Biblioteca:A sagrada família: mudanças entre as edições

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== “A crítica crítica sob a feição do mestre encadernador” ou a crítica crítica conforme o senhor Reichardt ==
== “A crítica crítica sob a feição do mestre encadernador” ou a crítica crítica conforme o senhor Reichardt ==
<blockquote>''Friedrich Engels''</blockquote>
A Crítica crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela mesma massa. Foi tão grande o amor da Crítica pela massa que ela enviou seu próprio filho unigênito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. E eis que a Crítica se torna massa e habita entre nós, e nós vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigênito do pai. Quer dizer, a Crítica torna-se socialista e fala de “escritos sobre o pauperismo”. Ela não vê um assalto no fato de querer ser igual a Deus, mas apenas renuncia a si mesma e assume a feição de mestre encadernador, rebaixando-se ao nível mais absurdo – sim, ao absurdo crítico em línguas estrangeiras. Ela, que em sua pureza virginal e celeste, retrocedia assustada diante do contato com a massa pecadora e leprosa, dominou-se a ponto de dar importância a “''Bodz''” e “''todos'' os escritores-fonte do pauperismo, marchando há anos passo a passo com o mal de nossa época”; ela desdenha escrever aos eruditos especializados e escreve para o grande público, afasta todas as expressões de caráter estranho, todo o “cálculo latino, todo o jargão corporativo” – tudo isso ela afasta dos escritos de ''outros'', pois seria querer pedir demais desejar que a Crítica se submetesse, ela mesma, a “este regulamento da administração”. Todavia até mesmo isso ela chega a fazer – em parte, pelo menos – desembaraçando-se com admirável facilidade, se não das palavras em si, pelo menos de seu conteúdo; e quem haverá de acusá-la de fazer uso da “grande pilha de palavras estrangeiras ininteligíveis”, se ela mesma nos obriga a chegar a essa conclusão através de manifestações sistemáticas que dão conta de que essas palavras permaneceram ininteligíveis também para ela? Algumas provas dessa manifestação sistemática:<blockquote>Por isso lhes são abomináveis as ''instituições do pauperismo.''
A Crítica crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela mesma massa. Foi tão grande o amor da Crítica pela massa que ela enviou seu próprio filho unigênito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. E eis que a Crítica se torna massa e habita entre nós, e nós vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigênito do pai. Quer dizer, a Crítica torna-se socialista e fala de “escritos sobre o pauperismo”. Ela não vê um assalto no fato de querer ser igual a Deus, mas apenas renuncia a si mesma e assume a feição de mestre encadernador, rebaixando-se ao nível mais absurdo – sim, ao absurdo crítico em línguas estrangeiras. Ela, que em sua pureza virginal e celeste, retrocedia assustada diante do contato com a massa pecadora e leprosa, dominou-se a ponto de dar importância a “''Bodz''” e “''todos'' os escritores-fonte do pauperismo, marchando há anos passo a passo com o mal de nossa época”; ela desdenha escrever aos eruditos especializados e escreve para o grande público, afasta todas as expressões de caráter estranho, todo o “cálculo latino, todo o jargão corporativo” – tudo isso ela afasta dos escritos de ''outros'', pois seria querer pedir demais desejar que a Crítica se submetesse, ela mesma, a “este regulamento da administração”. Todavia até mesmo isso ela chega a fazer – em parte, pelo menos – desembaraçando-se com admirável facilidade, se não das palavras em si, pelo menos de seu conteúdo; e quem haverá de acusá-la de fazer uso da “grande pilha de palavras estrangeiras ininteligíveis”, se ela mesma nos obriga a chegar a essa conclusão através de manifestações sistemáticas que dão conta de que essas palavras permaneceram ininteligíveis também para ela? Algumas provas dessa manifestação sistemática:<blockquote>Por isso lhes são abomináveis as ''instituições do pauperismo.''


