Miséria da filosofia, por Karl Marx

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Miséria da filosofia
Escrito porKarl Marx
Escrito emprimeira metade de 1847
Publicado 1ª vezem Paris e Bruxelas, 1847
TipoLivro
FonteMarxists Internet Archive

Prefácios

Prefácio da primeira edição alemã

A presente obra foi composta no inverno de 1846-1847, época em que Marx conseguira elucidar os princípios de sua nova concepção histórica e econômica.[p 1] O Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misère, de Proudhon, que acabava de aparecer, deu-lhe o ensejo para desenvolver seus princípios, opondo-os às ideias do homem que, desde então, devia ocupar um lugar importante entre os socialistas franceses da época. Desde o momento em que ambos, em Paris, haviam discutido longamente questões econômicas, muitas vezes durante noites inteiras, os rumos por eles seguidos foram se separando cada vez mais. O livro de Proudhon mostrava que já havia um abismo inseparável entre eles. Manter silêncio não era mais possível; e Marx evidenciou esta ruptura irreparável na resposta que lhe deu.

O julgamento de conjunto de Marx sobre Proudhon encontra-se expresso no artigo reproduzido em apêndice e que apareceu pela primeira vez no “Sozialdemokrat”, de Berlim, nos números 16, 17 e 18. Foi o único artigo que Marx publicou nesse jornal. Tendo as tentativas do sr. von Schweitzer no sentido de levar o jornal para as águas governamentais e feudais se manifestado quase imediatamente, fomos constrangidos a retirar publicamente nossa colaboração, depois de poucas semanas.

A presente obra tem para a Alemanha, agora, uma importância que Marx jamais previra. Como poderia saber que, atacando Proudhon, viria a atingir também o ídolo dos Strebers (arrivistas) de hoje, Rodbertus, que não conhecia nem mesmo de nome?

Este não é o lugar para nos estendermos sobre a relação existente entre Marx e Rodbertus; terei logo a ocasião para fazê-lo. Basta dizer aqui que quando Rodbertus acusa Marx de o haver “roubado” e de “ter em seu O Capital tirado proveito sem fazer citação” de sua obra Zur Erkenntniss, etc., ele se deixa arrastar a uma calúnia que não é explicável senão pelo mau humor natural num gênio desconhecido e pela sua notável ignorância das cousas que ocorrem fora da Prússia, e principalmente da literatura econômica e socialista. Estas acusações, do mesmo modo como a obra de Rodbertus que citamos, jamais passaram sob os olhos de Marx; ele não conhecia de Rodbertus senão as três “Sozialen Briefe” e estas mesmas, de nenhum modo, antes de 1858 ou 1859.

É com maior fundamento que Rodbertus pretende nessas cartas ter descoberto “o valor constituído de Proudhon” bem antes de Proudhon. Mas também aqui ele se gaba sem razão ao supor ter sido o primeiro a descobri-lo. De qualquer modo, nossa obra o critica juntamente com Proudhon, e isso me obriga a estender-me um pouco sobre seu opúsculo “fundamental”: Zur Erkenntniss unserer staatswirthschaftichen Zustcende, de 1842, pelo menos na medida em que esse escrito, além do comunismo à Weitling que também encerra, embora inconscientemente, antecipa Proudhon.

Na medida em que o socialismo moderno, seja qual for a sua tendência, procede da economia política burguesa, ele se liga quase que exclusivamente à teoria do valor de Ricardo. As duas proposições que Ricardo coloca, em 1817, no início de seus Princípios — em primeiro lugar, que o valor de cada mercadoria é unicamente determinado pela quantidade de trabalho exigida para a sua produção, e, em segundo lugar, que o produto da totalidade do trabalho social é repartido entre as três classes dos proprietários de terras (renda), dos capitalistas (lucro) e dos trabalhadores (salário) — já haviam dado motivo a partir de 1821, na Inglaterra, a conclusões socialistas. Elas tinham sido deduzidas com tanta profundidade e clareza que esta literatura, hoje quase desaparecida e que havia sido descoberta em grande parte por Marx, não pôde ser ultrapassada até o aparecimento de O Capital. Em outra ocasião tornaremos a falar nesse assunto. Quando Rodbertus, em 1842, tirava, por sua vez, conclusões socialistas das proposições citadas acima, era, certamente, para um alemão, um passo importante, mas isso não era uma descoberta senão para a Alemanha. Marx mostra a Proudhon, que sofria de uma imaginação semelhante, o pouco de novidade que havia numa tal aplicação da teoria de Ricardo.

“Todos os que estejam familiarizados, por pouco que seja, com o movimento da economia política na Inglaterra, não ignoram que quase todos os socialistas desse país têm proposto, em épocas diferentes, aplicação igualitária (ou seja socialista) da teoria ricardiana. Poderíamos citar ao sr. Proudhon a Économie Politique de Hopkins, 1822; An Inquiry into the Principies of the Distribution of Wealth most conducive to human Happiness, de William Thompson, 1827; Pratical, moral and political Economy, de T. R. Edmonds, 1828, etc., etc. Contentar-nos-emos em dar a palavra a um comunista inglês, Bray, através de sua obra notável: Labour's Wrongs and Labour's Remedy, Leeds, 1839”.

E bastam as citações de Bray para invalidar, numa boa parte, a prioridade reivindicada por Rodbertus.

Nessa época Marx não havia ainda entrado na sala de leitura do “British Museum”. Além das bibliotecas de Paris e Bruxelas, além de meus livros e extratos, que lera durante uma viagem de seis semanas que fizemos juntos pela Inglaterra, no verão de 1845, ele não havia consultado senão os livros que se podiam encontrar em Manchester. A literatura de que falamos não era, pois, tão inacessível nesse momento como o poderá ser presentemente. Se, apesar disso, ela permaneceu ignorada por Rodbertus, isso é exclusivamente devido ao fato de ser ele um prussiano de vistas curtas. Ele é o verdadeiro fundador do socialismo especificamente prussiano, e como tal já foi finalmente reconhecido.

