B. Kritchévski ofato, há muito observado, de que foi precisamente a grande participação dacamada de “académicos“, no movimento socialista dos últimos anos,que assegurou a rápida difusão do bernsteinismo? E, ainda mais, em quefundamenta o autor sua opinião para declarar que os “bernsteinianos maisdeclarados“ colocam-se, também eles, no campo da luta de classe para a emancipação política e econômica do proletariado? Não seria possível dizê-lo.

Esta defesa resoluta dos bernsteinianos mais declarados não encontra nenhum argumento, nenhuma razão para apoiá-la. Mas, o que de mais “superficial” pode haver do que esta maneira de julgar toda uma tendência, a partir das próprias convicções daqueles que a representam? O que há demais superficial do que a moral que acompanha esses dois tipos ou caminhosdiferentes, e mesmo diametralmente opostos, do desenvolvimento do Partido (p.34-35 da Rabótcheie Dielo)? Observem que os sociais-democratas alemães admitem a completa liberdade de crítica; os franceses, ao contrário, não o fazem, e é o seu exemplo que demonstra todo o “mal da intolerância”. Respondemos que é precisamente o exemplo de B. Kritchévski aquele que mostra haver pessoas que, intitulando-se, por vezes marxistas, consideram a história exatamente “à maneira de Ilováiski.”

Para explicar a unidade do partido alemão e a dispersão do partido socialista francês, não há nenhuma necessidade de se buscar as particularidades da história de um ou outro país, de se fazer comparações entre as condições do semi-absolutismo militar e do parlamentarismo republicano, de se examinar as consequências da Comuna e da lei de exceção contra os socialistas, de se comparar a situação e o desenvolvimento econômicos, de se levar em conta o fato de que o “crescimento ímpar da social-democracia alemã” foi acompanhado de uma luta de vigor sem precedentes na história do socialismo, não somente contra os erros teóricos (Mühlberger, Dühring,[1 5] os socialistas da Cátedra), mas também contra os erros táticos (Lassalle), etc.

Tudo isto é supérfluo! Os franceses discutem entre si, porque são intolerantes; os alemães são unidos, porque são bons rapazes. E, note-se bem, através dessa incomparável profundidade de pensamento, “recusa-se” um fato que arruina completamente a defesa dos bernsteinianos. Colocam-se estes últimos no campo da luta de classe do proletariado? Tal questão não pode ser definitivamente resolvida, e sem se voltar atrás, senão pela experiência histórica. Por conseguinte, o mais importante aqui é o exemplo da França, o único país onde os bernsteinianos tentaram voar com suas próprias asas, coma calorosa aprovação de seus colegas alemães (e em parte, dos oportunistas russos: cf. Rab, Dielo, n.º. 2-3, p., 83-84).

Alegar a “intransigência” dos franceses, além do valor “histórico“ de tal alegação (à maneira de Nozdrev, é simplesmente dissimular, sob palavras acrimoniosas, fatos extremamente desagradáveis. Aliás, não temos nenhuma intenção deabandonar os alemães a B. Kritchévski e a outros inúmeros defensores da “liberdade de crítica”. Se os “bernsteinianos mais declarados” ainda são tolerados no partido alemão, é unicamente na medida em que se submetem à resolução de Hanôver, que rejeita deliberadamente as “emendas” de Bernstein, e a de Lübeck, a qual (apesar de toda a diplomacia) contém uma advertência formal dirigida a Bernstein.

Do ponto de vista dos interesses do partido alemão, pode-se discutir a oportunidade desta diplomacia e perguntar se, neste caso, um mau acordo vale mais do que uma boa discussão; em uma palavra, pode-se discordar sobre este ou aquele meio de rejeitar o bernsteinismo, mas não seria possível ignorar o fato de o partido alemão tê-lo repudiado por duas vezes, portanto, aceitar que o exemplo dos alemães confirma a tese de que “os bernsteinianos mais declarados colocam-se no campo da luta de classe doproletariado para sua emancipação económica e política”, significa que não se compreende absolutamente nada do que se passa sob os olhos de todos.[1 6]

E ainda mais. a Rabótcheie Dielo, como já mostramos, apresenta à social-democracia russa a reivindicação da “liberdade de crítica” e defende o bernsteinismo. Aparentemente, deve ter-se convencido de que nossos “críticos” e nossos bernsteinianos eram injustamente maltratados. Mas, quais? Por quem, onde e quando? Por que injustamente? A esse respeito, a Rabótcheie Dielo cala-se; nem uma só vez menciona um crítico ou um bernsteiniano russo! Só nos resta escolher entre as duas hipóteses possíveis. Ou a parte injustamente ofendida não é senão o própria Rabótcheie Dielo (o que é confirmado pelo fato de os dois artigos do nº 10 falar em unicamente das ofensas infligidas pela Zaria e pelo Iskra à Rabótcheie Dielo).

Mas, daí, como explicar o estranho fato de a Rabótcheie Dielo, que sempre negou obstinadamente qualquer solidariedade com o bernsteinismo, não ter podido se defender senão em favor dos “bernsteinianos maisdeclarados” e da liberdade de crítica? Ou, então, foram terceiros os injustamente ofendidos. Neste caso, quais seriam, pois, os motivos para não serem mencionados? Assim, vemos que a Rabótcheie Dielo continua o jogo de esconde-esconde, ao qual se dedica (como demonstraremos mais adiante) desde que existe. Ademais, note-se esta primeira aplicação prática da famosa “liberdade de crítica”. De fato, esta liberdade logo reconduziu não somente à ausência de toda crítica, mas também à ausência de todo julgamento independente em geral. A mesma Rabótcheie Dielo que oculta, como uma doença secreta (segundo a feliz expressão de Satrover), a existência de um bernsteinismo russo, propõe para curar essa doença copiar pura e simplesmente a última receita alemã para o tratamento da forma alemã de tal doença! Ao invés de liberdade de crítica, imitação servil... pior ainda: simiesca!

