Biblioteca:1964: a conquista do Estado: mudanças entre as edições

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(e) José Maria BELLO. A ''history of modem Brasil 18891964.'' Stan-ford, Stanford Univ. Press. 1968. p. 279-96.</ref> O equilíbrio instável entre os grupos dominantes e. mais ainda, a incapacidade de qualquer desses grupos de assumir o controle do Estado em benefício próprio e, ao mesmo tempo, representar o conjunto dos interesses econômicos privados, constituíram elementos típicos da política da década, expressando precisamente a crise da hegemonia política oíigárquica, a qual foi marcada pela revolução de 1930.
(e) José Maria BELLO. A ''history of modem Brasil 18891964.'' Stan-ford, Stanford Univ. Press. 1968. p. 279-96.</ref> O equilíbrio instável entre os grupos dominantes e. mais ainda, a incapacidade de qualquer desses grupos de assumir o controle do Estado em benefício próprio e, ao mesmo tempo, representar o conjunto dos interesses econômicos privados, constituíram elementos típicos da política da década, expressando precisamente a crise da hegemonia política oíigárquica, a qual foi marcada pela revolução de 1930.
Apesar de a indústria e de os interesses agro-exportadores haverem estabelecido um "estado de compromisso", eles tiveram uma coexistência difícia e o período foi marcado por crises contínuas a partir de 1932, o que levou ao estabelecimento do Estado Novo em 1937.<ref>13. Para a sucessão de conflitos políticos e sociais, conspirações e tentativas de golpe, vide
(a) Leôncio BASBAUM, ''História sincera da república: de 1930 a 1960.'' São Paulo. Ed. Fulgor Lida., 1968. p. 13-101.
(b) Edgard CARONE, ''op. cit.'' p. 283-378.</ref> Para a burguesia industrial, que estava então afirmando o seu poderio econômico, eram inaceitáveis as dissidências das classes dominantes articuladas politicamente no seu interior, tais como se manifestaram na revolução de 1932 ou no, movimento fascista (integralismo)<ref>Os integralistas foram a versão brasileira dos fascistas. Vide
(a) Hélgio TRINDADE. A açâo integralista brasileira: aspectos históricos e ideológicos. ''Dados,'' Rio de Janeiro (10):25-60. IUPERJ, 1973.
(b) Hélgio TRINDADE. ''Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30.'' São Paulo. DIFEL, 1974.
(c) José CHAZIN. O ''integralismo dc Plínio Salgado.'' São Paulo, Ed. Grijalbo. 1978.
(d) Evaldo Amaral VIEIRA. ''Oliveira Vianna &. o estado corporativo.'' São Paulo. Ed. Grijalbo, 1976.</ref> da metade da década de trinta e que impregnou a ideologia nacionalista daquele período. Além disso, reações organizadas por parte das classes subordinadas como, por exemplo, o levante comunista de 1935, a formação de uma Frente Nacionalista Negra<ref>Vide Eduardo de Oliveira e OLIVEIRA. Movimentos políticos negros no início do século XX no Brasil e nos Estados Unidos. ''Caderno de estudos sobre a contribuição do negro na formação social brasileira. Rio de Janeiro,'' Univ. Federal Fluminense, 1976. p. 6-10 (Instituto dc Ciências Humanas e Filosofia).</ref> em meados da década de trinta, ou a criação da Aliança Nacional Libertadora<ref>A Aliança Nacional Libertadora, fundada em 1935 logo após a criação de frentes populares na Europa, aliança esto que foi considerada ilegal no mesmo ano. tornou-se a primeira organização política nacional das classes populares. Vide Ronald H. CHiLCOTE. ''The Brazilian communist party — 1922-1972.'' Oxford. Oxford Univ. Press. 1974.</ref> tinham de ser reprimidas. Os industriais perceberam que precisavam de uma liderança forte para conseguir disciplinar o esforço nacional e para impor e administrar sacrifícios regionais e de classe apropriados para a consolidação da sociedade industrial.<ref>O. IANNI, op. ''cit.'' p. 49.</ref>