Entretanto, nem mesmo na sua Prússia bem-amada Rodbertus podia ficar a salvo. Em 1859 apareceu em Berlim o primeiro tomo da Crítica da Economia Política, de Marx. Nesse livro, entre as objeções levantadas pelos economistas contra Ricardo, destacamos a que é apresentada em segundo lugar, à página 40:

“Se o valor de troca de um produto é igual ao tempo de trabalho nele contido, o valor de troca de um dia de trabalho é igual ao seu produto. Ou ainda, o salário deve ser igual ao produto do trabalho. Ora, é o contrário que é verdadeiro”.

E em nota:

“Esta objeção levantada contra Ricardo pelos economistas foi retomada mais tarde pelos socialistas. Tendo sido suposta a exatidão teórica da fórmula, a prática foi declarada em contradição com a teoria, e a sociedade burguesa foi convidada a tirar praticamente a consequência que o princípio teórico implicava. Socialistas ingleses têm oposto à economia política, pelo menos neste sentido, a fórmula do valor de troca de Ricardo”.

Nessa nota é indicada a Miséria da Filosofia, de Marx, livro que era então encontrado nas livrarias.

Era assim muito fácil a Rodbertus convencer-se ele mesmo daquilo que era a novidade real de suas descobertas de 1842. Em vez disso, não cessa de proclamá-las e julga-as a tal ponto incomparáveis que não lhe ocorre uma só vez ao espírito que Marx tenha podido tirar sozinho suas conclusões da obra de Ricardo, do mesmo modo como ele, Rodbertus. Mas isso era impossível. Marx o havia “roubado” — a ele a quem o próprio Marx oferecia todas as facilidades para se convencer de que estas conclusões, muito tempo antes deles, pelo menos sob a forma grosseira que, ainda apresentam em Rodbertus, já tinham sido formuladas na Inglaterra.

A aplicação socialista mais simples da teoria de Ricardo é a que mencionamos acima. Em muitos casos, ela deu lugar a apreciações sobre a origem e a natureza da mais-valia que ultrapassam de muito Ricardo. O mesmo se verifica em relação a Rodbertus. Além de jamais oferecer, nesta ordem de ideias, nada que não tenha sido pelo menos tão bem dito antes dele, sua exposição apresenta ainda os mesmos defeitos que a de seus predecessores: ele aceita as categorias econômicas de trabalho, capital, valor, na forma crua em que foram transmitidas pelos economistas, sob a forma que se atêm à aparência sem indagar do seu conteúdo. Ele se priva assim não somente de todos os meios de desenvolvê-las mais completamente — ao contrário de Marx que, pela primeira vez, fez algo destas proposições muitas vezes reproduzidas havia sessenta e quatro anos como toma também o caminho que vai ter diretamente à Utopia, como demonstraremos.

A aplicação precedente da teoria de Ricardo, que mostra aos trabalhadores que a totalidade da produção social, que é o seu produto, lhes pertence porque eles são os únicos produtores reais, conduz diretamente ao comunismo. Mas ela também é, como Marx o demonstra, formalmente falsa, economicamente falando, porque é apenas uma aplicação da moral à economia. Segundo as leis da economia burguesa, a maior parte do produto não pertence aos trabalhadores que o criaram. Se dizemos então: isso não é justo, isso não devia acontecer, tal coisa nada tem a ver com a economia. Dizemos somente que este fato econômico está em contradição com o nosso sentimento moral. É por isso que Marx não fundou em tal coisa suas reivindicações comunistas, mas antes na ruína que se verifica necessariamente, sob nossos olhos, todos os dias, e com uma intensidade cada vez maior, do modo de produção capitalista. Ele se contenta de dizer que a mais-valia se compõe de trabalho não-pago: é um fato puro e simples. Entretanto, aquilo que pode ser formalmente falso do ponto de vista econômico, pode ser exato do ponto de vista da história universal. Se o sentimento moral da massa considera um fato econômico, como a escravidão ou a servidão de outrora, como injusto, isso prova que esse próprio fato é uma sobrevivência, que outros fatos econômicos se produziram graças aos quais o primeiro se tornou insuportável, insustentável. Atrás de uma inexatidão econômica formal pode ocultar-se um conteúdo econômico dos mais reais. Seria descabido estendermo-nos mais aqui, sobre a importância e a história da teoria da mais-valia.

Outras consequências podem ser tiradas da teoria do valor de Ricardo e isso foi feito. O valor das mercadorias é determinado pelo trabalho exigido pela sua produção. Ora, acontece que neste mundo mal feito as mercadorias são compradas ora acima ora abaixo de seu valor, sem que haja nisso simplesmente uma relação com as variações da concorrência. Do mesmo modo como a taxa de lucro apresenta uma forte tendência para se manter no mesmo nível para todos os capitalistas, os preços das mercadorias também tendem a se reduzir ao valor de trabalho por intermédio da oferta e da procura. Mas a taxa de lucro é calculada de acordo com o capital total empregado numa empresa industrial; ora, como em dois ramos de indústria diferentes a produção anual pode incorporar massas de trabalho iguais, ou seja apresentar valores iguais, e como, podendo os salários ser igualmente elevados nestes dois ramos, os capitais empregados podem ser, e o são frequentemente, duplos ou triplos, num ou noutro ramo, a lei do valor de Ricardo, como o próprio Ricardo já o havia descoberto, está em contradição com a lei da igualdade da taxa de lucro. Se os produtos dos dois ramos de indústria forem vendidos pelos seus valores, as taxas de lucro não poderão ser iguais; mas se as taxas de lucro forem iguais, os produtos dos ramos de indústria não serão vendidos pelos seus valores sempre e em toda parte. Temos, pois, aqui, uma contradição, uma antinomia entre duas leis econômicas. A solução prática se efetua, segundo Ricardo (Cap. I, secções 4 e 5), regularmente em favor da taxa de lucro, à custa do valor.