As manifestações do atual oportunismo internacional, em toda a parte idêntico em seu conteúdo social e político, variam segundo as particularidades nacionais. Em um país, as oportunidades há muito agrupam-se sob uma bandeira distinta; em outro, desdenhando a teoria, seguem praticamente a política dos socialistas radicais; em um terceiro, alguns membros do partido revolucionário, que se passaram para o campo do oportunismo, desejam atingir os seus fins, não através de luta aberta por princípios e tácticas novas, mas através de corrupção gradual, imperceptível e, se é que se pode dizer, não passível de punição pelo seu partido; enfim, em outro lugar, esses desertores empregam os mesmos procedimentos nas trevas da escravatura política, onde a relação entre a atividade “legal” e a atividade “ilegal” etc., é completamente original.

Fazer da liberdade de crítica e da liberdade do bernsteinismo a condição da união dos sociais democratas russos, sem uma análise das manifestações concretas e dos resultados particulares do bernsteinismo russo, é falar sem nada dizer. Portanto, tentemos nós próprios dizer, ao menos em poucas palavras, o que não quis dizer (ou talvez não tenha sabido compreender) a Rabótcheie Dielo.

A crítica na Rússia

Engels e a importância da luta teórica

Notas

  1. Engels: prefácio ao O 18 de brumário de Louis Bonaparte)
  2. A propósito. É um fato quase único na história do socialismo moderno e extremamente consolador no seu gênero; pela primeira vez uma disputa entre tendências diferentes no seio do socialismo ultrapassa o quadro nacional para se tornar internacional. Anteriormente, as discussões entre lassalianos eeisenachianos, entre guesdistas e possibilistas, entre fabianos e sociais-democratas, entre norodovoltsy e sociais-democratas eram puramente nacionais, refletiam particularidades puramente nacionais, desenrolavam-se,por assim dizer, em planos diferentes. Atualmente (isto aparece, hoje,claramente) os fabianos ingleses, os ministerialistas franceses, os bernsteinianos alemães, os críticos russos formam todos uma única família, elogiam-se mutuamente, aprendem uns com os outros, e conduzem campanha comum contra o marxismo "dogmático". Será que nessa primeira amálgama verdadeiramente internacional com o oportunismo socialista a social-democracia revolucionária internacional fortalecer-se-á suficientemente para acabar com a reação política que há tanto tempo prejudica a Europa?
  3. Em russo, A causa operária
  4. A comparação entre as duas tendências do proletariado revolucionário (tendência revolucionária e tendência oportunista) e as duas tendências da burguesia revolucionária do século XVIII (a tendência jacobina — a “Montanha“ — e a tendência girondina) foi feita no editorial do número 2 do Iskra (fevereiro de 1901). Plekhanov é o autor deste artigo. Falar do “jacobinismo“ na social-dernocracia russa é ainda hoje o tema favorito dos “cadets“. Dos“bezzaglavtsy“, e dos mencheviques. Mas, como Plekânov utilizou esta noção, pela primeira vez, contra a ala direita da social-democracia, hoje em dia prefere-se esquecer ou silenciar sobre o fato. (Nota do autor àedição russa de 1907. N. R.).
  5. Quando Engels atacou Dühring, para quem se inclinavam muitos representantes da social-democracia alemã, as acusações de violência, de intolerância, de falta de camaradagem na polêmica ergueram-se contra ele, até mesmo em público, no congresso do partido. Most e seus companheiros propuseram (no congresso de 1877) de não mais publicar no Vorwärts os artigos de Engels por “não apresentarem interesse para a grande maioria dos leitores”; Vahlteich declarou, de sua parte, que a inclusão desses artigos prejudicara muito o Partido; que Dühring também prestara serviços à social-democracia: “Devemos utilizar todo o mundo no interesse do Partido. E se os professores discutem, o Vowärts não é arena para tais disputas”. (Vorwärts n.º. 65, 6 de junho de 1877). Como se vê, também esse é um exemplo de defesa da “liberdade de crítica”,exemplo sobre o qual fariam bem em refletir os nossos críticos legais e oportunistas ilegais, que tanto gostam de se referir aos alemães!
  6. É preciso notar que, sobre a questão do bernsteinismo no Partido alemão, a Rabótcheie Dielo sempre se contentou em relatar pura e simplesmente os fatos, “abstendo-se” totalmente de uma apreciação própria. Ver, por exemplo, o número 2-3, p. 66, sobre o congresso de Stuttgart: todas as divergênciasse dirigem para a “tática” e se constata apenas que a grande maioria permanece fiel à tática revolucionária anterior. Ou o número 4-5,p. 25 e seguintes, simples repetição dos discursos no congresso de Hanôver,reproduzindo a resolução de Bebel a exposição e a crítica de Bernstein sãonovamente remetidas a um “artigo especial”. 0 curioso é que na página 33, no número 4-5, lê-se: “... Acepções, expostas por Bebel, contam com o apoio da grande maioria do congresso”, e um pouco mais adiante: “... David defendia as concepções de Bernstein... Em primeiro lugar, procurava mostrar que... Bernstein e seus amigos colocavam-se, apesar de tudo(sic) no campo da luta de classes”... Isto foi escrito em dezembro de 1899, e, em setembro de 1901, a Rabótcheie Dieto sem dúvida já perdeu a confiança na exatidão das afirmações de Bebel e retoma o ponto de vista de David como o seu próprio!