O "estado de compromisso", forjado no processo sócio-político do início da década de trinta, foi então remodelado a partir das experiências de um novo Estado traduzido pelas formas corporativistas de associação<ref>Phillipc C. Schmitter fez um estudo aprofundado do corporativismo associativo moslrando-o como uma forma de articulação e exclusão dc interesses, o qual é ex-tremamente valioso para o entendimento desse período. Vide ''Interest. conflict and polilical change in Brazil.'' Califórnia. Stan-ford Univ. Press. 1971.</ref> e apoiado por formas autoritárias de domínio.<ref>Para uma análise completa de uma supervisão politicamente autoritária do movimento trabalhista brasileiro e das classes trabalhadoras, vide Kenneth Paul ERICKSON. ''The Brazilian corporative state and working class politics.'' Berkeley, Univ. of California Press, 1977.</ref> O Estado Novo surgiu porque a burguesia industrial se mostrou incapaz de liderar os componentes oligárquicos do "estado de compromisso" ou para impor-se à nação através de meios consensuais, de maneira a criar uma infra-estrutura sócio-cconômica para o desenvolvimento industrial.<ref>Vide Régia de Castro ANDRADE. Perspectives in the study of Brazilian populism. ''LARU Working Paper.'' Toronto, (2J):9-I7. s. ed., 1977.</ref> O Estado Novo garantiu a supremacia econômica da burguesia industrial e moldou as bases de um bloco histórico<ref>O conceito de bloco histórico é tomado a Antônio Gramsci. Em linhas gerais, um bloco histórico pode ser definido como a "unidade de estrutura e superestrutura, de elementos opostos e distintos", "ou seja, o conjunto complexo, contraditório e discordante das superestruturas é a reflexão do conjunto das relações sociais da produção". Vide
(a) Q. HOARE A G. NOWELL-SMITH. ''op. cit. p.'' 137-38. 356-57. 366. 376-77.
(b) A. GRAMSCI. ''II materialismo storico.'' Roma, Ed. Riuniti, 1971. p. 46-7.
O conceito de bloco histórico é empregado como a "articulação interna de uma dada situação histórica", isto é, a integração e incorporação [articulação] de diferentes classes sociais [opostas] e categorias sociais [distintas] sob a liderança de uma classe dominante ou bloco de frações. Essa classe dominante ou bloco de poder consegue assegurar o consenso e o consentimento das classes e grupos subordinados e subalternos em decorrência de sua capacidade de definir e manter as normas de exclusão social e política. Assim, a tradução política da noção de bloco histórico é de hegemonia. No entanto, não se deve entender hegemonia como uma mera legitimação ou aquiescência a um conjunto de valores. pois ela envolve o exercício de diferentes formas de coerção na própria definição das básicas relações classistas de força. Sobre hegemonia e bloco histórico, vide
(a) Hughes PORTELLI. ''Gramsci'' y ''el bloque histórico.'' México, Siglo XXI, 1979. p. 70-91, 119.
(b) Maria Antoniclta MACCIOCHI. ''A favor de Gramsci.'' Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. p. 148-50.
O bloco histórico é então ''aufgehebt'' (preservado e encoberto, anulado e reproduzido) pelo Estado, isto é, pela "sociedade civil e política". Vide
(a) Christine BUCI GLUCKSMANN. ''Gramsci e Io stato.'' Roma, Ed. Riuniti, 1976. p. 63-88. 95-140.