Mas a determinação do valor de Ricardo, apesar de seus caracteres nefastos, tem um lado que a torna cara aos nossos bravos burgueses. É o lado pelo qual ela se dirige com uma força irresistível ao seu sentimento de justiça. Justiça e igualdade de direitos, eis os pilares do edifício social que os burgueses dos séculos XVIII e XIX queriam levantar sobre as ruínas das injustiças, das desigualdades e dos privilégios feudais. A determinação do valor das mercadorias pelo trabalho e a troca livre que se produz, de acordo com essa medida de valor, entre os possuidores iguais em direito, constituem, como Marx já o demonstrou, os fundamentos reais sobre os quais se edificou toda a ideologia política, jurídica e filosófica da burguesia moderna. Desde que se saiba que o trabalho é a medida das mercadorias, os bons sentimentos do bravo burguês devem se sentir profundamente ofendidos pela maldade de um mundo que reconhece nominalmente este princípio de justiça, mas que, na realidade, a cada instante, sem se incomodar, parece pô-lo de lado. Sobretudo o pequeno-burguês, cujo trabalho honesto — mesmo quando não seja senão o de seus operários ou aprendizes — perde todos os dias, e cada vez mais, o seu valor, em consequência da concorrência da grande produção e das máquinas, sobretudo o pequeno produtor deve desejar ardentemente uma sociedade na qual a troca dos produtos de acordo com o seu valor de trabalho seja uma realidade inteira e sem exceção; em outros termos, ele deve desejar ardentemente uma sociedade na qual reine exclusiva e plenamente uma lei única de produção das mercadorias, mas onde sejam suprimidas as condições que, somente elas, tornam esta lei efetiva, isto é, as outras leis da produção das mercadorias, ou melhor, da produção capitalista.

Esta utopia lançou raízes muito profundas no pensamento do pequeno-burguês moderno — real ou ideal. Demonstra-o o fato de que ela já foi, em 1831, sistematicamente desenvolvida por John Gray, ensaiada praticamente e divulgada na Inglaterra nessa época, proclamada como a verdade mais recente, em 1842, por Rodbertus, na Alemanha, e, em 1846, por Proudhon na França; ventilada ainda por Rodbertus, em 1871, como solução da questão social e apresentada, por assim dizer, como seu testamento social; e, em 1884, ela recebe a adesão da sequela que se esforça, sob o nome de Rodbertus, por explorar o socialismo de Estado prussiano.

A crítica desta utopia foi feita de modo tão completo por Marx, tanto no seu escrito contra Proudhon como no que publicou contra Gray (Cf. o apêndice n. 2 desta obra), que posso limitar-me aqui a algumas observações sobre a forma especial que Rodbertus adotou para fundamentá-la e exprimi-la.

Como dissemos, Rodbertus aceita os conceitos econômicos tradicionais sob a forma exata na qual lhe foram transmitidos pelos economistas. Ele não faz a mais leve tentativa de verificação. O valor é para ele

“a avaliação quantitativa de uma coisa relativamente às outras, sendo esta a avaliação tomada por medida”.

Esta definição pouco rigorosa dá-nos quando muito uma ideia daquilo que o valor parece ser de modo aproximado, mas não diz, absolutamente, o que ele é. Todavia, como isso é tudo o que Rodbertus sabe nos dizer sobre o valor, é compreensível que procure uma medida do valor fora do valor. Depois de haver examinado ao acaso, sem ordem, o valor de uso e o valor de troca, numa centena de aspectos, com este poder de abstração que o sr. Adolph Wagner admira infinitamente, chega à conclusão de que não existe medida real do valor e que devemos nos contentar com uma medida supererrogatória. O trabalho poderia ser esta medida, mas somente no caso de troca entre produtos de quantidades iguais de trabalho, apresentando-se o caso “de tal modo por si mesmo, ou por se terem tomado disposições” que o assegurem. Valor e trabalho ficam assim sem a menor relação real, embora todo o primeiro capítulo seja empregado para nos explicar como e porque as mercadorias “custam trabalho” e nada mais senão trabalho.

O trabalho é uma vez mais considerado sob a forma em que é encontrado nos economistas. E nem mesmo isso. Pois ainda que se digam duas palavras sobre as diferenças de intensidade do trabalho, o trabalho é apresentado, de modo muito geral, como algo que “custa”, isto é, que é medida de valor, seja ele despendido ou não na média das condições normais da sociedade. Empreguem os produtores dez dias na fabricação de produtos que podem ser fabricados num dia, ou empreguem apenas um dia; empreguem a melhor ou a pior das utensilhagens; apliquem seu tempo de trabalho na fabricação de artigos socialmente necessários e na quantidade socialmente exigida ou lancem artigos para os quais não haja nenhuma procura ou artigos procurados em quantidades maiores ou menores do que o necessário — nada disso está em questão: o trabalho é o trabalho, o produto de trabalho igual deve ser trocado por outro produto de trabalho igual. Rodbertus que, seja qual for o caso, está sempre pronto, com ou sem propósito, a se colocar do ponto de vista nacional, e a considerar as relações dos produtores isolados do alto do observatório da sociedade geral, evita aqui, medrosamente, tudo isso. E simplesmente porque, desde a primeira linha de seu livro, ele se colocou no caminho que leva diretamente à utopia do vale de trabalho, e também porque qualquer análise do trabalho como produtor de valor devia semear seu caminho de obstáculos intransponíveis. Seu instinto era aqui consideravelmente mais forte do que seu poder de abstração, que não se pode descobrir em Rodbertus, seja dito de passagem, senão através da mais concreta pobreza de ideias.

A passagem à utopia é levada a efeito num abrir e fechar de olhos. As “disposições” que fixam a troca das mercadorias segundo o valor de trabalho, como obedecendo a uma regra absoluta, não apresentam dificuldade. Todos os outros utopistas desta tendência, de Gray a Proudhon, se atormentam para elaborar medidas sociais que venham realizar este objetivo. Procuram pelo menos resolver a questão econômica, graças à ação do possuidor de mercadorias que as troca. Para Rodbertus é bem mais simples. Como bom prussiano, ele recorre ao Estado. Um decreto do poder público ordena a reforma.

O valor é, pois, assim, facilmente “constituído”, mas não a prioridade desta constituição que Rodbertus reclamava. Ao contrário, Gray, assim como Bray — entre muitos outros — muito tempo e muitas vezes antes de Rodbertus, repetiram à saciedade o mesmo pensamento: desejavam piedosamente as medidas graças às quais os produtos pudessem ser trocados, apesar de todos os obstáculos, sempre e apenas pelo seu valor de trabalho.