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== “A crítica crítica” na condição de “Moinhotenente” ou a crítica crítica conforme o senhor Jules Faucher ==
== “A crítica crítica” na condição de “Moinhotenente” ou a crítica crítica conforme o senhor Jules Faucher ==
<blockquote>''Friedrich Engels''</blockquote>Depois de a Crítica ter se rebaixado até o absurdo em línguas estrangeiras, de ter prestado à autoconsciência os serviços mais essenciais, e ao mesmo tempo ter libertado o mundo do pauperismo através disso, ela se rebaixa também ao ''absurdo'' na ''práxis'' e na ''história''. Ela se apossa das “''questões inglesas do dia''” e nos oferece um ''esboço da história da indústria inglesa'', que é genuinamente ''crítico''.
A Crítica, que se basta a si mesma, que se completa e encerra-se em si mesma, naturalmente não pode reconhecer a história tal como ela de fato aconteceu, pois isso significaria reconhecer a massa ruim em toda sua massificação massiva, quando se trata justamente de libertar a massa da massificação. Com isso, a história é libertada de sua massificação, e a Crítica, que adota uma atitude ''livre'' em relação a seu objeto, grita para a história: ''tu deves ter ocorrido de tal ou qual modo!'' As leis da Crítica têm, todas elas, efeito ''retroativo''; ''antes'' de seus decretos, a história ocorria de modo bem diferente do que passou a ocorrer ''depois deles''. Eis aqui por que a história massiva, a chamada história ''real'', desvia-se de maneira significativa da ''crítica'', que passa a acontecer a partir da página 4 do Caderno VI do “Jornal Literário Geral”.
Na história massiva não houve ''nenhuma cidade fabril'' antes de haver ''fábricas''; mas na história crítica, na qual o filho gera o próprio pai – coisa que já acontecia em ''Hegel'', aliás –, ''Manchester'', ''Bolton'' e ''Preston'' são florescentes cidades fabris, antes mesmo de se ter pensado em fábricas. Na história real, a ''indústria de algodão'' foi criada sobretudo graças à “''Jenny''” de Hargreaves e à “''throstle''” (máquina hidráulica de fiar) de ''Arkwright'', ao passo que a “''mule''” de ''Crompton''<ref group="2">Entre 1738 e 1835 foram feitas várias descobertas no que diz respeito à mecanização da atividade de fiar, todas elas de grande importância no desenvolvimento do capitalismo. Em 1764 foi a referida “máquina de Jenny”, de James Hargreaves, aperfeiçoada entre 1769 e 1771 por Richard Arkwright. Em 1779, a “máquina de ''mule''” ou ''Hand-Mule'', de Samuel Crompton. Em 1825 foi a vez da ''self-acting mule''ou ''self-actor'' (algo como a “auto-ativa”), a máquina de fiar automática de Richard Roberts.</ref> não foi mais que um aperfeiçoamento da ''Jenny'' através do princípio descoberto por ''Arkwright''; mas a história crítica sabe distinguir, despreza a unilateralidade da ''Jenny'' e da ''throstle'' e dá a coroa à ''mule'', fazendo dela a identidade especulativa do extremo. Na realidade, a invenção da ''throstle'' e da ''mule'' trouxe consigo de imediato a ''utilização da força hidráulica'' para esse tipo de máquinas, mas a Crítica crítica diferencia os princípios amontoados e confusos da história bruta e faz com que a utilização apareça apenas bem mais tarde, como se fosse algo bastante particular. Na realidade a descoberta da máquina a vapor ''precedeu''todas as descobertas acima citadas, mas na Crítica vemos que ela ocorre no ''final'', na condição de coroa para o todo.
Na realidade, ''a aliança de negócios'' entre Liverpool e Manchester foi, em seu significado atual, a consequência da exportação de mercadorias inglesas; na Crítica essa aliança de negócios é a ''causa'' desse fenômeno e ambas – aliança e exportação – a consequência do fato de aquelas duas cidades serem vizinhas. Na realidade, quase todas as mercadorias saem de Manchester, passam por ''Hull'' ao continente; na Crítica elas passam por ''Liverpool''.
Na realidade há, nas fábricas inglesas, todas as ''gradações'' de ''salário'', de um e meio xelim a 40 xelins e inclusive mais; na Crítica paga-se apenas ''um'' salário ao trabalhador: 11 xelins. Na realidade a ''máquina'' substitui o ''trabalho manual''; na crítica ela substitui o ''ato de pensar''. Na realidade uma ''união'' dos trabalhadores com o objetivo de aumentar o salário é permitida na ''Inglaterra''; mas na Crítica ela é proibida, uma vez que a massa tem, ela mesma, de perguntar à Crítica, se quiser se permitir tomar uma atitude. Na realidade o ''trabalho na fábrica fatiga'' de maneira significativa o trabalhador e origina enfermidades típicas – há, inclusive, várias obras medicinais que tratam exclusivamente dessas enfermidades; na crítica “o esforço excessivo não impede nem estorva o trabalho, pois a força é empreendida toda ela pela máquina”. Na realidade a máquina é uma máquina; na Crítica ela é dotada de ''vontade'', pois, uma vez que ela não descansa, o trabalhador também não pode descansar e torna-se súdito de uma vontade estranha.
Mas isso ainda não é nada de mais. A Crítica não se contenta com os ''partidos massivos'' da Inglaterra; ela cria novos, ela cria um “''partido fabril''”, pelo que a história por certo haverá de lhe agradecer. Por outro lado, ela atira fabricantes e trabalhadores de fábrica em um único montão massivo – e por que a gente haveria de se preocupar com pequenezas do tipo – e decreta que os trabalhadores de fábrica não contribuíram para o fundo da ''Anti-Corn-Law-League''<ref group="2">“Liga contra a Lei do Grão”, associação de livre-comércio fundada em 1838 pelos fabricantes Cobden e Bright em Manchester. A assim chamada “Lei do Grão”, que objetivava cercear – conforme o caso, proibir – a entrada de cereais estrangeiros, foi implantada na Inglaterra para defender os interesses dos grandes proprietários de terras, dos lordes rurais. A Liga exigia completa liberdade comercial e lutava pela extinção da “Lei do Grão” com o objetivo de reduzir os salários dos trabalhadores e enfraquecer as posições políticas da aristocracia rural. Em sua luta contra os proprietários de terra, a Liga tentou explorar as massas trabalhadoras. Mas justamente naquela época os adiantados trabalhadores ingleses começavam a trilhar o caminho que levava a um movimento independente e marcadamente político, o cartismo (cujo programa estava inscrito na chamada ''Carta do Povo''). A luta entre a burguesia industrial e a aristocracia rural terminou em 1846 com a aceitação do programa para a abolição da ''Corn-Law''. Depois disso a Liga acabou se dissolvendo.</ref> não devido a sua má vontade e ao cartismo, como pensam os fabricantes estúpidos, mas apenas devido à pobreza. Mais adiante ela decreta que com a abolição das leis inglesas acerca dos grãos, os assalariados agrícolas terão de resignar-se com uma redução de seu salário, ainda que nós gostaríamos de observar com humildade que essa classe miserável não pode prescindir de um centavo sequer daquilo que hoje ganha, sem ver-se condenada a morrer de fome. Ela decreta que nas fábricas da Inglaterra são trabalhadas dezesseis horas, mesmo que a legislação simplista e desprovida de espírito crítico da Inglaterra tenha providenciado para que não se possa trabalhar mais do que doze horas por dia. Ela decreta que a Inglaterra tem de ser uma imensa oficina para o mundo, ainda que os americanos, alemães e belgas – massivos e desprovidos de espírito crítico – pouco a pouco deteriorem os mercados ingleses um a um através de sua concorrência. Ela decreta, enfim, que a ''centralização da propriedade'' e suas consequências para as classes trabalhadoras não são conhecidas nem pelas classes possuidoras nem pelas desprovidas de posses na Inglaterra, mesmo que os estúpidos cartistas acreditem conhecê-las muito bem e os ''socialistas'' já pensem ter apresentado há tempo e no detalhe essas consequências, quando até mesmo tories e whigs<ref group="2">''Whig'': o termo nomeia os membros de um dos dois grandes partidos políticos da Inglaterra do século XVII; eram não conformistas que rejeitavam o poder absolutista do rei e opunham-se aos ''tories'' (do partido conservador); a palavra, originalmente pejorativa, significava “ladrão de cavalo”.</ref> como ''Carlyle, Alison e Gaskell'' já tenham demonstrado ter conhecimento desses resultados em suas obras.
Crítica decreta que a ''proposta de lei de dez horas'' encaminhada por lorde ''Ashley''<ref group="2">A luta pela restrição legal do trabalho diário a dez horas já começara na Inglaterra no final do século XVIII e compreendia grande parte do proletariado a partir dos anos 1830. Uma vez que os representantes da aristocracia rural estavam dispostos a explorar essa solução popular em sua luta contra a burguesia industrial, passaram a defender a “proposta de lei de dez horas” no parlamento. O movimento em favor da lei era encabeçado – no parlamento – por lorde Ashley, cognominado “''tory'' filantrópico”.</ref> constitui uma frouxa medida de ''juste-milieu'' [“justo meio”] e que o próprio lorde Ashley seria uma “imagem fiel da ação constitucional”, ao passo que os fabricantes, os cartistas, os proprietários de terras, curto e grosso, toda a massificidade da Inglaterra, vêm considerando até agora a dita medida como a expressão por certo mais moderada possível de um princípio marcado pelo radicalismo, uma vez que dispõem o machado sobre a raiz do comércio exterior, alcançando com isso a raiz do sistema fabril; mais que dispor o machado, aliás, eles cravam-no profundamente dentro dela. Mas a Crítica crítica considera-se melhor ajuizada a respeito. Ela sabe que a questão das dez horas foi tratada ante uma “Comissão” da Câmara dos Comuns, apesar de os jornais acríticos quererem nos fazer crer que essa “Comissão” constituiu a Câmara em si, ou seja, que foi um “''Comitê da Câmara inteira''”; mas a Crítica necessariamente tem de suspender essa bizarria da Constituição inglesa.
A Crítica crítica, que ''gera'' ela mesma a ''estupidez da massa'' – sua antagônica –, gera também a estupidez de sir James Graham e põe em sua boca, através do esclarecimento crítico da língua inglesa, coisas que o acrítico Ministro do Interior jamais disse, a fim de que a sabedoria da Crítica refulja de modo tanto mais brilhante ante a estupidez de Graham. Ela afirma que Graham teria dito que as máquinas das fábricas estariam desgastas em doze anos, pouco importando se funcionassem durante dez ou doze horas diárias, razão pela qual o projeto de lei das dez horas diárias impediria os capitalistas de reproduzir em doze anos, mediante o trabalho das máquinas, o capital investido nelas. A Crítica pretende mostrar que, desse modo, pôs uma conclusão falaciosa na boca de sir James Graham, pois uma máquina que trabalhar diariamente um sexto a menos do tempo normal com certeza haverá de poder ser utilizada por um tempo maior.
Por mais correta que seja essa observação da Crítica crítica, inclusive contra sua própria conclusão falaciosa, há que se concordar, por outro lado, com sir James Graham, uma vez que ele mesmo disse que a máquina teria de funcionar tanto mais rápida sob um regime de dez horas, trabalhando mais, ao cabo, do que faria sem a redução do tempo – coisa que até mesmo a Crítica refere no Caderno VIII, página 32 – e que diante dessa premissa o tempo de desgaste acabaria sendo o mesmo, ou seja, doze anos. Isso tem de ser reconhecido, tanto mais porque esse reconhecimento acaba contribuindo para a fama e a glorificação “''da'' Crítica”, uma vez que apenas ''a'' Crítica e tão somente a Crítica inventou essa conclusão falaciosa para em seguida, ela mesma, dissolvê-la. A mesma generosidade ela demonstra em relação a lorde ''John Russel'', a quem ela atribui, sub-repticiamente, o propósito de mudar a forma política de governo e do sistema eleitoral, do que somos obrigados a concluir, de duas, uma: ou que o afã da Crítica em produzir necessidades é extraordinariamente grande, ou que lorde John Russel tornou-se um Crítico crítico de uma hora para outra.
Mas grandiosa de verdade a Crítica torna-se apenas na fabricação de estupidezes, ao descobrir que os trabalhadores da Inglaterra – trabalhadores que em abril e maio realizaram meetings atrás de ''meetings,'' apresentaram petições em cima de petições, e tudo em favor do projeto de lei das dez horas, eles que estavam tão agitados como já há dez anos não estavam, e isso de uma ponta dos distritos fabris até a outra –, ao descobrir que esses trabalhadores, portanto, tinham apenas um “interesse ''parcial''” na questão, ainda que esteja demonstrado que “também a redução legal de tempo de trabalho tenha ocupado sua atenção”; e quando, sobretudo, ela termina fazendo a grande, a maravilhosa, a inaudita descoberta de que “a ajuda aparentemente mais imediata que representa a abolição das leis relativas à entrada de grãos absorve e seguirá absorvendo a maior parte dos desejos dos trabalhadores, até que a realização desses desejos, que evidentemente já não podem mais ser postos em dúvida, lhes demonstre na prática a inutilidade desses mesmos desejos”. E logo os trabalhadores, acostumados a, em todos os meetings públicos, jogar púlpito abaixo aqueles que pregam a abolição da Lei do Grão, logo eles que alcançaram fazer com que a Liga contra a Lei do Grão não se atreva a celebrar um só meeting público nas cidades fabris, logo eles que consideram essa Liga seu único inimigo e que, durante a discussão da lei das dez horas, como quase sempre ocorreu anteriormente em semelhantes questões, foram apoiados pelos tories. Não deixa de ter lá sua beleza verificar também que a Crítica consegue descobrir que “os trabalhadores seguem deixando se seduzir pelas amplas promessas do ''cartismo''”, que no fundo não é mais do que apenas a expressão política da opinião pública entre os trabalhadores; e vê-la dar-se conta, nas profundezas de seu espírito absoluto, de que “as duplas tendências partidárias, a política e a dos proprietários de terras e de moinhos, ''já não'' marcham mais juntas e estão longe de coincidir uma com a outra”, sendo que até agora não era conhecido que a tendência política dos proprietários de terra e de moinhos, dado o reduzido número das duas classes de proprietários e os direitos e a legitimidade política de ambos (exceção feita ao restrito número de ''pairs'' [“pares”]), era tão abrangente, a ponto de, em vez de representar a expressão consequente, a ponta dos partidos políticos, coincidiam em absoluto e inclusive se identificavam totalmente com essas tendências políticas. Ademais é bonito de ver a Crítica crítica atribuindo aos partidários da abolição da Corn-Law a presunção de que ignoram que, ''ceteris paribus'' [“mantidas as mesmas circunstâncias”], a baixa do preço do pão acarretaria também, necessariamente, a baixa dos salários e de que tudo seguiria igual a antes; enquanto essas gentes esperam, aceitando a baixa dos salários e com isso dos custos de produção, que ocorra uma ampliação do mercado e através dela uma diminuição da concorrência entre os trabalhadores, do que resultaria, no final, a manutenção de um salário mais alto do que agora em relação aos preços do pão.
A crítica, movendo-se com beatitude artística na livre criação de seu antagônico, o absurdo, a mesma crítica que proclamava há dois anos: “A Crítica fala alemão, a teologia latim”, essa mesma Crítica agora aprendeu inglês e chama os proprietários de terra de “terratenentes” (land-owners), os fabricantes de “moinhotenentes” (mill-owners) – mill é, na língua inglesa, qualquer fábrica, cujas máquinas são impulsionadas a vapor ou pela força das águas –, os trabalhadores de “mãos” (hands), ao invés de “ingerência” diz interferência (interference) e, levada por sua infinita comiseração pela língua inglesa, regurgitante de massificidade pecaminosa, a Crítica se concede o direito de melhorá-la, inclusive, e acaba com a pedanteria que faz os ingleses assentar o título de “sir” ante os ''prenomes'' de cavaleiros e baronetes. A massa diz: “sir James Graham”; a Crítica: “sir Graham”.
Que a Crítica crítica recria a língua e a história ''inglesas'' por ''princípio'' e não por ''leviandade'', haverá de ser provado em breve através da ''profundidade'' com que ela trata a ''história do senhor Nauwerck''.
=== Notas ===
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== “A profundidade da crítica crítica” ou a crítica crítica conforme o senhor J. (Jungnitz?) ==
== “A profundidade da crítica crítica” ou a crítica crítica conforme o senhor J. (Jungnitz?) ==