(b) B. de G1OVANNI, V. GERRATA-NA &. L. PAGGL ''Egemonia, stato, partito in Gramsci''. Roma, Ed. Riuniti, 1977.</ref> burguês, concentrando as energias nacionais e mobilizando recursos legitimados por noções militares de ordem nacional e de progresso,<ref>A burguesia industrial e os novos interesses ligados ao desenvolvimento empresarial precisavam de uma força nova — o "Novo Estado" — independente de qualquer compromisso ou condição anteriores, força esta que se tomaria o poder tutelar da nação. Não se esperava que o "Novo Estado" fosse o "árbitro" das classes já mencionadas, mas sim o supervisor de um bloco histórico liderado pela burguesia, no qual os interesses agrários tradicionais e outros fatores de pressão fossem acomodados. O Estado, aparentemente colocado acima e além das classes e diferenças regionais, tornou-se o partido de todo o bloco dominante. Contudo, o apelo burguês quanto a uma solução burocrático-militar para os problemas sociais e econômicos da industrialização não significava que os industriais e banqueiros se voltariam para uma apatia política. A burguesia não estava satisfeita com a exclusiva "dominação de seus interesses". Ela queria que seus próprios elementos e idéias governassem. Consequentemente, durante o Estado Novo (1937-1945) e mesmo após, figuras empresariais tiveram posições-chave no Executivo. Somente após a queda do Estado Novo é que os políticos tentaram generalizar as propostas parlicularistas do empresariado. A forma pela qual o Estado Novo foi aprovado pela burguesia pode ser vista em Edgard CARONE. A ''terceira república: 1937-1945.'' São Paulo, DIFEL, 1976. p. 349-97.
Atenção especial deve ser dada à carta aberta a Getúlio Vargas publicada em ''O Estado de São Paulo,'' em 19 de abril de 1942, assinada pela Federação das Indústrias, pela Associação Comercial de São Paulo e por um grande número de corporações distintas. Vide também
(a) Régis de Castro ANDRADE, ''op. cit.'' p. 15 e nota bibliográfica 23.
(b) Eli DINIZ, ''op. cit.'' Cap. 2. p. 94-109.</ref> cujos interesses pela industrialização mutuamente reforçavam os interesses dos industriais. Sob a égide do Estado Novo, industriais e proprietários de terra tornaram-se aliados. Contudo, a convergência de interesses não se dissolveu em identidade de interesses.<ref>O termo "convergência de classes” aplica-se a uma situação onde diferentes classes se acham reciprocamente acomodadas no aparelho do Estado com um relacionamento contraditório e competitivo. Elas são basicamente reconciliáveis em decorrência de sua ligação estrutural, com domínio político servindo de mediador. Sobre essa convergência de interesses, vide Hamza ALAVI. The state in post colonial societies: Pakístan and Bangladesh. ''New Left Review,'' London, (74):59-82, s.d. Este capítulo foi estruturado basicamente a partir da análise de Hamza Alavi.
Sobre a forma histórica concreta de tal convergência, vide L. MARTINS, ''op. cit.'' p. 114-20. Sobre a supremacia dos interesses industriais, vide E. DINIZ. ''op. cit.'' Cap. 4 e 5.</ref> Conflitos e tensões marcaram o seu relacionamento. e foi esse elemento de competição mútua que tomou possível, e até mesmo necessário, que o aparelho burocrático-militar do Estado Novo tivesse um papel de intermediário,<ref>Para interpretação do papel político e econômico do Estado Novo, vide
(a) E. CARONE, ''A terceira... op. cit.'' p, 134 et passim.
(b) L. BASBAUM. ''op. cit.'' p. 105-06.
(c) E. CARONE, ''O Estado Novo: 1937-1945.'' São Paulo, D1FEL, 1976.
(d) E. DINIZ. ''op. cit.'' Cap. 5 e 6.
(e) L. MARTINS, ''op. cit. p.'' 202-66. 288-309.</ref> o que favoreceu uma interferência contínua das Forças Armadas na vida política da nação. A intervenção do aparelho burocrático-militar na vida política assegurava a coesão do sistema, ao mesmo tempo em que se tomava um fator de perturbação nas tentativas de uma institucionalização política a longo prazo.<ref>Para interpretações do papel político das Forças Armadas durante esse período, vide
(a) Edmundo CAMPOS. ''Em busca de identidade: o exército e a política na sociedade brasileira.'' Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1976.
(b) E. DINIZ. ''op. cit.'' p. 292-93.</ref>