A espontaneidade das massas e a consciência da social-democracia

Dissemos que era necessário animar nosso movimento, infinitamente maior e mais profundo que aquele de 1870-1880, com o mesmo espírito de decisão e a mesma energia sem limites. De fato, até o presente parece que ninguém ainda duvidara de que a força do movimento contemporâneo estivesse no despertar das massas (e principalmente do proletariado industrial), e sua fraqueza residisse na falta de consciência e de espírito de iniciativa dos dirigentes revolucionários.

Nesses últimos tempos, contudo, foi feita uma descoberta espantosa, que ameaça subverter todas as idéias adquiridas sobre este ponto. Esta descoberta é obra do Rabótcheie Dielo que, em sua polêmica com o Iskra e a Zaria, não se ateve a objecções particulares e tentou reconduzir o "desacordo geral" à sua raiz mais profunda: a uma "apreciação diferente da importância relativa do elemento espontâneo e do elemento conscientemente metódico"'. A tese de acusação do Rabótcheie Dielo expressa o seguinte: "subestimação da importância do elemento objetivo ou espontâneo do desenvolvimento".[1] Ao que respondemos: se a polémica do Iskra e da Zaria não tivesse outro resultado senão o de levar o Rabótcheie Dielo a descobrir esse "desacordo geral", este resultado, por si só, dar-nos-ia grande satisfação, a tal ponto esta tese é significativa, e esclarece nitidamente o fundo das divergências teóricas e políticas que separam, hoje, os sociais democratas russos.

Além disso, a questão das relações entre a consciência e a espontaneidade oferece um imenso interesse geral, e exige um estudo detalhado.

Começo da ascensão espontânea

No capítulo anterior assinalamos o entusiasmo generalizado da juventude russa instruída pela teoria marxista, por volta de 1895. Foi também nessa mesma época, que as greves operárias, após a famosa guerra industrial de 1896 em Petersburgo, revestiram-se de um carácter geral. Sua extensão por toda a Rússia atestava claramente a profundidade do movimento popular que de novo surgia, e se falamos do "elemento espontâneo", é certamente nesse movimento de greves que devemos considerá-lo, antes de tudo. Mas, há espontaneidade e espontaneidade. Houve, na Rússia, greves nas décadas de 1870 e 1880 (e mesmo na primeira metade do século XIX), que foram acompanhadas da destruição "espontânea" de máquinas etc. Comparadas a esses "tumultos", as greves após 1890 poderiam mesmo ser qualificadas de "conscientes", tal foi o progresso do movimento operário nesse intervalo. Isto nos mostra que o "elemento espontâneo", no fundo, não é senão a forma embrionária do consciente. Os tumultos primitivos já traduziam certo despertar da consciência: os operários, perdiam sua crença costumeira na perenidade do regime que os oprimia; começavam... não direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência coletiva, e rompiam deliberadamente com a submissão servil às autoridades. Era, portanto. mais uma manifestação de desespero e de vingança que de luta. As greves após 1890 mostram-nos melhor os lampejos de consciência: formulam-se reivindicações precisas, procura-se prever o momento favorável, discutem-se certos casos e exemplos de outras localidades etc. Se os tumultos constituíam simplesmente a revolta dos oprimidos, as greves sistemáticas já eram o embrião mas, nada além do embrião - da luta de classe. Tomadas em si mesmas, essas greves constituíam uma luta sindical, mas não ainda social-democrata; marcavam o despertar do antagonismo entre operários e patrões; porém, os operários não tinham, e não podiam ter, consciência da oposição irredutível e de seus interesses com toda a ordem política e social existente, isto é, a consciência social-democrata. Nesse sentido, as greves após 1890, apesar do imenso progresso que representaram em relação aos "tumultos", continuavam a ser um movimento essencialmente espontâneo.

Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia chegar até eles a partir de fora. A história de todos os países atesta que, pela próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc.[2] Quanto à doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam eles próprios, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses. Da mesma forma, na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário; foi o resultado natural, inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas. A época de que falamos, isto é, por volta de 1895, essa doutrina constituía não apenas o programa perfeitamente estabelecido do grupo "Liberação do Trabalho", mas também conquistara para si a maioria da juventude revolucionária da Rússia.