<blockquote>''Friedrich Engels''</blockquote>A querela infinitamente importante do senhor Nauwerck com a Faculdade de Filosofia de Berlim não poderia passar ao largo da avaliação da Crítica crítica; ora, ela passou por experiência semelhante e tinha de tomar os fados do senhor Nauwerck como pano de fundo e através disso destacar com força tanto maior sua ''horrorosa destituição de Bonn.''<ref group="3">“''Bonner Entsetzung''”, no original. O jogo de palavras é brilhante. O verbo “''entsetzen''” pode significar tanto “destituir” quanto “horrorizar”. Com relação ao fato: o governo prussiano suspendeu temporariamente a licença de professor de Bruno Bauer – que é a quem se refere o “sua”, pois ele é o chefe da “sagrada família” – junto à Universidade de Bonn em 1841, devido a seus escritos críticos em relação à religião. Em março de 1842 ele foi afastado definitivamente da Universidade. O horizonte provinciano da “Crítica crítica” é ridicularizado ao extremo na denúncia de um probleminha de ordem privada que é elevado por seus discípulos à categoria de “acontecimento histórico-universal”.</ref> Uma vez que a Crítica está acostumada a considerar a história de Bonn como o acontecimento do século e já escreveu a “''Philosophie der Absetzung der Kritik''” (Filosofia da Remoção da Crítica), era de se esperar que ela construísse filosoficamente a ''colisão'' berlinense de um modo semelhante, indo até o mais ínfimo dos detalhes. Ela prova a priori que tudo tinha de ocorrer tal como ocorreu, e não de outro modo, a saber:
# porque a Faculdade de Filosofia tinha de “colidir” não com um lógico e metafísico, mas justamente com um filósofo do Estado;
# porque essa colisão não poderia alcançar a dureza e a decisão que teve o conflito da Crítica com a teologia na Universidade de Bonn;
# porque a colisão na verdade era uma coisa bem boba, uma vez que a Crítica já havia concentrado todo seu valor, todos seus princípios na colisão de Bonn, razão pela qual a história universal apenas poderia converter-se em plagiária da Crítica;
# porque a Faculdade de Filosofia se sentiu atacada, ela mesma, nos escritos do senhor Nauwerck;
# porque não restou ao senhor N(auwerck) outra coisa a não ser renunciar voluntariamente;
# porque a Faculdade tinha de defender o senhor N(auwerck), caso não quisesse capitular ela mesma;
# porque a “cisão interna na essência da Faculdade tinha de manifestar-se necessariamente de tal modo”, concedendo e tirando a razão ao mesmo tempo, tanto ao senhor N(auwerck) quanto ao governo;
# porque a Faculdade não encontrou nenhum motivo nos escritos de N(auwerck) que justificasse seu afastamento;
# que é o que condiciona toda a obscuridade de todo o processo;
# porque a Faculdade “na condição de entidade científica (!), se acredita (!), no direito (!), de enfocar o assunto, tomando-o pelo miolo”; e enfim
# porque ainda assim a Faculdade não quer escrever do mesmo modo que o senhor N(auwerck).
A Crítica crítica resolve essas importantes perguntas em quatro páginas, com rara profundidade, demonstrando a partir da Logik (Lógica) de Hegel por que tudo ocorreu assim e por que nenhum deus poderia intervir mudando o ocorrido. Em outra passagem a Crítica diz que não foi reconhecida ainda nenhuma época histórica; a modéstia impede-a de dizer que reconhece perfeitamente pelo menos a sua própria e a colisão de Nauwerck, que, embora não sejam épocas, ''fazem'' época segundo seu ponto de vista.
A Crítica crítica, que “suprassumiu” o “momento” da ''profundidade'' dentro de si, tornar-se-á “''Quietude do conhecer''”.
=== Notas ===
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== “A crítica crítica” na condição de quietude do conhecer ou a “crítica crítica” conforme o senhor Edgar ==
== “A crítica crítica” na condição de quietude do conhecer ou a “crítica crítica” conforme o senhor Edgar ==
=== “A Union Ouvrière” de Flora Tristan<ref group="4">Nesta seção é analisada e citada a resenha de Edgar Bauer sobre a obra ''L’union ouvrière'' (A união obreira), de Flora Tristan, editada em Paris no ano de 1843. O artigo de Edgar Bauer foi publicado no Caderno V do ''Jornal Literário Geral'' (abril de 1844).</ref> ===
<blockquote>''Friedrich Engels''</blockquote>Os socialistas franceses afirmam: O trabalhador faz tudo, produz tudo, e apesar disso não tem nenhum direito, nenhuma propriedade, enfim, não tem nada. A Crítica crítica responde através da boca do senhor ''Edgar, a Quietude do conhecer'' personificada:
Para poder criar tudo, é necessária uma consciência mais forte do que a consciência do trabalhador. Apenas invertida é que a sentença seria verdadeira: O trabalhador não faz nada, por isso não tem nada, mas ele não faz nada porque seu trabalho é sempre, permanentemente, um trabalho concreto, diário, limitado apenas a suas necessidades mais pessoais.
Aqui a Crítica atinge a completude ao alcançar aquela altura da abstração na qual ora considera como “algo”, ora como “''tudo''”, exclusivamente as criações de seu próprio pensamento e as generalidades contrárias a toda a realidade. O trabalhador não cria nada, porque cria apenas “unidades”, quer dizer, objetos físicos, tangíveis, desprovidos de espírito e de crítica, objetos que são um verdadeiro horror aos olhos da Crítica pura. Tudo o que é real, tudo o que é vivo é acrítico, massivo e, portanto, “nada”, ao passo que apenas as criaturas ideais e fantásticas da Crítica crítica são “''tudo''”.
O trabalhador não cria nada, porque seu trabalho é sempre, permanentemente, um trabalho concreto, diário, limitado apenas a suas necessidades mais pessoais; ou seja, porque as ramificações concretas e combinadas do trabalho, dentro da atual ordem universal, encontram-se separadas, postas em oposição umas às outras; resumindo, porque o trabalho não está ''organizado''. A própria sentença da Crítica, caso a interpretarmos segundo o único sentido racional que pode ter, exige a organização do trabalho. Flora Tristan, em cujo julgamento essa grande sentença logrou alcançar a luz do dia, postula o mesmo e, por causa dessa insolência – ou seja, por se antecipar à Crítica crítica –, é tratada ''en canaille''.<ref group="4">Outra expressão francesa. O apuro argumentativo é grandioso... O assunto é uma obra francesa, criticada por um autor alemão, e Engels revida usando uma expressão francesa para caracterizar a atitude do crítico alemão. ''En canaille'' – que diretamente significa “de modo canalha” – significa também “depreciativamente”, em sua versão mais atenuada.</ref> O trabalhador não cria nada; esta sentença é, aliás – se prescindirmos do fato de que o trabalhador ''individual'' não produz nada que seja ''total'', o que representa uma tautologia –, completamente maluca. A Crítica crítica não cria nada, o trabalhador cria tudo, e tudo de forma tal que enche de vergonha toda a Crítica, também em suas criações espirituais; os trabalhadores franceses e ingleses dão testemunho disso. O trabalhador cria até mesmo o ser humano; o Crítico permanecerá sempre um ser inumano, para o que lhe resta, por certo, a satisfação de ser um Crítico crítico.
Flora Tristan nos dá um exemplo daquele dogmatismo feminino que pretende possuir uma fórmula e a modela para si a partir das categorias do existente.
A Crítica crítica não faz mais do que modelar para si “fórmulas a partir das categorias do existente”, quer dizer, da existente filosofia hegeliana e dos existentes esforços sociais; fórmulas, nada mais que fórmulas, e apesar de todas as suas invectivas contra o dogmatismo ela condena-se a si mesma ao dogmatismo, ao dogmatismo ''feminino''. Sim, ela é e continuará sendo sempre uma mulher velha: a filosofia ''hegeliana'' emurchecida e enviuvada, que maquia e adorna seu corpo ressequido a ponto de alcançar a abstração mais asquerosa, olhando de soslaio por todos os cantos em busca de um cliente.<ref group="4">Uma das críticas mais duras de Marx e Engels à “Sagrada família” reside no fato de ela ter sido um simples complemento da concepção hegeliana da História. Em termos políticos era de fundo conformista e, portanto, negava a realidade – ainda de ponta-cabeça –, repudiando qualquer mudança na ordem social e econômica vigentes. A “Sagrada família” no fundo acreditava que a barreira decisiva a bloquear o desenvolvimento alemão estava nas ideias dominantes, sobretudo no que diz respeito à religião, e não na ordem social reacionária, vigente na época. No posfácio à segunda edição de ''O capital'', escrito em 1873, Marx diria: “O aspecto mistificador da dialética hegeliana já foi criticado por mim há cerca de trinta anos, em uma época em que ainda estava em moda”.</ref>
=== Béraud acerca das mulheres da vida ===
<blockquote>''Friedrich Engels''</blockquote>O senhor Edgar, que apenas uma vez sentiu compaixão pelas questões sociais, mete seu bedelho também nas “''condições das prostitutas''” (Caderno V, página 26).
Ele critica o livro de Béraud, comissário da polícia de Paris, sobre a prostituição, porque lhe interessa “''o ponto de vista''” a partir do qual “Béraud concebe a posição das mulheres da vida ante a sociedade”. A “Quietude do conhecer” fica admirada com o fato de ver que um homem da polícia tem um ponto de vista policial e dá a entender à massa que esse ponto de vista é de todo errado. O seu próprio ponto de vista... ''ela'' não dá a entender. Naturalmente! Quando a Crítica crítica decide interessar-se pelas mulheres da vida, ninguém pode exigir que isso ocorra em público.
=== O amor ===
<blockquote>''Karl Marx''</blockquote>A fim de atingir a perfeição da “Quietude do conhecer”, ''a'' Crítica crítica tem de procurar desembaraçar-se, antes de tudo, do ''amor''. O amor é uma paixão e não há nada mais perigoso para a Quietude do conhecer do que a paixão. Eis aqui o motivo pelo qual, a propósito dos romances da senhora Von Paalzow – que ele garante ter “estudado ''minuciosamente''” –, o senhor Edgar logra manter o domínio sobre “uma ''criancice'' semelhante ao ''chamado amor''”. Uma coisa dessas é um pavor e um horror, que atiça a Crítica crítica à fúria, tornando-a quase amargamente biliosa, levando-a à loucura inclusive.
O amor... é um deus cruel que, assim como toda a divindade, quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico. Seu culto é o sofrimento e o ápice desse culto é o autossacrifício, o suicídio.
A fim de metamorfosear o amor em “Moloch”, no diabo em carne e osso, o senhor Edgar transforma-o primeiro em um deus. Feito deus, quer dizer, transformado em um objeto teológico, ele passa com naturalidade ao domínio da ''Crítica da Teologia'', além do que, deus e o diabo jamais andam muito distantes um do outro, conforme se sabe. O senhor Edgar transforma o amor em um deus e em um “deus cruel”, seja dito, ao fazer do ''homem enamorado'', ou seja, do amor ''do homem'', o homem ''do amor'', ao colocar ''o “amor”'' à parte do homem como ser, autonomizando-o. Através desse simples processo, através dessa metamorfoseação do predicado no objeto, podem-se transformar criticamente todas as determinações essenciais e todas as manifestações da essência do homem em ''não essência'' e em ''alienações'' da essência. Dessa maneira, por exemplo, a Crítica crítica faz da crítica, enquanto predicado e atividade do homem, um sujeito à parte, que diz respeito apenas a si mesmo e é, por isso, ''Crítica crítica'': um “Moloch” cujo culto é o autossacrifício, o suicídio do homem, ou seja, da ''capacidade humana de pensar''.
“Objeto”, ''exclama a Quietude do conhecer'', objeto, é esta a expressão correta, pois a amada só é importante para o amante – o feminino na condição de amante pouco importa – enquanto esse ''objeto externo'' de sua ''afecção anímica'', enquanto objeto no qual ele quer ver seu próprio sentimento egoísta satisfeito.
''Objeto!'' Pavoroso! Não há nada mais condenável, mais profano, mais massivo do que um ''objeto'' – ''à bas'' [“abaixo”] o objeto! Como poderia a absoluta subjetividade, o ''actus purus,'' a crítica ''“pura”'' não ver no amor a sua ''bête noire'' [“besta negra”], seu satanás em carne e osso; o amor, que é o primeiro a ensinar de verdade ao homem a crer no mundo objetivo fora dele, que não apenas faz do homem um objeto, mas também do objeto um homem?
O amor, conforme prossegue a Quietude do conhecer, totalmente fora de si, nem sequer se contenta sem transformar o ser humano na ''categoria de “objeto”'' para o outro ser humano, mas inclusive o transforma em um objeto ''determinado e real'', ou seja, ''neste'' objeto individual-mau (vide a “Fenomenologia” de Hegel acerca do Este e do Aquele, na qual se polemiza também contra o “Este” mau), ''externo'', um objeto não apenas interior e esquecido no cérebro, mas também manifesto e aberto aos sentidos.
Amor
Não vive apenas encastelado no ''cérebro''.
Não, a amada é ''objeto sensual'' e a Crítica crítica exige, pelo menos – quando tem de se rebaixar ao reconhecimento de um objeto –, um objeto ''insensato''. Mas o amor é um ''materialista acrítico'', ''acristão''.
No fim das contas o amor chega a transformar o homem “''neste objeto externo da afecção anímica''” de outro homem, no objeto sobre o qual este outro homem satisfaz seu sentimento ''egoísta''; sentimento ''egoísta'' porque ''procura sua própria essência'' no outro homem, e assim não deve ser. A Crítica crítica é tão ''livre'' de qualquer ''egoísmo'', que para ela todo o caráter abrangente da essência humana ''se reduz a seu próprio eu''.
O senhor Edgar naturalmente não nos diz através do que a amada se diferencia dos restantes “objetos externos da afecção anímica, nos quais os sentimentos egoístas dos homens se satisfazem”. O espirituoso, plurívoco e eloquente objeto do amor consegue dizer à quietude do conhecer apenas o esquema categórico: “esse objeto externo da afecção anímica”, assim como o cometa, por exemplo, não revela ao filósofo especulativo da natureza mais do que a “negatividade”. Ao fazer do outro homem o objeto externo de sua afecção anímica, o homem até lhe confere “importância”, conforme a própria Crítica crítica confessa, mas essa importância é, por assim dizer, uma ''importância objetiva'', ao passo que a importância que a Crítica confere aos objetos não é nada mais do que a importância que ela confere a si mesma, e que por isso também não comprova sua competência no “''ser exterior'' e mau”, mas no “''nada''” do objeto criticamente importante.
Todavia, se a quietude do conhecer não possui nenhum ''objeto'' no homem real, ela possui, de outra parte, uma ''coisa'' na ''humanidade''. O amor crítico “se ''guarda'', sobretudo, de esquecer a ''coisa'' ao tratar da pessoa, coisa que não é outra senão a coisa da humanidade”. O amor acrítico não separa a humanidade do ser humano pessoal e individual.
O amor em si, na condição de paixão ''abstrata'', a gente não sabe de onde ele vem e ele vai sabe-se lá para onde e é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento ''interior''.
O amor é, aos olhos da Quietude do conhecer, uma paixão abstrata segundo a terminologia ''especulativa'', que considera o concreto como abstrato e o abstrato como concreto.<blockquote>No vale ela não nasceu
Donde ela veio, ninguém viu;
Mas seu rastro logo se perdeu,
Quando a moça se despediu.</blockquote>O amor é, para a abstração, “a moça do estrangeiro”, sem passaporte dialético, e por isso é expulsa do país pela polícia crítica.
A paixão do amor é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento ''interior'', porque ela não pode ser construída a priori, porque seu desenvolvimento é um desenvolvimento real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais. Porém o interesse principal da construção especulativa é o “de onde” e o “para onde”. O “de onde” é, por sinal, a “''necessidade'' de um conceito, sua prova e dedução” (Hegel). O “para onde” é a determinação “através da qual cada um dos elos individuais do sistema circulatório especulativo, na condição de animado pelo método, é ao mesmo tempo o começo de um novo elo” (Hegel). Portanto, o amor apenas mereceria o “interesse” da crítica especulativa caso seu “de onde” e seu “para onde” fossem passíveis de ser construídos a priori.
O que a Crítica crítica quer combater com isso não é apenas o amor, mas tudo aquilo que é vivo, tudo que é imediato, toda experiência sensual, toda experiência ''real'', inclusive, da qual não se sabe com antecipação o “de onde” e o “para onde”.
O senhor Edgar se ''estatuiu'' plenamente como “Quietude do conhecer”, mediante a dominação do amor, e agora pode comprovar sua competência junto a ''Proudhon'', demonstrando a grande virtuosidade do conhecer, para a qual o “''objeto''” já deixou de ser “''este objeto externo''”, cometendo uma ''falta de amor'' ainda maior em relação à língua francesa.
=== Notas ===
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== “A crítica crítica” na condição de merceeira de mistérios ou a “crítica crítica” conforme o senhor Szeliga ==
== “A crítica crítica” na condição de merceeira de mistérios ou a “crítica crítica” conforme o senhor Szeliga ==