== Notas bibliográficas ==
== Notas bibliográficas ==
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Edição das 15h24min de 10 de janeiro de 2024

Este livro é o resultado de uma pesquisa realizada entre 1976 e 1980 para uma tese de doutorado na Universidade de Glasgow, Inglaterra. Um periodo fundamental da história brasileira foi reconstituído em bases documentais. Os fatos e os personagens foram indicados a partir de registros concretos e não de hipóteses ou suposições. O objetivo central desse trabalho foi identificar as forças sociais que emergiram na sociedade brasileira com o processo de internacionalização, em sua etapa moderna, e acompanhar sua intervenção no Estado e na sociedade brasileira. Essa história passa pela mediação de atores concretos, de pessoas ou instituições, que respondem a valores, objetivos e estratégias das forças sociais que atuam no cenário político, em conjunturas determinadas. Aqui o que interessa não é tanto Identificar o ator, suas intenções e características pessoais, mas descobrir no processo histórico o papel e a função das forças sociais e de que formas concretas elas fazem prevalecer seus interesses e suas concepções no confronto com as demais.

Nessa pesquisa, no entanto, fol possível documentar a relação entre os atores e as forças sociais, em cenários públicos e privados, através da reconstituição da história feita em grande parte pelos próprios atores.

Agradecimentos

Este livro é fruto de uma pesquisa cujo texto básico foi produzido ao longo de três anos consecutivos. Ele encerra o percurso intelectual e acadêmico de uma década de vivência como estudante universitário. Durante esse período, as mais variadas pessoas me beneficiaram com seu diálogo e amizade. Lamentavelmente, não posso expressar meu agradecimento a cada um em particular, pois a relação seria extensa; entretanto, algumas pessoas merecem especial destaque. Aron Neumann, in memoriam, foi modelo de persistência e dedicação, amigo nas horas certas. O Prof. Aryeh Grabois, o Prof. Abraham Yassour e o Prof. Teodor Shania foram exemplos de seriedade acadêmica quando da minha passagem, como estudante, pela University of Haifa, Israel. Tive o privilégio de participar, na Leeds University, Inglaterra, do curso de mestrado sob a crientação do Prol. Ralph Miliband e do Prof. Hamza Alavi; nesse fértil ambiente de discussão, expandiram se meus horizontes intelectuais e passei a esboçar muitas das questões e problemas que levaram à definição da temática da minha tese, agora transformada em livro. Na realização deste trabalho, usufrui da boa vontade de muitos amigos e colegas da University of Glasgow, Escócia, que devotaram tempo e esforço, fazendo críticas às versões preliminares. Agradeço especialmente a Otávio Dulci, que me brindou com sua acurada compreensão da realidade brasileira, a Régis de Castro Andrade, pelo diálogo frutifero e profunda sensibilidade, a Herbert de Sousa, que visualizou o alcance deste trabalho e me incentivou a realizá-lo, e a Galeno de Freitas, cujo conhecimento da vida política do Brasil foi de grande ajuda. Meu reconhecimento vai para o Prof. Emil Rado, conselheiro para pós-graduados da University of Glasgow, e para o Prof. Andrew Skinner, diretor do Comitê de Pós-Graduação, sem cuja equilibrada intervenção no conflito que motivou a mudança de orientador de tese eu não teria tido a tranquilidade para realizar este trabalho, Minha gratidão é imensa para com o Dr. Simon Mitchell, que assumiu a meio caminho a orientação da tese e cuja extrema dedicação, sensibilidade e críticas perspicazes foram fundamentais para concluir a tese. Brian Poll, professor e amigo, me estimulou durante s elaboração do trabalho e me deu pleno apoio moral para enfrentar as dificuldades extrínsecas ao mérito da pesquisa. David Stansfield, Francis Lambert, John Parker e Phil O'Brien, professores do Institute of Latin American Studies da Univecsity of Glasgow, também me encorajoram. Desejo registrar meu agradecimento so Social Science Research Council da Grã-Bretanha. Sob os auspícios de seu desinteressado apoio, realizei, de 1976 a 1980, a pesquisa de campo no Brasil e nos Estados Unidos da qual extraí fundamentos para este livro. Uma grande parte da versão original deste trabalho foi datilografada com muito empenho e carinho por Ruth Res, em Glasgow. Também cooperaram May Townsley e Anne Res, secretárias do ILAS, Yvonne Guerrero e as bibliotecárias do ILAS e da University of Glasgow. Fui afortunado em ter Else, Ayeska, Ceres e Glória na tradução do livro, o que fizeram com dedicação e senso profissional, corrigindo erros e ajudando a melhorar o estilo. Agradeço-lhes, mesmo se nem sempre soube seguir os seus conselhos. Aurea, a minha mulher, me deu seu apoio constante, sua companhia de todas as horas, fundamenta! pars quem trabalha sob a pressão de realizar uma pesquisa desta envergadura, mesmo em detrimento de seus próprios estudos. A ela, por tanto... e por muito mais...

Nenhuma das pessoas acima mencionadas tem responsabilidade alguma pelos conceitos aqui emitidos, nem pelos dados e documentos apresentados, que é só minha.

RA. Dreifuss

A formação do populismo

Até 1930, o Estado brasileiro foi liderado por uma oligarquia[1] agro-comercial, na qual predominavam as elites rurais do nordeste, os plantadores de café de São Paulo e os interesses comerciais exportadores?[2]

Essa oligarquia formou um bloco de poder[3] de interesses agrários, agro-exportadores e interesses comerciais importadores dentro de um contexto neo-colonial, bloco este que foi marcado pelas deformidades de uma classe que era ao mesmo tempo “cliente-dominante”.[4] Foi sob a tutela política e ideológica desse bloco de poder oligárquico e também sob a influência da supremacia comercial britânica nos últimos vinte e cinco anos do século XIX que se formou a burguesia industrial.[5]

Durante a década de vinte, novos centros econômicos regionais foram consolidados sob novas bases econômicas como, por exemplo, um Rio Grande do Sul agrário e um Rio de Janeiro e São Paulo industriais. O sistema bancário, que havia em grande parte se desenvolvido a partir de interesses agrários, concentrou-se principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Essas mudanças econômicas forçaram um deslocamento do poder político agrário e comercial do nordeste para a região sudeste do país e das tradicionais elites agrárias para novos grupos urbanos.[6]

Essas mudanças abriram caminho para o surgimento de figuras políticas como as de Getúlio Vargas, João Daudt d’Oliveira. Oswaldo Aranha (Rio Grande do Sul). Vicente Galliez, Valentim Bouças, Ary Frederico Tones (Rio de Janeiro), Roberto Simonsen, Teodoro Quartim Barbosa (São Paulo) e Evaldo Lódi (Minas Gerais), empresários e políticos que marcaram uma era.[7]