Assim, pois, houve ao mesmo tempo um despertar espontâneo das massas operárias, despertar para a vida consciente e para a luta consciente, e uma juventude revolucionária que, armada da teoria social-democrata, buscava aproximar-se dos operários. Quanto a isso, é particularmente importante estabelecer este fato esquecido com freqüência (e relativamente pouco conhecido), de que os primeiros sociais-democratas desse período, que se dedicavam com ardor à agitação econômica (contando, para isso, com as indicações verdadeiramente úteis do folheto Sobre a Agitação, à época ainda manuscrito) longe de considerar essa agitação como sua tarefa única, atribuíam desde o começo à social-democracia russa as grandes tarefas históricas, em geral, e a tarefa da derrubada da autocracia, em particular. Assim, o grupo dos sociais-democratas de Petersburgo, que fundou a "União de Luta para Liberação de Classe Operária "redigiu, já em fins de 1895, o primeiro número de um jornal intitulado Rabótcheie Dielo. Pronto para ser impresso, esse número foi apreendido pelos policiais numa busca efetuada na noite de 8 para 9 de dezembro de 1895, em casa de um dos membros, do grupo, Anat. Alex. Vaneiev,[3] de forma que o Rabótcheie Dielo do primeiro período não pôde ver a luz do dia. O editorial desse jornal (que, talvez, em trinta anos uma revista como a Russkaia Starina exumará dos arquivos do departamento de polícia) expunha as tarefas históricas da classe operária na Rússia, entre as quais colocava-se em primeiro plano a conquista da liberdade política. Seguiam-se um artigo, "Em que Pensam Nossos Ministros?" sobre o saque dos Comitês de instrução elementar pela polícia, bem como uma série de artigos de correspondentes, não só de Petersburgo, como de outras localidades da Rússia (por exemplo, sobre um massacre de operários na província de Iaroslavl. Assim, se não me engano, esse "primeiro ensaio" dos sociais-democratas russos de 1890-1900 não era um jornal estritamente local, e ainda menos de caráter "econômico", visava a unir a luta grevista ao movimento revolucionário dirigido contra a autocracia e levar todos os oprimidos, vítimas da política do obscurantismo reacionário, a apoiar a social-democracia. E para quem quer que conheça um pouco o estado do movimento nessa época, está fora de dúvida que um jornal como esse encontrou toda a simpatia dos operários da capital e dos intelectuais revolucionários, e teve a maior difusão. O fracasso do empreendimento provou simplesmente que os sociais-democratas de então eram incapazes de corresponder às exigências do momento, por falta de experiência revolucionária e de preparação prática. O mesmo se deve dizer do Rabótchaia Listok de São Petersburgo, e sobretudo da Rabótchaia Gazeta e do Manifesto do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, fundado na primavera de 1898. Subentenda-se que não nos passa pela cabeça a idéia de censurar os militantes da época pela sua falta de preparação. Mas, para aproveitar a experiência do movimento e daí extrair lições práticas, é preciso considerar extensivamente as causas e a importância desse ou daquele defeito. Por isso, é extremamente importante estabelecer que uma parte (talvez mesmo a maioria) dos sociais-democratas militantes de 1895-1898 considerava com justa razão possível, aquela época, no começo mesmo do movimento "espontâneo", preconizar um programa e uma tática de combate mais extensos.[4] Ora, a falta de preparação entre a maior parte dos revolucionários, sendo um fenômeno perfeitamente natural, não podia dar lugar a qualquer apreensão particular. A partir do momento em que as tarefas eram bem definidas; a partir do momento em que se possuía bastante energia para tentar de novo realizá-las, os fracassos momentâneos constituíam apenas meio mal. A experiência revolucionária e a habilidade de organização são coisas que se adquirem. É preciso apenas desenvolver em nós mesmos as qualidades necessárias! É preciso que tenhamos consciência de nossos defeitos, o que, no trabalho revolucionário, já é mais de meio caminho para os corrigir.

Mas, o que era meio mal tornou-se um mal verdadeiro, quando esta consciência começou a se obscurecer (porém, ela era bastante viva entre os militantes dos. grupos acima mencionados), quando surgiram pessoas - e mesmo órgãos sociais-democratas - prontas a erigir os defeitos em virtudes, e tentando mesmo justificar teoricamente sua idolatria, seu culto do espontâneo. É tempo de fazer o balanço dessa tendência, caracterizada de maneira muito inexata pelo termo "economismo", demasiado estreito para exprimir o conteúdo.

O culto da espontaneidade. "Rabotchaia Misl"

Antes de passar às manifestações literárias desse culto, assinalaremos o seguinte fato característico (cuja fonte foi acima mencionada), que lança certa luz sobre o nascimento e o crescimento entre os camaradas militantes de Petersburgo, de um desacordo entre as duas futuras tendências da social-democracia russa. No início de 1897, A. Vaneiev e alguns de seus camaradas tiveram ocasião de participar, antes de sua partida para o exílio, de uma reunião privada, onde se encontraram os "velhos" e os "jovens " membros da "União de Luta para a Liberação da Classe Operária". A conversa girou principalmente sobre a organização e, em particular, sobre os "estatutos das caixas operárias", publicados sob sua forma definitiva no número 9-10 do Listok "Rabótnika" (p. 46). Entre os "velhos" (os "dezembristas", como eram chamados em tom de gracejo pelos sociais-democratas de Petersburgo) e alguns dos "jovens" (que mais tarde colaboraram ativamente na Rabótchaia Mysl) manifestou-se logo uma divergência muito nítida, e se estabeleceu ardente polêmica. Os "jovens" defendiam os princípios essenciais dos estatutos, tais como tinham sido publicados. Os "velhos" diziam que não era isto o que se colocava em primeiro lugar; que era preciso, inicialmente, consolidar a "União de Luta" para dela fazer uma organização de revolucionários, à qual estariam subordinadas as diversas caixas operárias, os círculos de propaganda entre a juventude das escolas etc. Bem entendido, as duas partes estavam longe de ver nessa divergência o germe de um desacordo; ao contrário, consideravam-na isolada e acidental. Esse fato, porém, mostra que o nascimento e a difusão do "economismo" na Rússia não se fizeram igualmente sem luta contra os "velhos" sociais-democratas (o que os "economistas" de hoje frequentemente esquecem). E se essa luta não deixou, na maior parte dos casos, traços "documentais", é unicamente porque a composição dos círculos em atividade mudava com incrível rapidez, porque não se estabelecera qualquer tradição e porque, em consequência, as divergências de pontos de vista não foram registradas em qualquer documento.