Edição das 23h17min de 9 de janeiro de 2021

A sagrada família
Escrito porKarl Marx & Friedrich Engels
Escrito emNovembro de 1844
Publicado 1ª vezFevereiro de 1845
TipoLivro
FonteEPUB

Prefácio

O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo –, que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a “autoconsciência” ou o “espírito” e ensina, conforme o evangelista: “O espírito é quem vivifica, a carne não presta”. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito em sua própria imaginação. O que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura. Ela representa, para nós, a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental.

Nossa exposição se atém principalmente ao “Jornal Literário Geral” de Bruno Bauer – e seus oito primeiros cadernos estavam a nosso dispor –, porque é ali que a Crítica baueriana, e com ela o despropósito da especulação alemã como um todo, alcançam o ápice. A Crítica crítica[p 1] (ou seja, a crítica do “Jornal Literário”) torna-se tanto mais instrutiva quanto mais converte a inversão da realidade, empreendida através da filosofia, na mais plástica das comédias. Veja-se, por exemplo, Faucher e Szeliga. O “Jornal Literário” oferece um material à luz do qual também o grande público poderá ser informado a respeito das ilusões da filosofia especulativa. E é essa a finalidade de nosso trabalho.

Nossa exposição naturalmente é condicionada por seu objeto. Em regra, a Crítica crítica se encontra abaixo das alturas alcançadas pelo desenvolvimento teórico alemão. A natureza de nosso objeto justifica, portanto, o fato de aqui não avaliarmos esse mesmo desenvolvimento.

A Crítica crítica obriga, muito antes, a mostrar a validade dos resultados já disponíveis como tais, opondo-os aos resultados que ela alcançou.

É por isso que antepomos essa polêmica aos escritos propriamente ditos, nos quais nós – cada um por si, entenda-se[p 2] – haveremos de expor nossa visão positiva, e com ela nossa atitude positiva ante as novas doutrinas filosóficas e sociais.