A urbanização e o desenvolvimento industrial exerceram efeitos desorga-nízadores sobre a frágil estrutura do estado oligárquico. No final da década de vinte, através de um delicado acordo entre os governos estaduais de São Paulo e Minas Gerais (acordo este conhecido como “política café com leite”, uma modalidade de “Bonapartismo civil”[8] que deu nome ao período), o bloco de poder oligárquico tentou opor-se ao desafio da burguesia e vencer a crise da oligarquia e dos setores cafceiros em particular. A crise do domínio oligárquico permitiu que pressões cada vez maiores fossem exercidas pela fração industrial, apoiada por outros grupos sociais, principalmente pelas classes médias. A fração industrial formou um bloco burguês que lutou por redefinir as relações de podei dentro do Estado brasileiro, tarefa esta que foi facilitada por pressões sofridas pela economia oligárquica em conscqüência da crise capitalista de 1929.[9]

A burguesia emergente, porém, não destruiu, nem política nem economicamente, as antigas classes agrárias dominantes para impor sua presença no Estado; pelo contrário, aceitou cm grande parte os valores tradicionais da elite rural.[10] é irrelevante para efeitos da presente análise saber se isso aconteceu por não ter a burguesia força política ou econômica suficiente para destruir os baluartes políticos e a estrutura sócio-econômica da oligarquia, ou se foi por não querer ou não precisar fazê-lo. O importante é que a burguesia industrial conseguiu identidade política face ao bloco oligárquico e, ao mesmo tempo, estabeleceu um novo "compromisso de classe” no poder com os interesses agrários, particularmente com os setores agro-exportadores. £ precisamente através dessa dupla ação que o aparecimento e consolidação da burguesia devem ser entendidos, pois sua ligação umbilical com a oligarquia teria importantes consequências históricas, originando o chamado "estado de compromisso"[11] institucionalizado pela constituição de 1954. O governo de Getúlio Vargas teve então de se movimentar dentro de uma complicada trama de conciliações efêmeras entre interesses con* flitantes. Nenhum dos grupos participantes dos mecanismos de poder — as classes médias, setores agro-exportadores. a indústria e os interesses bancários — foi capaz de estabelecer sua hegemonia política e de representar seus interesses particulares como sendo os interesses gerais da nação.[12] O equilíbrio instável entre os grupos dominantes e. mais ainda, a incapacidade de qualquer desses grupos de assumir o controle do Estado em benefício próprio e, ao mesmo tempo, representar o conjunto dos interesses econômicos privados, constituíram elementos típicos da política da década, expressando precisamente a crise da hegemonia política oíigárquica, a qual foi marcada pela revolução de 1930.

Apesar de a indústria e de os interesses agro-exportadores haverem estabelecido um "estado de compromisso", eles tiveram uma coexistência difícia e o período foi marcado por crises contínuas a partir de 1932, o que levou ao estabelecimento do Estado Novo em 1937.[13] Para a burguesia industrial, que estava então afirmando o seu poderio econômico, eram inaceitáveis as dissidências das classes dominantes articuladas politicamente no seu interior, tais como se manifestaram na revolução de 1932 ou no, movimento fascista (integralismo)[14] da metade da década de trinta e que impregnou a ideologia nacionalista daquele período. Além disso, reações organizadas por parte das classes subordinadas como, por exemplo, o levante comunista de 1935, a formação de uma Frente Nacionalista Negra[15] em meados da década de trinta, ou a criação da Aliança Nacional Libertadora[16] tinham de ser reprimidas. Os industriais perceberam que precisavam de uma liderança forte para conseguir disciplinar o esforço nacional e para impor e administrar sacrifícios regionais e de classe apropriados para a consolidação da sociedade industrial.[17]

O "estado de compromisso", forjado no processo sócio-político do início da década de trinta, foi então remodelado a partir das experiências de um novo Estado traduzido pelas formas corporativistas de associação[18] e apoiado por formas autoritárias de domínio.[19] O Estado Novo surgiu porque a burguesia industrial se mostrou incapaz de liderar os componentes oligárquicos do "estado de compromisso" ou para impor-se à nação através de meios consensuais, de maneira a criar uma infra-estrutura sócio-cconômica para o desenvolvimento industrial.[20] O Estado Novo garantiu a supremacia econômica da burguesia industrial e moldou as bases de um bloco histórico[21] burguês, concentrando as energias nacionais e mobilizando recursos legitimados por noções militares de ordem nacional e de progresso,[22] cujos interesses pela industrialização mutuamente reforçavam os interesses dos industriais. Sob a égide do Estado Novo, industriais e proprietários de terra tornaram-se aliados. Contudo, a convergência de interesses não se dissolveu em identidade de interesses.[23] Conflitos e tensões marcaram o seu relacionamento. e foi esse elemento de competição mútua que tomou possível, e até mesmo necessário, que o aparelho burocrático-militar do Estado Novo tivesse um papel de intermediário,[24] o que favoreceu uma interferência contínua das Forças Armadas na vida política da nação. A intervenção do aparelho burocrático-militar na vida política assegurava a coesão do sistema, ao mesmo tempo em que se tomava um fator de perturbação nas tentativas de uma institucionalização política a longo prazo.[25]