O aparecimento da Rabótchaia Mysl trouxe o "economismo" para a luz do dia, porém tal não se deu imediatamente. É preciso ter, uma idéia concreta das condições de trabalho e da breve existência de numerosos círculos russos (ora, só quem passou por isso, pode ter ideia exata das coisas), para compreender quanto teve de fortuito o sucesso ou o fracasso da nova tendência nas diferentes cidades, e a impossibilidade, a impossibilidade absoluta em que durante muito tempo se encontraram os partidários e os adversários dessa "nova" tendência, de determinar se era ela realmente uma tendência distinta ou simplesmente a expressão da falta de preparação de alguns. Assim, os primeiros números policopiados da Rabótchaia Mysl permaneceram completamente desconhecidos da imensa maioria dos sociais-democratas, e se agora temos a possibilidade de nos referir ao editorial de seu primeiro número, é unicamente porque tal editorial foi reproduzido no artigo de V.I. (Listok "Rabétnika", n.º. 9-10, p. 47 e seg.), que evidentemente não deixou de louvar com empenho - com empenho inconsiderado - esse novo jornal tão nitidamente diferente dos jornais e projetos de jornais acima citados.[5] Ora, esse editorial exprime com tanto relevo lodo o espírito da Rabótchaia Mysl e do "economismo" em geral, que vale a pena aí nos determos.

Após ter indicado que o braço fardado de azul não deteria jamais o progresso do movimento operário, o editorial prossegue: " ... 0 movimento operário deve sua vitalidade ao fato de o próprio operário enfim se encarregar de sua sorte, arrancando-a das mãos de seus dirigentes." Esta tese fundamental é, em seguida, desenvolvida em seus detalhes. Na realidade, os dirigentes (isto é, os sociais-democratas organizadores da "União de Luta") foram arrancados pela policia, por assim dizer, das mãos dos operários,[6] e querem nos fazer acreditar que os operários conduziam a luta contra os dirigentes e se libertavam de seu jugo! Em lugar de estimular a marcha para a frente, de consolidar a organização revolucionária e de ampliar a atividade política, incitou-se a volta para trás, em direcção à luta exclusivamente sindical. Proclamou-se que "a base econômica do movimento está obscurecida pela tendência a jamais esquecer o ideal político", que o lema do movimento operário é a luta pela situação económica" (!) ou, melhor ainda, "os operários pelos operários"; declarou-se que as caixas de greve "valem mais para o movimento do que uma centena de outras organizações" (que se compare esta afirmação, feita em outubro de 1897, com a disputa dos "dezembristas" com os jovens, no inicio de 1897) etc. Frases como: é preciso colocar em primeiro plano, não a "nata" dos operários, mas o operário "médio", o operário das fileiras; ou como: "O político segue sempre docilmente o econômico"[7] etc. etc., entraram na moda e exerceram influência sobre a massa dos jovens seduzidos pelo movimento e que, na maioria, não conheciam senão fragmentos do marxismo, tal como era exposto legalmente.

Isto constituiu o completo aniquilamento da consciência pela espontaneidade - pela espontaneidade dos "sociais-democratas" que repetiam as "idéias" do Senhor V.V., a espontaneidade dos operários seduzidos pelo argumento de que mesmo um aumento de um copeque por rublo valia mais que todo socialismo e toda política, de que deviam "lutar sabendo que o faziam não por remotas gerações futuras mas por eles próprios e por seus filhos" (editorial do n.º. 1 da Rabótchaia Mysl). As frases desse gênero foram sempre a arma preferida dos burgueses do Ocidente que, odiando o socialismo, trabalhavam (como Hirsch, o "social-político" alemão) para transplantar para seus países o sindicalismo inglês, e diziam aos operários que a luta exclusivamente sindical[8] é uma luta por eles próprios e por seus filhos, e não por remotas gerações futuras com vistas a um incerto socialismo futuro. E agora os "V.V. da social-democracia russa" se põem a repetir essas frases burguesas. Aqui, é importante assinalar três pontos que nos serão de grande utilidade para a continuação de nossa análise sobre as divergências atuais.[9]

Em primeiro lugar, o aniquilamento da consciência pela espontaneidade, de que falamos, também se deu de maneira espontânea. Isto parece um jogo de palavras, mas infelizmente é uma verdade amarga. O que provocou esse aniquilamento não foi uma luta declarada entre duas concepções absolutamente opostas, nem a vitória de uma sobre a outra, mas o desaparecimento de um número cada vez maior de "velhos" revolucionários "colhidos" pelos policiais, e a entrada em cena, cada vez mais frequente, dos "jovens" "V.V. da social-democracia russa". Quem quer que tenha, não direi participado do movimento russo contemporâneo, mas simplesmente respirado o seu ar, sabe perfeitamente que esta é precisamente a situação. E se, apesar disso, insistimos particularmente para que o leitor considere com cuidado esse fato conhecido de todos, se para maior evidência referimo-nos, de algum modo, aos dados sobre o Rabótcheie Dielo do primeiro período, e sobre a discussão entre "jovens" e "velhos" no início de 1897, é porque as pessoas que se gabam de espírito democrático" especulam sobre a ignorância desse fato pelo grande público (ou entre os adolescentes). Mais adiante, ainda voltaremos a esse ponto.