Engels & Marx
Paris, setembro de 1844

Notas

  1. Em alemão: kritische Kritik. Para diferenciar o substantivo do adjetivo – em português ambos são escritos de maneira exatamente igual, ao contrário do que acontece no alemão –, manteremos o primeiro em maiúscula. Além da diferença, estará sendo mostrada a ênfase especial e a análise diferenciada – e crítica – que Marx e Engels dão à Crítica de Bruno Bauer e seus consortes.
  2. A autoria específica dos artigos aparece definida no Índice. A sagrada família é o resultado do trabalho conjunto de Marx e Engels e foi encaminhada a partir do segundo encontro dos dois pensadores, em agosto de 1844, em Paris. A contribuição de Marx é bem maior – e a avaliação é apenas volumétrica – que a de Engels, e reúne suas anotações acerca dos Manuscritos econômico-filosóficos bem como suas anotações acerca da Revolução Francesa. O livro é – descontadas as duas contribuições de Marx aos Anais franco-alemães (Deutsch-Französische Jahrbücher), quais sejam: “Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução” e “Sobre a questão judaica” – o único escrito rigorosamente filosófico do período precoce publicado pela intervenção direta dos autores. Obras como os Manuscritos de Paris (Pariser Manuskripte), Sobre a crítica do Estado de direito hegeliano (Zur Kritik des Hegelschen Staatsrechts, 1843, publicada apenas em 1927), de Marx, ou até mesmo A ideologia alemã (Deutsche Ideologie, 1846, publicada apenas em 1932), que os dois também escreveram juntos, seriam publicadas apenas postumamente. A sagrada família apareceria já em fins de fevereiro de 1845.

“A crítica crítica sob a feição do mestre encadernador” ou a crítica crítica conforme o senhor Reichardt

Friedrich Engels

A Crítica crítica, por mais que se considere acima da massa, sente uma compaixão infinita pela mesma massa. Foi tão grande o amor da Crítica pela massa que ela enviou seu próprio filho unigênito a fim de que todos os que crerem nele se salvem e gozem as venturas da vida crítica. E eis que a Crítica se torna massa e habita entre nós, e nós vemos na sua magnificência a magnificência do filho unigênito do pai. Quer dizer, a Crítica torna-se socialista e fala de “escritos sobre o pauperismo”. Ela não vê um assalto no fato de querer ser igual a Deus, mas apenas renuncia a si mesma e assume a feição de mestre encadernador, rebaixando-se ao nível mais absurdo – sim, ao absurdo crítico em línguas estrangeiras. Ela, que em sua pureza virginal e celeste, retrocedia assustada diante do contato com a massa pecadora e leprosa, dominou-se a ponto de dar importância a “Bodz” e “todos os escritores-fonte do pauperismo, marchando há anos passo a passo com o mal de nossa época”; ela desdenha escrever aos eruditos especializados e escreve para o grande público, afasta todas as expressões de caráter estranho, todo o “cálculo latino, todo o jargão corporativo” – tudo isso ela afasta dos escritos de outros, pois seria querer pedir demais desejar que a Crítica se submetesse, ela mesma, a “este regulamento da administração”. Todavia até mesmo isso ela chega a fazer – em parte, pelo menos – desembaraçando-se com admirável facilidade, se não das palavras em si, pelo menos de seu conteúdo; e quem haverá de acusá-la de fazer uso da “grande pilha de palavras estrangeiras ininteligíveis”, se ela mesma nos obriga a chegar a essa conclusão através de manifestações sistemáticas que dão conta de que essas palavras permaneceram ininteligíveis também para ela? Algumas provas dessa manifestação sistemática:

Por isso lhes são abomináveis as instituições do pauperismo.

Uma lição de responsabilidade, na qual toda emoção do pensamento humano se converte na imagem da mulher de Ló.

Sobre a pedra que coroa este edifício artístico, de fato rico em convicções.

Este é o conteúdo fundamental do testamento político de Stein, que o grande estadista entregou antes mesmo de se despedir do serviço ativo do governo e de todos seus escritos.

Este povo não possuía ainda nenhumas dimensões para uma liberdade tão ampla.

Porquanto ele, no fim de seu escrito publicista, parlamentou com relativa certeza, assegurando que falta apenas confiança.

Ao juízo varonil que levanta o Estado, que sabe elevar-se acima da rotina e do temor pusilânime, que se forjou na história e se nutriu com viva intuição nas instituições públicas estrangeiras. A educação de uma beneficência nacional geral. A liberdade permaneceu morta no seio da missão popular prussiana, sob o controle das autoridades públicas.

Publicística orgânico-popular.

Ao povo, ao qual também o senhor Brüggemann distribui a certidão de batismo de sua emancipação.

Uma contradição bastante vivaz contra as demais determinações, proclamadas na obra com respeito aos dotes vocacionais do povo.

O egoísmo enfadonho dissolve todas as quimeras da vontade nacional com rapidez.

A paixão de adquirir muito etc., esse era o espírito que permeou toda a época da Restauração e que se integrou aos novos tempos com uma quantidade bastante significativa de indiferença.[1 1]

O obscuro conceito de significação política, passível de ser encontrado na nacionalidade prussiana de caráter rural, descansa sobre a lembrança de uma grande história.

A antipatia desapareceu e converteu-se em um estado de exaltação completa.

Cada qual a seu modo ainda expôs, nesta maravilhosa transição, a perspectiva de seus especiais desejos.

Um catecismo em untuosa linguagem salomônica, cujas palavras esvoaçam leves como pombas e se elevam – frufru! – à região do páthos e dos aspectos tonitruantes.[1 2]

Todo o diletantismo de um abandono de trinta e cinco anos.

As condenações demasiado vivazes dos cidadãos através de um de seus antigos comitês até poderiam ser aceitas pela tranquilidade de ânimo de nossos representantes, caso a concepção de Benda acerca do regime municipal de 1808 não laborasse por uma afecção conceitual muçulmana sobre a natureza e o emprego da ordem citadina.

E a intrepidez estilística do senhor Reichardt anda lado a lado com a intrepidez do raciocínio em si. Ele é capaz de entabular transições como as que seguem:

O senhor Brüggemann... ano de 1843... teoria do Estado... todo o probo... a grande modéstia de nossos socialistas... milagres naturais... exigências a serem expostas à Alemanha.... milagres sobrenaturais... Abraão... Filadélfia... maná... mestre-padeiro... mas porque nós estamos a falar de milagres, Napoleão logrou etc.

Depois dessas amostras, não é de estranhar – nem um pouco, aliás – que a Crítica crítica sempre ofereça uma “explicação” à frase que ela mesma considera um “modo popular de se exprimir”. Pois ela “apetrecha seus olhos com a força orgânica de penetrar o caos”. E, sendo assim, resta dizer que nem mesmo o “modo popular de se exprimir” da Crítica crítica pode restar incompreensível no final. Ela se dá conta de que o caminho dos literatos permanece torto, caso o sujeito que o trilha não se mostrar forte o suficiente a ponto de conseguir endireitá-lo e, por isso, atribui com naturalidade “operações matemáticas” ao escritor.

Per si se compreende, e a história, que prova tudo o que per si se compreende, prova também isso: que a Crítica não se torna massa a fim de permanecer massa, mas para libertar a massa de sua massificação massiva, ou seja, para elevar o modo popular de se exprimir na linguagem crítica da Crítica crítica. Este é o estágio mais estagiário da humilhação, quando a Crítica aprende a linguagem popular das massas e transcende esse jargão tosco para o cálculo superabundante da dialética criticamente crítica.

Notas

  1. As construções bizarras do senhor Reichardt são um dos pontos criticados com dureza por Engels, autor deste capítulo.
  2. Outro aspecto criticado é o nefelibatismo pseudo-poético de construções como a presente, cheias de pomposidade e vazias de conteúdo, até ridículas. A relação da “Crítica crítica” com a “massa” é ironizada com virtuosismo; a primeira está para o Deus cristão, que sente piedade ante a limitação da segunda, os mortais, ou seja, a massa.

“A crítica crítica” na condição de “Moinhotenente” ou a crítica crítica conforme o senhor Jules Faucher

Friedrich Engels

Depois de a Crítica ter se rebaixado até o absurdo em línguas estrangeiras, de ter prestado à autoconsciência os serviços mais essenciais, e ao mesmo tempo ter libertado o mundo do pauperismo através disso, ela se rebaixa também ao absurdo na práxis e na história. Ela se apossa das “questões inglesas do dia” e nos oferece um esboço da história da indústria inglesa, que é genuinamente crítico.

A Crítica, que se basta a si mesma, que se completa e encerra-se em si mesma, naturalmente não pode reconhecer a história tal como ela de fato aconteceu, pois isso significaria reconhecer a massa ruim em toda sua massificação massiva, quando se trata justamente de libertar a massa da massificação. Com isso, a história é libertada de sua massificação, e a Crítica, que adota uma atitude livre em relação a seu objeto, grita para a história: tu deves ter ocorrido de tal ou qual modo! As leis da Crítica têm, todas elas, efeito retroativo; antes de seus decretos, a história ocorria de modo bem diferente do que passou a ocorrer depois deles. Eis aqui por que a história massiva, a chamada história real, desvia-se de maneira significativa da crítica, que passa a acontecer a partir da página 4 do Caderno VI do “Jornal Literário Geral”.

Na história massiva não houve nenhuma cidade fabril antes de haver fábricas; mas na história crítica, na qual o filho gera o próprio pai – coisa que já acontecia em Hegel, aliás –, Manchester, Bolton e Preston são florescentes cidades fabris, antes mesmo de se ter pensado em fábricas. Na história real, a indústria de algodão foi criada sobretudo graças à “Jenny” de Hargreaves e à “throstle” (máquina hidráulica de fiar) de Arkwright, ao passo que a “mule” de Crompton[2 1] não foi mais que um aperfeiçoamento da Jenny através do princípio descoberto por Arkwright; mas a história crítica sabe distinguir, despreza a unilateralidade da Jenny e da throstle e dá a coroa à mule, fazendo dela a identidade especulativa do extremo. Na realidade, a invenção da throstle e da mule trouxe consigo de imediato a utilização da força hidráulica para esse tipo de máquinas, mas a Crítica crítica diferencia os princípios amontoados e confusos da história bruta e faz com que a utilização apareça apenas bem mais tarde, como se fosse algo bastante particular. Na realidade a descoberta da máquina a vapor precedeutodas as descobertas acima citadas, mas na Crítica vemos que ela ocorre no final, na condição de coroa para o todo.