Notas bibliográficas

  1. O termo oligarquia, da forma em que é usado nesta análise, engloba capitalistas com interesses comerciais exportadores, latifundiários e elementos da burguesia agrária. designando o círculo restrito das classes dominantes da República Velha e que ainda eram economicamente poderosos durante a Segunda República. Sobre o conceito de oligarquia e a questão da legitimação oligárquica. vide Alain ROUQUIE. Oligarquia o burguesia: el problema de los grupos dominantes en América Latina. Bielefeld. mar 1978. Mimeo-grafado.
  2. Para uma análise do período, vide (a) Fernando H. CARDOSO & Enzo FALETTO – Dependência e desenvolvimento na América Latina Rio de Janeiro. Zahar. 1970. (b) Luciano MARTINS. Pouvoir et développèment économique. Paris. Ed. An-Ihropos. 1976. Cap. |.
  3. Sobre o conceito de bloco de poder, vide Nicos POULANTZAS. Political power and social classes. London, NLB, 1975. p. 141. 229-45.
  4. Octavio IANNJ el alii. Processo político e desenvolvimento econômico In: Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1965, p. 16-17.
  5. Sobre a origem da indústria, vide Sérgio SILVA. Expansão ca ferira e origens da Indústria no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Alfa-Omcga. 1976.
  6. A partir de 1920. a região sul respon-sabilizava-se por mais de 50% da produção industrial c. a partir de 1940, mais de 50% do produção agrária total cobia também àquela região. Enquanto isso, o nordeste c a região leste produziam menos de 43%. Vide (a) Paulo de Assis RIBEIRO. Quem elege quem. Rio de Janeiro, IPES, 1962. p. 4. Mimeografado. (b) P. EVANS, op. cit. Cap. 2 c 3. (e) Warrcn DEAN. The industrializalion of São Paulo 18801945. Ausxin. Univ. of Texas Press, 1969.
  7. Sobre o papel desses empresários, vide (a) Eli DINIZ. Empresário, Estado e capitalismo no Brasil 1930-1945. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. (b) Warrcn DEAN. op. cit. (c) Luciano MARTINS, op. cit Cap. 2. Uma grande porte desses empresários, seus filhos e outros pnrentes estariam na liderança do golpe de 1964.
  8. O conceito de "Bonopartismo" é usado como um cânone de interpretação histórica e não para se referir à combinação miIitar-imperial concreta que tomou o poder na França. Vide Quentin HOARE & Ocofírcy NOWELL-SMITH. Selections frorn the prison notebooks of Antonio Gramsci. London, Lawrence & Wishort, 1973. p. 216-17, 227. O termo "Bonapartismo" é usado em relação à reestabilização do equilíbrio político ameaçado, isto é, a supremacia das classes governantes através da intervenção política, a qual reprime o movimento político. O acordo entre as elites civis dos Estados de São Paulo e Minas Gerais com o objetivo de se unirem e controlarem a situação representou a intervenção repressora mencionada. Os governadores desses dois Estados agiram como "partidos", acima e além dos próprios partidos.
  9. (a) E. DINIZ. op. cit. p. 50-51. (b) Francisco de OLIVEIRA. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Seleções ÇEBRAP, São Paulo, (1):9, Ed. Brasiíien-se, CEBRAP, 1975.
  10. Getúlio Vargas e a burguesia industrial abraçaram uma ideologia tutelar, visando, porem, uma transformação parcial da sociedade. Sobre o conceito de ideologia tutelar, vide Samuel HUNTINGTON & Clement H. MOORE. Authoritarian polities in modern society: the dynamics of established one-party systems. New York. Basic Books, 1970. p. 510. Outra forma de controle que desmentia a criação de um Estado burguês em 1930 foi a recusa do sufrágio universal à população brasileira. Até 1933, foram registrados 1.500.000 eleitores, aproximadamente 4% da população total. Vide Paulo de Assis RIBEIRO, op. cit. p. 5. Até mesmo os Tenentes, que com seu ímpeto modernizador haviam sido os pontas de lança do Revolução de 1930, e que poderiam ter sido o fator ideológico e organizacional de coalizão na formação de um bloco antioligárquico e de classes médias e industriais no poder, foram rapidamente absorvidos pela política regional ou pela hierarquia militar, ou foram desmembrados em decorrência de lutas faccionárias.