Depois de haver o Estado assim constituído o valor — pelo menos de uma parte dos produtos, pois Rodbertus é modesto — ele emite seus vales de trabalho, dos quais faz adiantamentos aos capitalistas industriais que com eles pagam seus operários; os operários adquirem então os produtos com os vales de trabalho que receberam, permitindo assim a volta do papel-moeda a seu ponto de partida. É do próprio Rodbertus que é preciso saber a maneira admirável como tal coisa se desenvolve.

“No que diz respeito a esta segunda condição, recorrer-se-á à disposição que exige que o valor atestado no bilhete esteja realmente em circulação, não se dando senão àquele que entregue verdadeiramente um produto o bilhete no qual será registrada com exatidão a quantidade de trabalho necessária para a fabricação do produto. Aquele que entregar um produto de dois dias de trabalho receberá um bilhete no qual estará escrito “2 dias”. A segunda condição será necessariamente preenchida pela observação exata desta regra na emissão. De acordo com a nossa hipótese, o valor verdadeiro dos bens coincide com a quantidade de trabalho despendida para a sua fabricação, e esta quantidade de trabalho tem por medida a divisão do tempo recebida; aquele que entregar um produto ao qual tenham sido dedicados dois dias de trabalho, desde que consiga que lhe sejam certificados dois dias de trabalho, não terá, pois, obtido que se lhe atribua ou certifique nem mais nem menos valor que tenha entregue de fato — e, além disso, como só poderá obter semelhante atestado aquele que pôs realmente um produto em circulação, é igualmente certo que o valor inscrito no bilhete é capaz de pagar a sociedade. Por mais que se alargue a esfera da divisão do trabalho, se a regra for bem seguida a soma de valor disponível será exatamente igual à soma de valor certificado: e como a soma de valor certificado é exatamente a soma de valor consignado, este deve necessariamente se resolver no valor disponível, todas as exigências são satisfeitas e a liquidação é exata” (páginas 166 e 167).

Se Rodbertus teve até aqui a infelicidade de chegar muito tarde com suas descobertas, desta vez pelo menos teve o mérito de uma espécie de originalidade: nenhum de seus rivais havia ousado dar à utopia insensata do vale de trabalho esta forma ingenuamente infantil, direi mesmo verdadeiramente pomeraniana. Pois se para cada vale se entrega um objeto de valor correspondente, nenhum objeto de valor sendo entregue senão em troca de um vale correspondente, a soma dos vales é necessariamente coberta pela soma dos objetos de valor. O cálculo se faz sem deixar o menor resto, sua precisão chega a quase um segundo de trabalho, e não existe empregado superior da Caixa da dívida pública que, ainda que haja envelhecido nas suas funções, possa nele encontrar o mais ligeiro erro. Que desejar mais?

Na sociedade capitalista atual, cada capitalista industrial produz por sua própria conta aquilo que quiser, como quiser e na proporção que quiser. A quantidade socialmente exigida permanece para o industrial uma grandeza desconhecida e ele ignora a qualidade dos objetos procurados assim como sua quantidade. Aquilo que hoje não pode ser entregue com bastante rapidez, poderá ser oferecido amanhã além da procura. Entretanto, a procura acaba sendo satisfeita, bem ou mal, e geralmente a produção é regulada de modo definitivo pelos objetos procurados. Como se efetua a conciliação desta contradição? Pela concorrência. E como chega ela a esta solução? Pela simples depreciação, até abaixo de seu valor de trabalho, das mercadorias que não podem ser utilizadas, pela sua qualidade ou pela sua quantidade, no estado presente das exigências da sociedade, e fazendo sentir aos produtores, desta maneira indireta, que eles têm na fábrica artigos que absolutamente não podem ser utilizados ou que fabricaram em quantidade que não pode ser utilizada, supérflua. Seguem-se duas coisas:

Em primeiro lugar, verifica-se que os desvios contínuos dos preços das mercadorias em relação aos valores das mercadorias são a condição necessária sem a qual o valor das mercadorias não poderá existir. Não é senão pelas flutuações da concorrência e, como consequência, dos preços das mercadorias, que a lei do valor se realiza na produção das mercadorias, e que a determinação do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário se torna uma realidade. Que a forma de representação do valor, que o preço tenha, como regra geral, um aspecto muito diferente daquele que manifesta, é uma sorte que ele partilha com a maior parte das relações sociais. O rei, às mais das vezes, se parece pouco com a monarquia que representa. Numa sociedade de produtores trocadores de mercadorias, querer determinar o valor pelo tempo de trabalho impedindo que a concorrência estabeleça esta determinação do valor na única forma pela qual ela pode se efetuar, influindo sobre os preços, é mostrar que, pelo menos neste terreno, se aceita o habitual desconhecimento utópico das leis econômicas.

Em segundo lugar, a concorrência, realizando a lei do valor da produção das mercadorias numa sociedade de produtores trocadores, estabelece por isso mesmo, e em certas condições, a única ordem e a única organização possíveis da produção social. Não é senão pela depreciação ou pela majoração dos preços dos produtos que os produtores de mercadorias isolados ficam sabendo à sua custa quais os produtos e qual quantidade de tais produtos que a sociedade necessita. Mas é precisamente este único regulador que a utopia de que Rodbertus partilha quer suprimir. E se perguntamos qual a garantia que temos de que não será produzida senão a quantidade necessária de cada produto, que não teremos falta nem de trigo nem de carne enquanto o açúcar de beterraba seja mais do que abundante e a aguardente de batata sobre, que as calças não venham a faltar para cobrir nossa nudez, ao mesmo tempo que os botões de calças se multipliquem aos milhares — Rodbertus, triunfante, mostra-nos o seu famoso cálculo, no qual se estabeleceu um certificado exato para cada libra de açúcar supérflua, para cada tonel de aguardente não comprada, para cada botão de calça inútil, cálculo que é “justo”, que “satisfaz todas as exigências e no qual a liquidação é exata”. E quem não acreditar nisso não tem outra coisa a fazer senão dirigir-se ao sr. X., empregado superior da Caixa da dívida pública da Pomerânia, que pode ser considerado como pessoa incapaz de cometer um erro nas suas contas, e que, tendo revisto o cálculo, achou que estava certo.