Na realidade, a aliança de negócios entre Liverpool e Manchester foi, em seu significado atual, a consequência da exportação de mercadorias inglesas; na Crítica essa aliança de negócios é a causa desse fenômeno e ambas – aliança e exportação – a consequência do fato de aquelas duas cidades serem vizinhas. Na realidade, quase todas as mercadorias saem de Manchester, passam por Hull ao continente; na Crítica elas passam por Liverpool.

Na realidade há, nas fábricas inglesas, todas as gradações de salário, de um e meio xelim a 40 xelins e inclusive mais; na Crítica paga-se apenas um salário ao trabalhador: 11 xelins. Na realidade a máquina substitui o trabalho manual; na crítica ela substitui o ato de pensar. Na realidade uma união dos trabalhadores com o objetivo de aumentar o salário é permitida na Inglaterra; mas na Crítica ela é proibida, uma vez que a massa tem, ela mesma, de perguntar à Crítica, se quiser se permitir tomar uma atitude. Na realidade o trabalho na fábrica fatiga de maneira significativa o trabalhador e origina enfermidades típicas – há, inclusive, várias obras medicinais que tratam exclusivamente dessas enfermidades; na crítica “o esforço excessivo não impede nem estorva o trabalho, pois a força é empreendida toda ela pela máquina”. Na realidade a máquina é uma máquina; na Crítica ela é dotada de vontade, pois, uma vez que ela não descansa, o trabalhador também não pode descansar e torna-se súdito de uma vontade estranha.

Mas isso ainda não é nada de mais. A Crítica não se contenta com os partidos massivos da Inglaterra; ela cria novos, ela cria um “partido fabril”, pelo que a história por certo haverá de lhe agradecer. Por outro lado, ela atira fabricantes e trabalhadores de fábrica em um único montão massivo – e por que a gente haveria de se preocupar com pequenezas do tipo – e decreta que os trabalhadores de fábrica não contribuíram para o fundo da Anti-Corn-Law-League[2 2] não devido a sua má vontade e ao cartismo, como pensam os fabricantes estúpidos, mas apenas devido à pobreza. Mais adiante ela decreta que com a abolição das leis inglesas acerca dos grãos, os assalariados agrícolas terão de resignar-se com uma redução de seu salário, ainda que nós gostaríamos de observar com humildade que essa classe miserável não pode prescindir de um centavo sequer daquilo que hoje ganha, sem ver-se condenada a morrer de fome. Ela decreta que nas fábricas da Inglaterra são trabalhadas dezesseis horas, mesmo que a legislação simplista e desprovida de espírito crítico da Inglaterra tenha providenciado para que não se possa trabalhar mais do que doze horas por dia. Ela decreta que a Inglaterra tem de ser uma imensa oficina para o mundo, ainda que os americanos, alemães e belgas – massivos e desprovidos de espírito crítico – pouco a pouco deteriorem os mercados ingleses um a um através de sua concorrência. Ela decreta, enfim, que a centralização da propriedade e suas consequências para as classes trabalhadoras não são conhecidas nem pelas classes possuidoras nem pelas desprovidas de posses na Inglaterra, mesmo que os estúpidos cartistas acreditem conhecê-las muito bem e os socialistas já pensem ter apresentado há tempo e no detalhe essas consequências, quando até mesmo tories e whigs[2 3] como Carlyle, Alison e Gaskell já tenham demonstrado ter conhecimento desses resultados em suas obras.

Crítica decreta que a proposta de lei de dez horas encaminhada por lorde Ashley[2 4] constitui uma frouxa medida de juste-milieu [“justo meio”] e que o próprio lorde Ashley seria uma “imagem fiel da ação constitucional”, ao passo que os fabricantes, os cartistas, os proprietários de terras, curto e grosso, toda a massificidade da Inglaterra, vêm considerando até agora a dita medida como a expressão por certo mais moderada possível de um princípio marcado pelo radicalismo, uma vez que dispõem o machado sobre a raiz do comércio exterior, alcançando com isso a raiz do sistema fabril; mais que dispor o machado, aliás, eles cravam-no profundamente dentro dela. Mas a Crítica crítica considera-se melhor ajuizada a respeito. Ela sabe que a questão das dez horas foi tratada ante uma “Comissão” da Câmara dos Comuns, apesar de os jornais acríticos quererem nos fazer crer que essa “Comissão” constituiu a Câmara em si, ou seja, que foi um “Comitê da Câmara inteira”; mas a Crítica necessariamente tem de suspender essa bizarria da Constituição inglesa.

A Crítica crítica, que gera ela mesma a estupidez da massa – sua antagônica –, gera também a estupidez de sir James Graham e põe em sua boca, através do esclarecimento crítico da língua inglesa, coisas que o acrítico Ministro do Interior jamais disse, a fim de que a sabedoria da Crítica refulja de modo tanto mais brilhante ante a estupidez de Graham. Ela afirma que Graham teria dito que as máquinas das fábricas estariam desgastas em doze anos, pouco importando se funcionassem durante dez ou doze horas diárias, razão pela qual o projeto de lei das dez horas diárias impediria os capitalistas de reproduzir em doze anos, mediante o trabalho das máquinas, o capital investido nelas. A Crítica pretende mostrar que, desse modo, pôs uma conclusão falaciosa na boca de sir James Graham, pois uma máquina que trabalhar diariamente um sexto a menos do tempo normal com certeza haverá de poder ser utilizada por um tempo maior.

Por mais correta que seja essa observação da Crítica crítica, inclusive contra sua própria conclusão falaciosa, há que se concordar, por outro lado, com sir James Graham, uma vez que ele mesmo disse que a máquina teria de funcionar tanto mais rápida sob um regime de dez horas, trabalhando mais, ao cabo, do que faria sem a redução do tempo – coisa que até mesmo a Crítica refere no Caderno VIII, página 32 – e que diante dessa premissa o tempo de desgaste acabaria sendo o mesmo, ou seja, doze anos. Isso tem de ser reconhecido, tanto mais porque esse reconhecimento acaba contribuindo para a fama e a glorificação “da Crítica”, uma vez que apenas a Crítica e tão somente a Crítica inventou essa conclusão falaciosa para em seguida, ela mesma, dissolvê-la. A mesma generosidade ela demonstra em relação a lorde John Russel, a quem ela atribui, sub-repticiamente, o propósito de mudar a forma política de governo e do sistema eleitoral, do que somos obrigados a concluir, de duas, uma: ou que o afã da Crítica em produzir necessidades é extraordinariamente grande, ou que lorde John Russel tornou-se um Crítico crítico de uma hora para outra. Mas grandiosa de verdade a Crítica torna-se apenas na fabricação de estupidezes, ao descobrir que os trabalhadores da Inglaterra – trabalhadores que em abril e maio realizaram meetings atrás de meetings, apresentaram petições em cima de petições, e tudo em favor do projeto de lei das dez horas, eles que estavam tão agitados como já há dez anos não estavam, e isso de uma ponta dos distritos fabris até a outra –, ao descobrir que esses trabalhadores, portanto, tinham apenas um “interesse parcial” na questão, ainda que esteja demonstrado que “também a redução legal de tempo de trabalho tenha ocupado sua atenção”; e quando, sobretudo, ela termina fazendo a grande, a maravilhosa, a inaudita descoberta de que “a ajuda aparentemente mais imediata que representa a abolição das leis relativas à entrada de grãos absorve e seguirá absorvendo a maior parte dos desejos dos trabalhadores, até que a realização desses desejos, que evidentemente já não podem mais ser postos em dúvida, lhes demonstre na prática a inutilidade desses mesmos desejos”. E logo os trabalhadores, acostumados a, em todos os meetings públicos, jogar púlpito abaixo aqueles que pregam a abolição da Lei do Grão, logo eles que alcançaram fazer com que a Liga contra a Lei do Grão não se atreva a celebrar um só meeting público nas cidades fabris, logo eles que consideram essa Liga seu único inimigo e que, durante a discussão da lei das dez horas, como quase sempre ocorreu anteriormente em semelhantes questões, foram apoiados pelos tories. Não deixa de ter lá sua beleza verificar também que a Crítica consegue descobrir que “os trabalhadores seguem deixando se seduzir pelas amplas promessas do cartismo”, que no fundo não é mais do que apenas a expressão política da opinião pública entre os trabalhadores; e vê-la dar-se conta, nas profundezas de seu espírito absoluto, de que “as duplas tendências partidárias, a política e a dos proprietários de terras e de moinhos, já não marcham mais juntas e estão longe de coincidir uma com a outra”, sendo que até agora não era conhecido que a tendência política dos proprietários de terra e de moinhos, dado o reduzido número das duas classes de proprietários e os direitos e a legitimidade política de ambos (exceção feita ao restrito número de pairs [“pares”]), era tão abrangente, a ponto de, em vez de representar a expressão consequente, a ponta dos partidos políticos, coincidiam em absoluto e inclusive se identificavam totalmente com essas tendências políticas. Ademais é bonito de ver a Crítica crítica atribuindo aos partidários da abolição da Corn-Law a presunção de que ignoram que, ceteris paribus [“mantidas as mesmas circunstâncias”], a baixa do preço do pão acarretaria também, necessariamente, a baixa dos salários e de que tudo seguiria igual a antes; enquanto essas gentes esperam, aceitando a baixa dos salários e com isso dos custos de produção, que ocorra uma ampliação do mercado e através dela uma diminuição da concorrência entre os trabalhadores, do que resultaria, no final, a manutenção de um salário mais alto do que agora em relação aos preços do pão.