  11. Sobre as condições que levaram à formação do "estado de compromisso", vide (a) Juarez Brandão LOPES. Desenvolvimento e mudança social: formação da sociedade urbano-industrial no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, MEC, 1976. (b) Francisco WEFFORT. El populísmo en Ia política brasilena. In: BERNADET, Jean Claude et al. Brasil hoy. México, Siglo XXI, 1968. p. 64-71.
  12. Para uma análise dos vários grupos econômicos conflitantes, dos choques entre as classes sociais e do sistema político do período entre a Revolução de 1930 e o Estado Novo, vide (a) Edgard CARONE. A república nova: 1930-1937. São Paulo, DIFEL, 1976. p. 21-77, 81-151, 155-279. (b) Luiz Werneck VIANNA. Liberalismo e sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1976. Cap. 3, 4 e 5. (c) Moniz BANDEIRA. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1973. Parte 3. (d) Glauco CARNEIRO. História das revoluções brasileiras. Rio de Janeiro. Ed. O Cruzeiro. 1965. V. 2, Cap. 16, 17, 18 e 19. (e) José Maria BELLO. A history of modem Brasil 18891964. Stan-ford, Stanford Univ. Press. 1968. p. 279-96.
  13. 13. Para a sucessão de conflitos políticos e sociais, conspirações e tentativas de golpe, vide (a) Leôncio BASBAUM, História sincera da república: de 1930 a 1960. São Paulo. Ed. Fulgor Lida., 1968. p. 13-101. (b) Edgard CARONE, op. cit. p. 283-378.
  14. Os integralistas foram a versão brasileira dos fascistas. Vide (a) Hélgio TRINDADE. A açâo integralista brasileira: aspectos históricos e ideológicos. Dados, Rio de Janeiro (10):25-60. IUPERJ, 1973. (b) Hélgio TRINDADE. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo. DIFEL, 1974. (c) José CHAZIN. O integralismo dc Plínio Salgado. São Paulo, Ed. Grijalbo. 1978. (d) Evaldo Amaral VIEIRA. Oliveira Vianna &. o estado corporativo. São Paulo. Ed. Grijalbo, 1976.
  15. Vide Eduardo de Oliveira e OLIVEIRA. Movimentos políticos negros no início do século XX no Brasil e nos Estados Unidos. Caderno de estudos sobre a contribuição do negro na formação social brasileira. Rio de Janeiro, Univ. Federal Fluminense, 1976. p. 6-10 (Instituto dc Ciências Humanas e Filosofia).
  16. A Aliança Nacional Libertadora, fundada em 1935 logo após a criação de frentes populares na Europa, aliança esto que foi considerada ilegal no mesmo ano. tornou-se a primeira organização política nacional das classes populares. Vide Ronald H. CHiLCOTE. The Brazilian communist party — 1922-1972. Oxford. Oxford Univ. Press. 1974.
  17. O. IANNI, op. cit. p. 49.
  18. Phillipc C. Schmitter fez um estudo aprofundado do corporativismo associativo moslrando-o como uma forma de articulação e exclusão dc interesses, o qual é ex-tremamente valioso para o entendimento desse período. Vide Interest. conflict and polilical change in Brazil. Califórnia. Stan-ford Univ. Press. 1971.
  19. Para uma análise completa de uma supervisão politicamente autoritária do movimento trabalhista brasileiro e das classes trabalhadoras, vide Kenneth Paul ERICKSON. The Brazilian corporative state and working class politics. Berkeley, Univ. of California Press, 1977.
  20. Vide Régia de Castro ANDRADE. Perspectives in the study of Brazilian populism. LARU Working Paper. Toronto, (2J):9-I7. s. ed., 1977.
  21. O conceito de bloco histórico é tomado a Antônio Gramsci. Em linhas gerais, um bloco histórico pode ser definido como a "unidade de estrutura e superestrutura, de elementos opostos e distintos", "ou seja, o conjunto complexo, contraditório e discordante das superestruturas é a reflexão do conjunto das relações sociais da produção". Vide (a) Q. HOARE A G. NOWELL-SMITH. op. cit. p. 137-38. 356-57. 366. 