E agora vejamos a ingenuidade com que Rodbertus pretende suprimir as crises industriais e comerciais por meio de sua utopia. Desde que a produção das mercadorias atingiu as dimensões do mercado mundial, é através de um cataclismo nesse mercado, de uma crise comercial, que se estabelece o equilíbrio entre os produtores isolados, que produzem de acordo com um cálculo particular, e o mercado para o qual produzem, do qual ignoram mais ou menos as necessidades em qualidades e quantidades.[p 2] Se não se permite que a concorrência torne conhecida dos produtores isolados a situação do mercado pela alta ou pela baixa dos preços, eles se tornam inteiramente cegos. Dirigir a produção das mercadorias de modo tal que os produtores nada possam saber do estado do mercado para o qual produzem — é tratar as crises de uma maneira que o doutor Eisenbart poderia invejar a Rodbertus.

Compreende-se agora porque Rodbertus determina o valor das mercadorias pelo trabalho, e chega a admitir graus diferentes de intensidade de trabalho. Se se tivesse perguntado porque e como o trabalho cria o valor e, em seguida, o determina e mede, ele teria chegado ao trabalho socialmente necessário, necessário para o produto isolado, tanto em relação aos outros produtos da mesma espécie quanto em relação à quantidade total socialmente exigida. Ele teria deparado com a questão: como a produção dos produtores isolados se acomoda à procura social total, e toda a sua utopia se teria tornado impossível. Desta vez, de fato, ele preferiu abstrair: fez abstração do problema a ser resolvido.

Chegamos afinal ao ponto no qual Rodbertus nos oferece algo de verdadeiramente novo, ponto que o distingue de todos os seus numerosos companheiros da organização da troca por meio de vales de trabalho. Todos eles reclamam este modo de troca com o fim de eliminar a exploração do trabalho assalariado pelo capital. Cada produtor deve obter o valor de trabalho total de seu produto. Eles são unânimes a esse respeito, de Gray a Proudhon. Mas Rodbertus, ao contrário, diz que isso não se verifica. O trabalho assalariado e sua exploração subsistem.

Primeiramente, não existe estado social possível no qual o trabalhador possa receber para seu consumo o valor total de seu produto. O fundo produzido deve atender a numerosas funções economicamente improdutivas mas necessárias; e deve, também, sustentar as pessoas nelas ocupadas. Isto só é verdadeiro, aliás, enquanto prevalecer a atual divisão do trabalho. Numa sociedade em que o trabalho produtivo geral fosse obrigatório, sociedade que é possível, a observação não teria razão de ser. Restaria ainda a necessidade de um fundo social de reserva e de acumulação, e então os trabalhadores, isto é, todos os membros da sociedade ficariam de posse e no gozo de seu produto total, mas cada trabalhador isolado não disporia do produto integral de seu trabalho. A manutenção pelo produto do trabalho de funções economicamente improdutivas não foi esquecida pelos outros utopistas do vale de trabalho. Mas eles deixam os próprios operários assumirem os encargos tendo em vista esse fim, seguindo nisso a costumeira prática democrática, enquanto que Rodbertus, cuja reforma em matéria social é inteiramente moldada sobre o modelo do Estado prussiano de 1842, atribuía tudo ao julgamento da burocracia, que determina soberanamente a parte do operário ao produto de seu próprio trabalho e graciosamente lha entrega.

Ademais, a renda fundiária e o lucro devem continuar a subsistir. Com efeito, os proprietários territoriais e os capitalistas industriais preenchem certas funções socialmente úteis, ou mesmo necessárias, ainda que economicamente improdutivas, e recebem em troca uma espécie de vencimentos, renda e lucro — o que não é de nenhum modo uma concepção nova, mesmo em 1824. Para dizer a verdade, eles recebem presentemente demasiado para o pouco que fazem e que fazem bastante mal; mas Rodbertus tem necessidade de uma classe privilegiada, pelo menos para os próximos quinhentos anos. E também a taxa da mais-valia, para me exprimir corretamente, deve subsistir, mas sem poder ser aumentada; Rodbertus aceita como taxa atual da mais-valia 200%, o que quer dizer que para um trabalho diário de doze horas o operário não terá a haver doze horas, mas quatro horas somente, e o valor produzido nas oito horas restantes deverá ser repartido entre o proprietário territorial e o capitalista. Os vales de trabalho de Rodbertus são pois absolutamente mentirosos, mas é preciso ser proprietário feudal na Pomerânia para conceber a existência de uma classe operária a que conviesse trabalhar doze horas para obter um vale de trabalho de quatro horas. Se se traduzem as prestidigitações da produção capitalista nesta língua ingênua, na qual ela aparece como um roubo declarado, tornamo-la impossível. Cada vale dado ao trabalhador seria uma provocação direta à rebelião e incidiria no parágrafo 110 do Código Penal do Império Alemão. É preciso não ter jamais visto outro proletariado senão o de uma propriedade feudal da Pomerânia — proletariado de jornaleiros, na verdade quase em estado de servidão — onde ainda reina o bastão e o chicote e onde todas as jovens bonitas da aldeia pertencem ao harém do seu gracioso senhor, para pretender poder oferecer tais impertinências aos operários. Nossos conservadores são, entretanto, os nossos maiores revolucionários.

Todavia, se os operários demonstrarem bastante mansuetude para acreditar que, tendo trabalhado durante doze horas num duro trabalho, não trabalharam na realidade senão quatro, ser-lhes-á garantido como recompensa que, por toda a eternidade, sua parte no produto de seu próprio trabalho não cairá abaixo de um terço. Na realidade, isso é tocar o hino da sociedade futura numa corneta de criança. Não vale a pena perder mais tempo com esta questão. Como vimos, tudo o que Rodbertus oferece de novo em relação à utopia dos vales de trabalho é pueril e bem inferior aos trabalhos de seus numerosos rivais, tanto os que o precederam como os que se lhe seguiram.