A crítica, movendo-se com beatitude artística na livre criação de seu antagônico, o absurdo, a mesma crítica que proclamava há dois anos: “A Crítica fala alemão, a teologia latim”, essa mesma Crítica agora aprendeu inglês e chama os proprietários de terra de “terratenentes” (land-owners), os fabricantes de “moinhotenentes” (mill-owners) – mill é, na língua inglesa, qualquer fábrica, cujas máquinas são impulsionadas a vapor ou pela força das águas –, os trabalhadores de “mãos” (hands), ao invés de “ingerência” diz interferência (interference) e, levada por sua infinita comiseração pela língua inglesa, regurgitante de massificidade pecaminosa, a Crítica se concede o direito de melhorá-la, inclusive, e acaba com a pedanteria que faz os ingleses assentar o título de “sir” ante os prenomes de cavaleiros e baronetes. A massa diz: “sir James Graham”; a Crítica: “sir Graham”.

Que a Crítica crítica recria a língua e a história inglesas por princípio e não por leviandade, haverá de ser provado em breve através da profundidade com que ela trata a história do senhor Nauwerck.

Notas

  1. Entre 1738 e 1835 foram feitas várias descobertas no que diz respeito à mecanização da atividade de fiar, todas elas de grande importância no desenvolvimento do capitalismo. Em 1764 foi a referida “máquina de Jenny”, de James Hargreaves, aperfeiçoada entre 1769 e 1771 por Richard Arkwright. Em 1779, a “máquina de mule” ou Hand-Mule, de Samuel Crompton. Em 1825 foi a vez da self-acting muleou self-actor (algo como a “auto-ativa”), a máquina de fiar automática de Richard Roberts.
  2. “Liga contra a Lei do Grão”, associação de livre-comércio fundada em 1838 pelos fabricantes Cobden e Bright em Manchester. A assim chamada “Lei do Grão”, que objetivava cercear – conforme o caso, proibir – a entrada de cereais estrangeiros, foi implantada na Inglaterra para defender os interesses dos grandes proprietários de terras, dos lordes rurais. A Liga exigia completa liberdade comercial e lutava pela extinção da “Lei do Grão” com o objetivo de reduzir os salários dos trabalhadores e enfraquecer as posições políticas da aristocracia rural. Em sua luta contra os proprietários de terra, a Liga tentou explorar as massas trabalhadoras. Mas justamente naquela época os adiantados trabalhadores ingleses começavam a trilhar o caminho que levava a um movimento independente e marcadamente político, o cartismo (cujo programa estava inscrito na chamada Carta do Povo). A luta entre a burguesia industrial e a aristocracia rural terminou em 1846 com a aceitação do programa para a abolição da Corn-Law. Depois disso a Liga acabou se dissolvendo.
  3. Whig: o termo nomeia os membros de um dos dois grandes partidos políticos da Inglaterra do século XVII; eram não conformistas que rejeitavam o poder absolutista do rei e opunham-se aos tories (do partido conservador); a palavra, originalmente pejorativa, significava “ladrão de cavalo”.
  4. A luta pela restrição legal do trabalho diário a dez horas já começara na Inglaterra no final do século XVIII e compreendia grande parte do proletariado a partir dos anos 1830. Uma vez que os representantes da aristocracia rural estavam dispostos a explorar essa solução popular em sua luta contra a burguesia industrial, passaram a defender a “proposta de lei de dez horas” no parlamento. O movimento em favor da lei era encabeçado – no parlamento – por lorde Ashley, cognominado “tory filantrópico”.

“A profundidade da crítica crítica” ou a crítica crítica conforme o senhor J. (Jungnitz?)

Friedrich Engels

A querela infinitamente importante do senhor Nauwerck com a Faculdade de Filosofia de Berlim não poderia passar ao largo da avaliação da Crítica crítica; ora, ela passou por experiência semelhante e tinha de tomar os fados do senhor Nauwerck como pano de fundo e através disso destacar com força tanto maior sua horrorosa destituição de Bonn.[3 1] Uma vez que a Crítica está acostumada a considerar a história de Bonn como o acontecimento do século e já escreveu a “Philosophie der Absetzung der Kritik” (Filosofia da Remoção da Crítica), era de se esperar que ela construísse filosoficamente a colisão berlinense de um modo semelhante, indo até o mais ínfimo dos detalhes. Ela prova a priori que tudo tinha de ocorrer tal como ocorreu, e não de outro modo, a saber:

  1. porque a Faculdade de Filosofia tinha de “colidir” não com um lógico e metafísico, mas justamente com um filósofo do Estado;
  2. porque essa colisão não poderia alcançar a dureza e a decisão que teve o conflito da Crítica com a teologia na Universidade de Bonn;
  3. porque a colisão na verdade era uma coisa bem boba, uma vez que a Crítica já havia concentrado todo seu valor, todos seus princípios na colisão de Bonn, razão pela qual a história universal apenas poderia converter-se em plagiária da Crítica;
  4. porque a Faculdade de Filosofia se sentiu atacada, ela mesma, nos escritos do senhor Nauwerck;
  5. porque não restou ao senhor N(auwerck) outra coisa a não ser renunciar voluntariamente;
  6. porque a Faculdade tinha de defender o senhor N(auwerck), caso não quisesse capitular ela mesma;
  7. porque a “cisão interna na essência da Faculdade tinha de manifestar-se necessariamente de tal modo”, concedendo e tirando a razão ao mesmo tempo, tanto ao senhor N(auwerck) quanto ao governo;
  8. porque a Faculdade não encontrou nenhum motivo nos escritos de N(auwerck) que justificasse seu afastamento;
  9. que é o que condiciona toda a obscuridade de todo o processo;
  10. porque a Faculdade “na condição de entidade científica (!), se acredita (!), no direito (!), de enfocar o assunto, tomando-o pelo miolo”; e enfim
  11. porque ainda assim a Faculdade não quer escrever do mesmo modo que o senhor N(auwerck).

A Crítica crítica resolve essas importantes perguntas em quatro páginas, com rara profundidade, demonstrando a partir da Logik (Lógica) de Hegel por que tudo ocorreu assim e por que nenhum deus poderia intervir mudando o ocorrido. Em outra passagem a Crítica diz que não foi reconhecida ainda nenhuma época histórica; a modéstia impede-a de dizer que reconhece perfeitamente pelo menos a sua própria e a colisão de Nauwerck, que, embora não sejam épocas, fazem época segundo seu ponto de vista.

A Crítica crítica, que “suprassumiu” o “momento” da profundidade dentro de si, tornar-se-á “Quietude do conhecer”.

Notas

  1. Bonner Entsetzung”, no original. O jogo de palavras é brilhante. O verbo “entsetzen” pode significar tanto “destituir” quanto “horrorizar”. Com relação ao fato: o governo prussiano suspendeu temporariamente a licença de professor de Bruno Bauer – que é a quem se refere o “sua”, pois ele é o chefe da “sagrada família” – junto à Universidade de Bonn em 1841, devido a seus escritos críticos em relação à religião. Em março de 1842 ele foi afastado definitivamente da Universidade. O horizonte provinciano da “Crítica crítica” é ridicularizado ao extremo na denúncia de um probleminha de ordem privada que é elevado por seus discípulos à categoria de “acontecimento histórico-universal”.

“A crítica crítica” na condição de quietude do conhecer ou a “crítica crítica” conforme o senhor Edgar

“A Union Ouvrière” de Flora Tristan[4 1]

Friedrich Engels

Os socialistas franceses afirmam: O trabalhador faz tudo, produz tudo, e apesar disso não tem nenhum direito, nenhuma propriedade, enfim, não tem nada. A Crítica crítica responde através da boca do senhor Edgar, a Quietude do conhecer personificada:

Para poder criar tudo, é necessária uma consciência mais forte do que a consciência do trabalhador. Apenas invertida é que a sentença seria verdadeira: O trabalhador não faz nada, por isso não tem nada, mas ele não faz nada porque seu trabalho é sempre, permanentemente, um trabalho concreto, diário, limitado apenas a suas necessidades mais pessoais.

Aqui a Crítica atinge a completude ao alcançar aquela altura da abstração na qual ora considera como “algo”, ora como “tudo”, exclusivamente as criações de seu próprio pensamento e as generalidades contrárias a toda a realidade. O trabalhador não cria nada, porque cria apenas “unidades”, quer dizer, objetos físicos, tangíveis, desprovidos de espírito e de crítica, objetos que são um verdadeiro horror aos olhos da Crítica pura. Tudo o que é real, tudo o que é vivo é acrítico, massivo e, portanto, “nada”, ao passo que apenas as criaturas ideais e fantásticas da Crítica crítica são “tudo”.

O trabalhador não cria nada, porque seu trabalho é sempre, permanentemente, um trabalho concreto, diário, limitado apenas a suas necessidades mais pessoais; ou seja, porque as ramificações concretas e combinadas do trabalho, dentro da atual ordem universal, encontram-se separadas, postas em oposição umas às outras; resumindo, porque o trabalho não está organizado. A própria sentença da Crítica, caso a interpretarmos segundo o único sentido racional que pode ter, exige a organização do trabalho. Flora Tristan, em cujo julgamento essa grande sentença logrou alcançar a luz do dia, postula o mesmo e, por causa dessa insolência – ou seja, por se antecipar à Crítica crítica –, é tratada en canaille.[4 2] O trabalhador não cria nada; esta sentença é, aliás – se prescindirmos do fato de que o trabalhador individual não produz nada que seja total, o que representa uma tautologia –, completamente maluca. A Crítica crítica não cria nada, o trabalhador cria tudo, e tudo de forma tal que enche de vergonha toda a Crítica, também em suas criações espirituais; os trabalhadores franceses e ingleses dão testemunho disso. O trabalhador cria até mesmo o ser humano; o Crítico permanecerá sempre um ser inumano, para o que lhe resta, por certo, a satisfação de ser um Crítico crítico.

Flora Tristan nos dá um exemplo daquele dogmatismo feminino que pretende possuir uma fórmula e a modela para si a partir das categorias do existente.