376-77. (b) A. GRAMSCI. II materialismo storico. Roma, Ed. Riuniti, 1971. p. 46-7. O conceito de bloco histórico é empregado como a "articulação interna de uma dada situação histórica", isto é, a integração e incorporação [articulação] de diferentes classes sociais [opostas] e categorias sociais [distintas] sob a liderança de uma classe dominante ou bloco de frações. Essa classe dominante ou bloco de poder consegue assegurar o consenso e o consentimento das classes e grupos subordinados e subalternos em decorrência de sua capacidade de definir e manter as normas de exclusão social e política. Assim, a tradução política da noção de bloco histórico é de hegemonia. No entanto, não se deve entender hegemonia como uma mera legitimação ou aquiescência a um conjunto de valores. pois ela envolve o exercício de diferentes formas de coerção na própria definição das básicas relações classistas de força. Sobre hegemonia e bloco histórico, vide (a) Hughes PORTELLI. Gramsci y el bloque histórico. México, Siglo XXI, 1979. p. 70-91, 119. (b) Maria Antoniclta MACCIOCHI. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. p. 148-50. O bloco histórico é então aufgehebt (preservado e encoberto, anulado e reproduzido) pelo Estado, isto é, pela "sociedade civil e política". Vide (a) Christine BUCI GLUCKSMANN. Gramsci e Io stato. Roma, Ed. Riuniti, 1976. p. 63-88. 95-140. (b) B. de G1OVANNI, V. GERRATA-NA &. L. PAGGL Egemonia, stato, partito in Gramsci. Roma, Ed. Riuniti, 1977.
  22. A burguesia industrial e os novos interesses ligados ao desenvolvimento empresarial precisavam de uma força nova — o "Novo Estado" — independente de qualquer compromisso ou condição anteriores, força esta que se tomaria o poder tutelar da nação. Não se esperava que o "Novo Estado" fosse o "árbitro" das classes já mencionadas, mas sim o supervisor de um bloco histórico liderado pela burguesia, no qual os interesses agrários tradicionais e outros fatores de pressão fossem acomodados. O Estado, aparentemente colocado acima e além das classes e diferenças regionais, tornou-se o partido de todo o bloco dominante. Contudo, o apelo burguês quanto a uma solução burocrático-militar para os problemas sociais e econômicos da industrialização não significava que os industriais e banqueiros se voltariam para uma apatia política. A burguesia não estava satisfeita com a exclusiva "dominação de seus interesses". Ela queria que seus próprios elementos e idéias governassem. Consequentemente, durante o Estado Novo (1937-1945) e mesmo após, figuras empresariais tiveram posições-chave no Executivo. Somente após a queda do Estado Novo é que os políticos tentaram generalizar as propostas parlicularistas do empresariado. A forma pela qual o Estado Novo foi aprovado pela burguesia pode ser vista em Edgard CARONE. A terceira república: 1937-1945. São Paulo, DIFEL, 1976. p. 349-97. Atenção especial deve ser dada à carta aberta a Getúlio Vargas publicada em O Estado de São Paulo, em 19 de abril de 1942, assinada pela Federação das Indústrias, pela Associação Comercial de São Paulo e por um grande número de corporações distintas. Vide também (a) Régis de Castro ANDRADE, op. cit. p. 15 e nota bibliográfica 23. (b) Eli DINIZ, op. cit. Cap. 2. p. 94-109.
  23. O termo "convergência de classes” aplica-se a uma situação onde diferentes classes se acham reciprocamente acomodadas no aparelho do Estado com um relacionamento contraditório e competitivo. Elas são basicamente reconciliáveis em decorrência de sua ligação estrutural, com domínio político servindo de mediador. Sobre essa convergência de interesses, vide Hamza ALAVI. The state in post colonial societies: Pakístan and Bangladesh. New Left Review, London, (74):59-82, s.d. Este capítulo foi estruturado basicamente a partir da análise de Hamza Alavi. Sobre a forma histórica concreta de tal convergência, vide L. MARTINS, op. cit. p. 114-20. Sobre a supremacia dos interesses industriais, vide E. DINIZ. op. cit. Cap. 4 e 5.
  24. Para interpretação do papel político e econômico do Estado Novo, vide (a) E. CARONE, A terceira... op. cit. p, 134 et passim. (b) L. BASBAUM. op. cit. p. 105-06. (c) E. CARONE, O Estado Novo: 1937-1945. São Paulo, D1FEL, 1976. (d) E. DINIZ. op. cit. Cap. 5 e 6. (e) L. MARTINS, op. cit. p. 202-66. 288-309.
  25. Para interpretações do papel político das Forças Armadas durante esse período, vide (a) Edmundo CAMPOS. Em busca de identidade: o exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1976. (b) E. DINIZ. op. cit. p. 292-93.