Para a época em que apareceu, Zur Erkenntniss, etc., de Rodbertus, era um livro sem dúvida importante. Seguir a teoria de Ricardo nessa direção era um começo promissor. Apesar de não tratar-se de uma novidade senão para ele e para a Alemanha, seu trabalho não deixa, contudo, de atingir a mesma altura das obras dos melhores dos seus antecessores ingleses. Mas esse trabalho não era senão um começo e sua teoria não podia ser realmente beneficiada senão por meio de um estudo ulterior, fundamental, crítico. Este desenvolvimento de Ricardo para, entretanto, aí, por si mesmo, porque, desde o início, ele é dirigido no outro sentido, no sentido da utopia. Desde então estava perdida a condição de toda crítica: a independência. Rodbertus pôs-se então ao trabalho com um objetivo preconcebido, e tornou-se um economista tendencioso. Uma vez colhido por sua utopia, ele se privou de qualquer possibilidade de progresso científico. De 1842 até sua morte ele gira no mesmo círculo, reproduz as mesmas ideias, já manifestadas ou indicadas na suas obras precedentes, dizendo-se ignorado, considerando-se roubado, quando nelas nada havia a roubar, e se recusa, enfim, não sem intenção, a aceitar a evidência de que, no fundo, ele não havia descoberto senão aquilo que já o havia sido fazia muito tempo.

É quase desnecessário fazer notar que nesta obra a linguagem não coincide sempre com a de O Capital. Nela ainda se fala do trabalho como mercadoria, de compra e venda de trabalho, em vez de força de trabalho.

Como complemento, acrescentaram-se a esta edição: em primeiro lugar, uma passagem da obra de Marx, Crítica da Economia Política (Berlim, 1859), a propósito da primeira utopia dos vales de trabalho de John Gray; e, em segundo lugar, o discurso de Marx sobre o Livre-câmbio, pronunciado em Bruxelas (1847), e que, no desenvolvimento das ideias do autor, pertence ao mesmo período de Miséria da Filosofia.

Friedrich Engels
Londres, 25 de outubro de 1884.

Prefácio da segunda edição alemã

Para esta segunda edição alemã, acrescentarei somente que o nome de Hopkins deve ser substituído pelo de Hodgskin e que a data da obra de William Thompson (na mesma página) é 1824 e não 1827. O saber bibliográfico do sr. professor Anton Menger ficará assim inteiramente satisfeito.

Friedrich Engels
Londres, 29 de março de 1892.

Notas

  1. A Miséria da Filosofia, escrita em francês, apareceu em 1847 em Paris, editada por A. Franck, e em Bruxelas, editada por C. G. Vogler; foi traduzida para o alemão por Ed. Bernstein e Karl Kautsky e publicada em 1885 pela livraria do Partido Social-Democrata da Alemanha, com um prefácio de Engels. Depois de 1847 apareceu, em francês, uma nova edição da Miséria da Filosofia em 1898 — Paris, Giard et Brière e outra em 1908, também de Giard et Brière. A presente edição é, pois, a terceira, sem contar a edição original, que não continha senão o texto da Miséria. O exemplar de Marx que, assim como os outros livros que lhe pertenciam, foi dado por suas duas filhas, Laura Lafargue e Eleanor Aveling, ao partido socialista alemão, para formar, com os livros de Engels, a base de uma biblioteca do Partido, apresenta algumas correções do autor: elas foram reproduzidas nesta, edição (Nota da 3ª. edição francesa).
  2. Pelo menos é o que se passava até estes últimos tempos. Depois que a Inglaterra começou a perder, e cada vez mais, o monopólio do mercado mundial, em consequência da participação da França, da Alemanha e sobretudo da América, do comércio internacional, uma nova forma de equilíbrio parece querer estabelecer-se. O período de prosperidade geral que precede as crises não aparecerá sempre; e, se desaparecesse, uma estagnação crônica, com ligeiras flutuações, tornar-se-ia o estado normal da indústria moderna.

Nota preliminar

O sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo, porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós na nossa qualidade de alemão e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro.

O leitor compreenderá que, neste trabalho ingrato, foi preciso que abandonássemos muitas vezes a crítica do sr. Proudhon para fazer a da filosofia alemã, e que, ao mesmo tempo, apresentássemos breves exposições de economia política.

Karl Marx
Bruxelas, 15 de junho de 1847.

A obra do sr. Proudhon não é apenas um tratado de economia política, um livro comum, mas uma Bíblia: “Mistérios”, “Segredos arrancados do seio de Deus”, “Revelações”, nada disso ali falta. Mas como, nos nossos dias, os profetas são discutidos mais conscienciosamente do que os autores profanos, é preciso que o leitor se resigne a percorrer conosco a erudição árida e tenebrosa da “Gênese”, para se elevar mais tarde, com o sr. Proudhon, às regiões etéreas e fecundas do supra-socialismo. (V. Proudhon, Philosophie de la Misère, Prólogo, pág. III linha 20).

Uma descoberta científica

Oposição do valor de utilidade e do valor de troca

"A capacidade que têm todos os produtos, sejam naturais sejam industriais, de servirem para a subsistência do homem, denomina-se particularmente valor de utilidade; a capacidade que têm de poderem ser dados uns pelos outros, valor em troca... Como o valor de utilidade se torna valor em troca?... A formação da ideia do valor (em troca) não foi considerada pelos economistas com bastante cuidado: é preciso que nos detenhamos nesse ponto. Tendo-se em vista que entre os objetos de que necessito, um número muito grande não se encontra na natureza senão em quantidade medíocre, podendo ser mesmo inexistente, sou obrigado a auxiliar a produção daquilo que me falta, e como não me é possível cuidar de tanta coisa, eu proporei a outros homens, meus colaboradores em funções diversas, que me cedam uma parte de seus produtos em troca do meu" (Proudhon, t. l.°, cap. II).