A Crítica crítica não faz mais do que modelar para si “fórmulas a partir das categorias do existente”, quer dizer, da existente filosofia hegeliana e dos existentes esforços sociais; fórmulas, nada mais que fórmulas, e apesar de todas as suas invectivas contra o dogmatismo ela condena-se a si mesma ao dogmatismo, ao dogmatismo feminino. Sim, ela é e continuará sendo sempre uma mulher velha: a filosofia hegeliana emurchecida e enviuvada, que maquia e adorna seu corpo ressequido a ponto de alcançar a abstração mais asquerosa, olhando de soslaio por todos os cantos em busca de um cliente.[4 3]

Béraud acerca das mulheres da vida

Friedrich Engels

O senhor Edgar, que apenas uma vez sentiu compaixão pelas questões sociais, mete seu bedelho também nas “condições das prostitutas” (Caderno V, página 26).

Ele critica o livro de Béraud, comissário da polícia de Paris, sobre a prostituição, porque lhe interessa “o ponto de vista” a partir do qual “Béraud concebe a posição das mulheres da vida ante a sociedade”. A “Quietude do conhecer” fica admirada com o fato de ver que um homem da polícia tem um ponto de vista policial e dá a entender à massa que esse ponto de vista é de todo errado. O seu próprio ponto de vista... ela não dá a entender. Naturalmente! Quando a Crítica crítica decide interessar-se pelas mulheres da vida, ninguém pode exigir que isso ocorra em público.

O amor

Karl Marx

A fim de atingir a perfeição da “Quietude do conhecer”, a Crítica crítica tem de procurar desembaraçar-se, antes de tudo, do amor. O amor é uma paixão e não há nada mais perigoso para a Quietude do conhecer do que a paixão. Eis aqui o motivo pelo qual, a propósito dos romances da senhora Von Paalzow – que ele garante ter “estudado minuciosamente” –, o senhor Edgar logra manter o domínio sobre “uma criancice semelhante ao chamado amor”. Uma coisa dessas é um pavor e um horror, que atiça a Crítica crítica à fúria, tornando-a quase amargamente biliosa, levando-a à loucura inclusive.

O amor... é um deus cruel que, assim como toda a divindade, quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico. Seu culto é o sofrimento e o ápice desse culto é o autossacrifício, o suicídio.

A fim de metamorfosear o amor em “Moloch”, no diabo em carne e osso, o senhor Edgar transforma-o primeiro em um deus. Feito deus, quer dizer, transformado em um objeto teológico, ele passa com naturalidade ao domínio da Crítica da Teologia, além do que, deus e o diabo jamais andam muito distantes um do outro, conforme se sabe. O senhor Edgar transforma o amor em um deus e em um “deus cruel”, seja dito, ao fazer do homem enamorado, ou seja, do amor do homem, o homem do amor, ao colocar o “amor” à parte do homem como ser, autonomizando-o. Através desse simples processo, através dessa metamorfoseação do predicado no objeto, podem-se transformar criticamente todas as determinações essenciais e todas as manifestações da essência do homem em não essência e em alienações da essência. Dessa maneira, por exemplo, a Crítica crítica faz da crítica, enquanto predicado e atividade do homem, um sujeito à parte, que diz respeito apenas a si mesmo e é, por isso, Crítica crítica: um “Moloch” cujo culto é o autossacrifício, o suicídio do homem, ou seja, da capacidade humana de pensar.

“Objeto”, exclama a Quietude do conhecer, objeto, é esta a expressão correta, pois a amada só é importante para o amante – o feminino na condição de amante pouco importa – enquanto esse objeto externo de sua afecção anímica, enquanto objeto no qual ele quer ver seu próprio sentimento egoísta satisfeito.

Objeto! Pavoroso! Não há nada mais condenável, mais profano, mais massivo do que um objetoà bas [“abaixo”] o objeto! Como poderia a absoluta subjetividade, o actus purus, a crítica “pura” não ver no amor a sua bête noire [“besta negra”], seu satanás em carne e osso; o amor, que é o primeiro a ensinar de verdade ao homem a crer no mundo objetivo fora dele, que não apenas faz do homem um objeto, mas também do objeto um homem?

O amor, conforme prossegue a Quietude do conhecer, totalmente fora de si, nem sequer se contenta sem transformar o ser humano na categoria de “objeto” para o outro ser humano, mas inclusive o transforma em um objeto determinado e real, ou seja, neste objeto individual-mau (vide a “Fenomenologia” de Hegel acerca do Este e do Aquele, na qual se polemiza também contra o “Este” mau), externo, um objeto não apenas interior e esquecido no cérebro, mas também manifesto e aberto aos sentidos.

Amor

Não vive apenas encastelado no cérebro.

Não, a amada é objeto sensual e a Crítica crítica exige, pelo menos – quando tem de se rebaixar ao reconhecimento de um objeto –, um objeto insensato. Mas o amor é um materialista acrítico, acristão.

No fim das contas o amor chega a transformar o homem “neste objeto externo da afecção anímica” de outro homem, no objeto sobre o qual este outro homem satisfaz seu sentimento egoísta; sentimento egoísta porque procura sua própria essência no outro homem, e assim não deve ser. A Crítica crítica é tão livre de qualquer egoísmo, que para ela todo o caráter abrangente da essência humana se reduz a seu próprio eu.

O senhor Edgar naturalmente não nos diz através do que a amada se diferencia dos restantes “objetos externos da afecção anímica, nos quais os sentimentos egoístas dos homens se satisfazem”. O espirituoso, plurívoco e eloquente objeto do amor consegue dizer à quietude do conhecer apenas o esquema categórico: “esse objeto externo da afecção anímica”, assim como o cometa, por exemplo, não revela ao filósofo especulativo da natureza mais do que a “negatividade”. Ao fazer do outro homem o objeto externo de sua afecção anímica, o homem até lhe confere “importância”, conforme a própria Crítica crítica confessa, mas essa importância é, por assim dizer, uma importância objetiva, ao passo que a importância que a Crítica confere aos objetos não é nada mais do que a importância que ela confere a si mesma, e que por isso também não comprova sua competência no “ser exterior e mau”, mas no “nada” do objeto criticamente importante. Todavia, se a quietude do conhecer não possui nenhum objeto no homem real, ela possui, de outra parte, uma coisa na humanidade. O amor crítico “se guarda, sobretudo, de esquecer a coisa ao tratar da pessoa, coisa que não é outra senão a coisa da humanidade”. O amor acrítico não separa a humanidade do ser humano pessoal e individual.

O amor em si, na condição de paixão abstrata, a gente não sabe de onde ele vem e ele vai sabe-se lá para onde e é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior.

O amor é, aos olhos da Quietude do conhecer, uma paixão abstrata segundo a terminologia especulativa, que considera o concreto como abstrato e o abstrato como concreto.

No vale ela não nasceu

Donde ela veio, ninguém viu;

Mas seu rastro logo se perdeu,

Quando a moça se despediu.

O amor é, para a abstração, “a moça do estrangeiro”, sem passaporte dialético, e por isso é expulsa do país pela polícia crítica.

A paixão do amor é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior, porque ela não pode ser construída a priori, porque seu desenvolvimento é um desenvolvimento real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais. Porém o interesse principal da construção especulativa é o “de onde” e o “para onde”. O “de onde” é, por sinal, a “necessidade de um conceito, sua prova e dedução” (Hegel). O “para onde” é a determinação “através da qual cada um dos elos individuais do sistema circulatório especulativo, na condição de animado pelo método, é ao mesmo tempo o começo de um novo elo” (Hegel). Portanto, o amor apenas mereceria o “interesse” da crítica especulativa caso seu “de onde” e seu “para onde” fossem passíveis de ser construídos a priori.

O que a Crítica crítica quer combater com isso não é apenas o amor, mas tudo aquilo que é vivo, tudo que é imediato, toda experiência sensual, toda experiência real, inclusive, da qual não se sabe com antecipação o “de onde” e o “para onde”.

O senhor Edgar se estatuiu plenamente como “Quietude do conhecer”, mediante a dominação do amor, e agora pode comprovar sua competência junto a Proudhon, demonstrando a grande virtuosidade do conhecer, para a qual o “objeto” já deixou de ser “este objeto externo”, cometendo uma falta de amor ainda maior em relação à língua francesa.

Notas

  1. Nesta seção é analisada e citada a resenha de Edgar Bauer sobre a obra L’union ouvrière (A união obreira), de Flora Tristan, editada em Paris no ano de 1843. O artigo de Edgar Bauer foi publicado no Caderno V do Jornal Literário Geral (abril de 1844).
  2. Outra expressão francesa. O apuro argumentativo é grandioso... O assunto é uma obra francesa, criticada por um autor alemão, e Engels revida usando uma expressão francesa para caracterizar a atitude do crítico alemão. En canaille – que diretamente significa “de modo canalha” – significa também “depreciativamente”, em sua versão mais atenuada.
  3. Uma das críticas mais duras de Marx e Engels à “Sagrada família” reside no fato de ela ter sido um simples complemento da concepção hegeliana da História. Em termos políticos era de fundo conformista e, portanto, negava a realidade – ainda de ponta-cabeça –, repudiando qualquer mudança na ordem social e econômica vigentes. A “Sagrada família” no fundo acreditava que a barreira decisiva a bloquear o desenvolvimento alemão estava nas ideias dominantes, sobretudo no que diz respeito à religião, e não na ordem social reacionária, vigente na época. No posfácio à segunda edição de O capital, escrito em 1873, Marx diria: “O aspecto mistificador da dialética hegeliana já foi criticado por mim há cerca de trinta anos, em uma época em que ainda estava em moda”.

“A crítica crítica” na condição de merceeira de mistérios ou a “crítica crítica” conforme o senhor Szeliga

A crítica crítica absoluta ou a crítica crítica conforme o senhor Bruno

A correspondência da crítica crítica

Caminho terreno e transfiguração da “crítica crítica” ou “a crítica crítica” conforme Rodolfo, príncipe de Geroldstein

O juízo final crítico