Em segundo lugar, desde a primeira manifestação literária do "economismo" podemos observar um fenômeno eminentemente original e extremamente característico para a compreensão de todas as divergências entre sociais-democratas da atualidade: os partidários do "movimento puramente operário", os adeptos da ligação mais estreita e mais "orgânica" (expressão do Rab. Dielo) com a luta proletária, os adversários de todos os intelectuais não operários (ainda que fossem intelectuais socialistas) foram obrigados, para defender sua posição, a recorrer aos argumentos burgueses "exclusivamente sindicais". Isto nos mostra que, desde o princípio, a Rabótchaia Mysl começara - insistentemente - a realizar o programa do Credo. Isto mostra (o que não pode chegar a compreender o Rabótcheie Dielo), que todo culto da espontaneidade do movimento operário, toda diminuição do papel do "elemento consciente", do papel da social-democracia significa - quer se queira ou não - um reforço da influência da ideologia burguesa sobre os operários. Todos aqueles que falam de "sobrestimação da ideologia",[10] de exagero do papel do elemento consciente[11] etc., imaginam que o movimento puramente operário é, por si próprio, capaz de elaborar, e irá elaborar para si, uma ideologia independente, com a única condição de que os operários "arranquem sua sorte das mãos de seus dirigentes". Mas, isto constitui um erro profundo. Para completar o que dissemos acima, citaremos ainda as palavras profundamente justas e significativas de K. Kautsky, a propósito do projeto do novo programa do partido social-democrata austríaco.[12]


"Muitos de nossos críticos revisionistas atribuem a Marx a afirmação de que o desenvolvimento econômico e a luta de classes não somente criam as condições da produção socialista, mas engendram diretamente a consciência (o grifo é de K.K.) de sua necessidade. E eis que esses críticos objetam que a Inglaterra, país do mais avançado desenvolvimento capitalista, está mais alheia do que qualquer outro país a essa consciência. O projeto do programa leva a crer que a comissão que elaborou o programa austríaco partilha, também, desse ponto de vista dito marxista ortodoxo, que refuta o exemplo da Inglaterra. O projeto afirma: "Quanto mais o proletariado aumenta em consequência do desenvolvimento capitalista, mais é obrigado e tem a possibilidade de lutar contra o capitalismo. O proletariado adquire a "consciência" da possibilidade e da necessidade do socialismo. Por conseguinte, a consciência socialista constituirá o resultado necessário, direto da luta proletária de classe. Ora, isto é inteiramente falso. Como doutrina, o socialismo evidentemente tem suas raízes nas relações econômicas atuais, da mesma forma que a luta de classe do proletariado; do mesmo modo que esta última, resulta da luta contra a pobreza e a miséria das massas, provocadas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de classe surgem paralelamente e um não engendra o outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um profundo conhecimento científico. De fato, a ciência económica contemporânea constitui tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o proletariado não pode criá-las; ambas surgem do processo social contemporâneo. Ora, o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses (o grifo é de KA.): foi do cérebro de certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo contemporâneo, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais evoluídos, que o introduziram, em seguida, na luta de classe do proletariado onde as condições o permitiram. Assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora (von Aussenhineigetranes) na luta de classe do Proletariado, e não algo que surgiu espontaneamente (ur wüchsig). Também o antigo programa de Heinfeld dizia, muito justamente, que a tarefa da social-democracia é introduzir no proletariado (literalmente: preencher o proletariado com) a consciência de sua situação e a consciência de sua missão. Não seria necessário fazê-lo se essa consciência emanasse naturalmente da luta de classe. Ora, o novo projeto emprestou essa tese do antigo programa e juntou-se à tese acima citada. O que interrompeu completamente o curso do pensamento... No momento, não seria possível falar de uma ideologia independente, elaborada pelas próprias massas operárias no curso de seu movimento,[13] o problema coloca-se exclusivamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não elaborou uma "terceira" ideologia; e, além disso, em uma sociedade dilacerada pelos antagonismos de classe não seria possível existir uma ideologia à margem ou acima dessas classes). Por isso, toda diminuição da ideologia socialista, todo distanciamento dela implica o fortalecimento da ideologia burguesa. Fala-se de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário resulta justamente na subordinação à ideologia burguesa, efetua-se justamente segundo o programa do "Credo", pois o movimento operário espontâneo é o sindicalismo, a Nur-Gewerkschafilerei: ora, o sindicalismo é justamente a escravidão ideológica dos operários pela burguesia. Por isso, nossa tarefa, a da social-dernocracia, é combater a espontaneidade, desviar o movimento operário dessa tendência espontânea que apresenta o sindicalismo, de se refugiar sob as asas da burguesia, e atraí-lo para a social-democracia revolucionária. Por conseguinte, a frase dos autores da carta "econômica" do n.º. 12 do Iskra, afirmando que todos os esforços dos mais inspirados ideólogos não poderão desviar o movimento operário do caminho determinado pela ação recíproca dos elementos materiais e do meio material, equivale exatamente a abandonar o socialismo, e se esses autores fossem capazes de meditar no que dizem, até às ultimas consequências, com lógica e destemor, como deve fazer quem se dedica ao campo da ação literária e social, não lhes restaria senão cruzar sobre o peito vazio seus braços inúteis""

— K. Kautsky



e... deixar o campo livre aos senhores Struve e Prokopovitch, que arrastam o movimento operário "no sentido do mínimo esforço", isto é, no sentido do sindicalismo burguês, ou aos senhores Zubatov, que o arrastam no sentido da "ideologia" cléricopolicial.