O sr. Proudhon propõe-se a nos explicar, antes de tudo, a dupla natureza do valor, "a distinção no valor", o movimento que torna o valor de utilidade em valor de troca. É preciso que nos detenhamos, com o sr. Proudhon, neste ato de transubstanciação. Eis como este se cumpre segundo nosso autor.

Um número muito grande de produtos não é encontrado na natureza: resultam da atividade industrial. Suponhamos que as necessidades ultrapassem a produção espontânea da natureza, e vemos que o homem é obrigado a recorrer à produção industrial. Que é esta indústria na suposição do sr. Proudhon? Qual a sua origem? Um homem só, sentindo a necessidade de um número muito grande de coisas "não pode cuidar de tanta coisa". Tantas necessidades a satisfazer supõem outras tantas coisas a produzir — não há produtos sem produção; e tantas coisas a produzir já não fazem supor as mãos de um único homem para a sua produção. Ora, ao supormos mais de um homem cuidando da produção, já estamos supondo toda uma produção baseada na divisão do trabalho. Assim a necessidade, tal como o sr. Proudhon a supõe, supõe ela mesma toda a divisão do trabalho. E supondo a divisão do trabalho, temos a troca e, consequentemente, o valor de troca. Tanto teria valido supor em primeiro lugar o valor de troca.

Mas o sr. Proudhon achou preferível contornar a questão. Acompanhemo-lo em todas as suas voltas, para retornar sempre ao.ponto de partida.

Para sair do estado de coisas em que cada um produz solitariamente, e para chegar à troca, "eu me dirijo", diz o sr. Proudhon, "a meus colaboradores em suas diversas funções". Tenho, assim, colaboradores, todos eles com funções diversas, sem que por isso eu e todos os outros, sempre de acordo com a suposição do sr. Proudhon, tenhamos saído da posição solitária e pouco social dos Robinson. Os colaboradores e as funções diversas, a divisão do trabalho e a troca que ela indica, tudo foi encontrado.

Resumamos: tenho necessidades fundadas na divisão do trabalho e na troca. Supondo estas necessidades o sr. Proudhon supõe também a troca, o valor de troca, do qual ele se propõe precisamente fazer "notar a formação com maior cuidado do que os outros economistas".

O sr. Proudhon bem poderia ter invertido a ordem das cousas sem prejudicar com isso a justeza de suas conclusões. Para explicar o valor de troca, precisa-se da troca. Para explicar a troca, precisa-se da divisão do trabalho. Para explicar a divisão do trabalho, precisa-se das necessidades que requerem a divisão do trabalho. Para explicar estas necessidades, é preciso supô-las, o que não quer dizer negá-las, contrariamente ao primeiro axioma do prólogo do sr. Proudhon:

"Supor Deus é negá-lo" (Prólogo, pág. 1).

Como o sr. Proudhon, para quem a divisão do trabalho é tida como conhecida, se arranjará para explicar o valor de troca, que para ele é sempre o desconhecido?

"Um homem" vai "propor a outros homens, seus colaboradores em funções diversas, que se estabeleça a troca e se faça uma distinção entre o valor de uso e o valor de troca".

Aceitando a distinção proposta, os colaboradores não deixam ao sr. Proudhon outro "cuidado" senão o de consignar o fato, de registrar, de "anotar" em seu Traité d’Économie politique "a geração da ideia de valor". Mas ele continua a nos dever a explicação da "geração" desta proposta, ele tem de nos dizer, enfim, como este homem sozinho, este Robinson, teve repentinamente a ideia de fazer "aos seus colaboradores" uma proposta do gênero conhecido, e como estes colaboradores a aceitaram sem nenhum protesto.

O sr. Proudhon não entra nestes pormenores genealógicos. Ele dá simplesmente ao fato da troca uma espécie de cunho histórico ao apresentá-la sob a forma de uma proposta feita por um terceiro visando estabelecer a troca.

Eis uma amostra do "método histórico e descritivo" do sr. Proudhon, que manifesta um altivo desdém pelo "método histórico e descritivo" dos Adam Smith e dos Ricardo.

A troca tem a sua própria história. Ela passou por diferentes fases. Houve época, como na Idade Média, em que não se trocava senão o supérfluo, o excedente da produção sobre o consumo.

Houve outras épocas em que não somente o supérfluo, mas todos os produtos, toda a existência industrial se baseava no comércio, em que a produção inteira dependia da troca. Como explicar esta segunda fase da troca — o valor venal na sua segunda potência?

O sr. Proudhon teria uma resposta já pronta: admitamos que um homem tenha "proposto a outros homens, seus colaboradores em funções diversas", elevar o valor venal à sua segunda potência.

Chegou, enfim, a época em que tudo aquilo que os homens tinham considerado como inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico, e podia ser alienado. É a época em que as próprias cousas que até então eram transmitidas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; ganhas, mas jamais compradas — virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. — tudo passou enfim para o comércio. É a época da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia política, a época em que todas as cousas, morais ou físicas, tornando-se valores venais, são levadas ao mercado para serem apreciadas pelo seu mais justo valor.

Como explicar ainda esta nova e última fase da troca — o valor venal em sua terceira potência?

O sr. Proudhon teria uma resposta já pronta: admitamos que uma pessoa tenha "proposto a outras pessoas, seus colaboradores em diversas funções, fazer da virtude, do amor, etc., um valor venal, elevar o valor de troca à sua terceira e última potência".

Como se vê, o "método histórico e descritivo" do sr. Proudhon serve para tudo, responde a tudo, explica tudo. Quando se trata sobretudo de explicar historicamente "a geração de uma ideia econômica", ele supõe um homem que propõe a outros homens, seus colaboradores em diversas funções, levar a efeito este ato de geração, e tudo está dito.

Daqui por diante aceitamos a "geração" do valor de troca como um fato acabado; não resta agora senão expor a relação entre o valor de troca e o valor de utilidade. Ouçamos o sr. Proudhon:

"Os economistas fizeram ressaltar muito bem o duplo caráter do valor; mas aquilo que não apresentaram com a mesma nitidez é a sua natureza contraditória; aqui começa a nossa crítica... E pouca cousa ter assinalado no valor útil e no valor permutável este surpreendente contraste, no qual os economistas não estão acostumados a ver senão uma cousa das mais simples: é preciso mostrar que esta pretensa simplicidade oculta um mistério profundo que temos o dever de penetrar... Em termos técnicos, o valor útil e o valor permutável estão em razão inversa um do outro".