Recorde-se o caso da Alemanha. Qual foi o mérito histórico de Lassalle diante do movimento operário alemão? Foi ter desviado este movimento do caminho do sindicalismo progressista e do cooperativismo, para onde se dirigia espontaneamente (com a ajuda benévola dos Schulze-Delitzsch e consortes). Para realizar essa tarefa, foi preciso mais do que frases a respeito da subestimação do elemento espontâneo, sobre a tática-processo, sobre a ação recíproca dos elementos e do meio etc. Para isso foi preciso uma luta encarniçada contra a espontaneidade, e só após essa luta de longos e longos anos que se chegou, por exemplo, a fazer da população operária de Berlim o baluarte do partido progressista, uma das melhores cidadelas da social-democracia. E esta luta está ainda longe de terminar (como poderiam supor os estudiosos da história do movimento alemão através de Prokopovitch, e da filosofia desse movimento através de Strouve). Ainda agora, a classe operária alemã está dividida, se assim se pode dizer, entre diversas ideologias: uma parte dos operários está agrupada nos sindicatos operários católicos e monarquistas; outra, nos sindicatos Hirsch-Duncker, fundados pelos admiradores burgueses do sindicalismo inglês; uma terceira, nos sindicatos sociais-democratas. Esta última parte é infinitamente mais numerosa que todas as outras, mas a ideologia social-democrática não pode obter, e não poderá conservar essa supremacia, senão através de uma luta incansável contra todas as outras ideologias.

Mas, por que - perguntará o leitor - o movimento espontâneo, que se dirige para o sentido do mínimo esforço, conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que, cronologicamente, a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista, está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores.[14] Quanto mais jovem for o movimento socialista em um país, mais energicamente terá que lutar contra todas as tentativas feitas para consolidar a ideologia não socialista; tanto mais resolutamente será preciso colocar os operários em guarda contra os maus conselheiros que gritam contra a "sobrestimação do elemento consciente" etc. Com o Rabótcheie Dielo, os autores da carta econômica gritam em uníssono contra a intolerância própria à infância do movimento. A isto responderemos: de fato, nosso movimento ainda está em sua infância, e para atingir sua virilidade deve justamente imbuir-se de intolerância em relação àqueles que, através de seu culto da espontaneidade, retardam seu desenvolvimento. Nada há de mais ridículo e de mais prejudicial para se colocar ao velho militante que, há muito, já passou por todas as fases decisivas da luta!

Em terceiro lugar, o primeiro número da Rabótchaia Mysl mostra-nos que a denominação de "economismo" (à qual, evidentemente, não temos intenção de renunciar, pois de qualquer modo este vocábulo já adquiriu direito de ser citado) não traduz com exatidão suficiente o fundo da nova tendência. A Rabótchaia Mys1 não nega completamente a luta política: os estatutos da caixa que pública em seu primeiro número falam da luta contra o governo. A Rabótchaia Mysl considera somente que "o político segue sempre docilmente o econômico". (E o Rabótcheie Dielo dá uma variação dessa tese, afirmando em seu programa que "na Rússia, mais que em qualquer outro país, a luta econômica é inseparável da luta política"). Essas teses da Rabótchaia Mysl e do Rabótcheie Dielo são absolutamente falsas, se por política se entende a política social-democrata. Com muita freqüência, a luta econômica dos operários, como já vimos, está ligada, (não de forma indissolúvel, é verdade) à política burguesa, clerical, ou outra. As teses do Rabótcheie Dielo são justas, se por política se entende a política sindical, isto é, a aspiração geral dos operários a obter do Estado as medidas suscetíveis de remediar os males inerentes à sua situação, mas, que não suprimem tal situação, isto é, não suprimem a submissão do trabalho ao capital. Essa aspiração é, de fato, comum aos sindicalistas ingleses hostis ao socialismo, aos operários católicos e aos operários "de Zubatov", etc. Há política e política. Assim, pois, vemos que a Rabótchaia MysI, mesmo no que concerne à luta política, mais do que repudiá-la, inclina-se diante de sua espontaneidade, sua inconsciência. Reconhecendo inteiramente a luta política que surge espontaneamente do próprio movimento operário (ou, mais ainda: os anseios e reivindicações políticas dos operários) recusa-se por completo a elaborar ela própria uma política social-democrata específica, que responda às tarefas gerais do socialismo e as condições russas atuais. Mais adiante mostraremos que esta também é a falta cometida pelo Rabótcheie Dielo.

O grupo da auto-emacipação e o "Rabotcheie Delo"

Notas

  1. Rabótcheie Dielo n.º. 10, setembro de 1901, p, 17 e 18.
  2. O sindicalismo não exclui absolutamente toda "política", como por vezes se pensa. Os sindicatos sempre conduziram certo tipo de propaganda e certas lutas políticas (porém, não sociais-democratas). No capítulo seguinte, exporemos a diferença entre a política sindical e a política social-democrata.
  3. A. Vaneiev morreu em 1899, na Sibéria Oriental, de tuberculose contraída durante sua prisão preventiva. Por isso, julgamos possível publicar as informações no texto: respondemos por sua autenticidade, pois provêm de pessoas que conheceram pessoal e intimamente A. Vaneiev.
  4. "Criticando a atividade dos sociais-democratas dos últimos anos de século XIX, o Iskra não leva em conta a ausência, à essa época, de condições para um trabalho, que não a luta em favor de pequenas reivindicações." Assim falam os "economistas" em sua Carta aos Órgãos Sociais-Democratas Russos (Iskra, n.º. 12). Os fatos citados no texto provam que essa afirmação sobre a "ausência de condições" é diametralmente oposta à verdade. Não apenas por volta de 1900, mas também em 1895, todas as condições foram reunidas para permitir outro trabalho além da luta por pequenas reivindicações, salvo uma preparação suficiente dos dirigentes. E eis que em lugar de reconhecer abertamente esta falta de preparação entre nós, ideólogos, dirigentes, os "economistas" querem rejeitar toda a culpa quanto à "ausência de condições", à influência do meio material determinando o caminho, do qual nenhum ideólogo conseguirá desviar o movimento. O que é isto senão submissão servil ao espontâneo, a admiração dos "ideólogos" pelos seus próprios defeitos?
  5. Diga-se de passagem, que este elogio da Rabótchaia Mysl em novembro de 1898, quando o economismo sobretudo no estrangeiro definira-se completamente, partia do próprio V. I., que pouco depois tornou-se um dos redatores do Rabótcheie Dielo. E o Rabótcheie Dielo ainda negava, como continua a fazer a existência de duas tendências na social-dernocracia russa!
  6. 0 seguinte fato característico mostra a exatidão dessa comparação. Quando, após a prisão dos "dezembristas", espalhou-se entre os operários da estrada de Schlüsselburg a notícia de que o provocador, N. Mikhailov (um dentista), ligado a um dos grupos estreitamente vinculados aos "dezembristas", contribuíra para denunciá-los, os operários indignados decidiram matar Mikhailov.
  7. Extraído do mesmo editorial do primeiro número da Rabótchaia Mysl. Pode-se julgar através disso a preparação teórica desses "V. V. da social-democracia russa", que reproduziram essa grosseira vulgarização do "materialismo econômico" enquanto, em suas publicações, os marxistas faziam guerra ao verdadeiro V. V., desde há muito apelidado "o artesão da reação", por compreender da mesma maneira as relações entre o político e o econômico!
  8. Os alemães possuem até uma palavra especial, Nur-Gewerkschaftler, para designar os partidários da luta "exclusivamente sindical".
  9. Grifamos atuais para os fariseus que dão de ombros, dizendo: é fácil agora, denegrir a Rabótchaia Mysl, mas tudo isso constitui um passado longínquo. Mutato nomine de te fabula narratur, responderemos a esses fariseus modernos, cujo servilismo absoluto às idéias da Rabótchaia Mysl será demonstrado mais adiante.
  10. Carta dos "economistas" no n.º. 12 do Iskra.
  11. Rabótcheie Dielo, n.º. 10.
  12. Neue Zeit, 1901-1902, XX, 1, n.º. 3, p. 79. O projeto da comissão de que fala K. Kautsky foi adotado (no final do ano passado) pelo Congresso de Viena sob uma forma um pouco modificada.
  13. Naturalmente, isto não significa que os operários não participem dessa elaboração. Mas não participam na qualidade de operários, participam como teóricos do socialismo, como os Proudhon e os Weitling; em outras palavras, não participam senão na medida em que conseguem adquirir os conhecimento mais ou menos perfeitos de sua época, e fazê-los progredir. E para que os operários o consigam com maior freqüência, é preciso esforçar-se o mais possível para elevar o nível da consciência dos operários em geral; é preciso que não se limitem ao quadro artificialmente restrito da "literatura para operários", mas que saibam assimilar cada vez melhora literatura para todos. Seria mesmo mais exacto dizer, em lugar de "se limitem", não sejam limitadas, porque os próprios operários leem e desejariam ler tudo o quase escreve também para os intelectuais: somente alguns intelectuais (deploráveis) pensam que é suficiente falar "aos operários" da vida da fábrica e repisar aquilo que eles já sabem há muito tempo.
  14. Diz-se frequentemente: a classe operária vai espontaneamente para o socialismo. Isto é perfeitamente justo no sentido de que, mais profunda e exatamente que as outras, a teoria socialista determina as causas dos males da classe operária: é por isso que os operários assimilam-na com tanta facilidade, desde que esta teoria não capitule, ela própria, diante da espontaneidade, desde que se submeta a essa espontaneidade. Isto está, em geral, subentendido, mas o Rabótcheie Dielo esquece-se precisamente desse subentendido, ou deturpa-o. A classe operária vai espontaneamente para o socialismo, mas a ideologia burguesa mais difundida (e constantemente ressuscitada sob as mais variadas formas) é, porém, aquela que mais se impõe espontaneamente, sobretudo ao operário.

Política sindical e política social-democrata

A agitação política e o seu estreitamento pelos "economistas"

Como Martynov aprofundou Plekhanov

As revelações políticas e "A educação para a atividade revolucionária"

O que há de comum entre o "economismo" e o "terrorismo"

A classe operária como combatente de vanguarda pelo socialismo

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Os métodos artesanais dos economistas e a organização dos revolucionários

O que é o trabalho artesanal?

Trabalho artesanal e "economismo"

A organização dos operários e a organização dos revolucionários

Envergadura do trabalho de organização

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O trabalho à escala local e nacional

Plano de um jornal público para toda a Rússia

Quem se escandalizou com o artigo "Por onde começar"

Pode um jornal ser um organizador coletivo?

Qual o tipo de organização de que necessitamos?

Conclusões

Anexo: Tentativa de união do Iskra e do Rabotcheie Dielo

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