Se apanhamos bem o pensamento do sr. Proudhon, eis os quatro pontos que ele pretende estabelecer:

  1. — O valor útil e o valor permutável, que formam "um contraste surpreendente", estão em oposição;
  2. — O valor útil e o valor permutável estão em razão inversa um do outro, em contradição;
  3. — Os economistas não viram nem conheceram nem a oposição nem a contradição;
  4. — A crítica do sr. Proudhon começa pelo fim.

Nós também começaremos pelo fim, e para defender os economistas das acusações do sr. Proudhon, daremos a palavra a dois economistas muito importantes.

Sismondi: "É a oposição entre o valor de uso e o valor de troca a que o comércio reduz todas as cousas, etc." (Estudos, tomo II, pág. 162, edição de Bruxelas).

Lauderdale: "Em geral, a riqueza nacional (o valor útil) diminui à proporção que as fortunas individuais se avolumam pelo aumento do valor venal; e à medida que estas se reduzem peia diminuição deste valor, a primeira aumenta de um modo geral." (Pesquisas sobre a natureza e a origem da riqueza pública tradução de Largentil de Lavaise, Paris, 1808).

Sismondi baseou na oposição entre o valor de uso e o valor de troca sua principal doutrina, segundo a qual a diminuição da renda é proporcional ao crescimento da população.

Lauderdale baseou seu sistema na razão inversa das duas espécies de valor, e sua doutrina era mesmo de tal modo popular no tempo de Ricardo, que este era levado a falar dela como de uma cousa geralmente conhecida.

"Foi confundindo as ideias de valor venal e das riquezas (valor útil) que se pretendeu que, diminuindo a quantidade das cousas necessárias, úteis ou agradáveis à vida, era possível aumentar as riquezas." (Ricardo, Príncipes d’économie politique, tradução de Constâncio, anotada por J. B. Say. Paris, 1835. Tomo II, capítulo Sobre o valor e as riquezas).

Acabamos de ver que os economistas, antes do sr. Proudhon, "assinalaram" o mistério profundo de oposição e contradição. Vejamos, agora como o sr. Proudhon explica, por sua vez, este mistério, depois de se terem manifestado os economistas.

O valor de troca de um produto baixa à medida que a oferta vai crescendo, a procura permanecendo a mesma. Em outros termos: quanto mais abundante for um produto relativamente à procura, tanto mais o seu valor de troca ou seu preço será baixo. Vice-versa: quanto mais fraca for a oferta em relação à procura, mais alto será o valor de troca ou o preço do produto. Em outros termos: quanto maior for a raridade dos produtos oferecidos em relação à procura, maior será a elevação dos preços. O valor de troca de um produto depende de sua abundância ou de sua escassez, mas sempre em relação à sua procura. Suponhamos um produto mais do que raro, único em seu gênero: este produto único será mais do que abundante, será supérfluo, se não for procurado. Suponhamos, ao contrário, um produto que exista aos milhões: ele será sempre escasso, se não bastar à procura, isto é, se for muito procurado.

Trata-se de verdades quase banais, poderíamos dizê-lo, e, no entanto, foi preciso reproduzi-las aqui para fazer com que os mistérios do sr. Proudhon fossem compreendidos.

"De tal modo que, seguindo o princípio até às últimas consequências chegaríamos da maneira mais lógica do mundo, à conclusão de que as cousas cujo uso é necessário e a quantidade infinita nada deveriam custar e aquelas cuja utilidade é nula e a raridade extrema deveriam ter um preço inestimável. Para cúmulo do embaraço, a prática não admite estes extremos: de um lado, nenhum produto humano poderia jamais alcançar o infinito em grandeza; de outro lado, as cousas mais raras necessitam, num grau qualquer, de ser úteis, sem o que elas não seriam suscetíveis de qualquer valor. O valor útil e o valor permutável permanecem, pois, fatalmente, presos um ao outro, se bem que, por sua natureza, tendem continuamente a se excluir"(Tomo I, pág. 39).

Que é que leva ao cúmulo o embaraço do sr. Proudhon? É que ele se esqueceu simplesmente da procura e de que uma cousa não poderia ser rara ou abundante senão na medida em que é procurada. Uma vez posta de lado a procura, ele assimila o valor permutável à raridade e o valor útil à abundância. Efetivamente, dizendo que as cousas "cuja utilidade é nula e a raridade extrema são de preço inestimável", ele diz apenas que o valor em troca não é senão a raridade. "Raridade extrema e utilidade nula", é a raridade pura. "Preço inestimável" é o máximo de valor permutável, é o valor permutável em sua pureza. Estes dois termos, ele os põe em equação. Assim, valor permutável e raridade são termos equivalentes. Chegando a estas pretensas "consequências extremas", o sr. Proudhon levou ao extremo, com efeito, não as cousas mas os termos que as exprimem, e com isso faz mais uma demonstração de retórica do que de lógica. Ele encontra as suas primeiras hipóteses em toda a sua nudez, quando pensa ter encontrado novas consequências. Graças ao mesmo modo de proceder, consegue identificar o valor útil com a abundância pura.

Depois de ter posto em equação o valor permutável e a raridade, o valor útil e a abundância, o sr. Proudhon fica todo espantado por não encontrar nem o valor útil na raridade e no valor permutável, nem o valor permutável na abundância e no valor útil; e vendo que a prática não admite estes extremos, ele não pode fazer outra cousa senão acreditar no mistério. Existe para ele preço inestimável, porque não existem compradores, e ele não os encontrará jamais, enquanto fizer abstração da procura.

De outro lado, a abundância do sr. Proudhon parece ser qualquer cousa de espontâneo. Ele se esquece inteiramente de que há pessoas que a produzem e que é do interesse dessas pessoas jamais perderem de vista a procura. De outro modo, como o sr. Proudhon teria podido dizer que as cousas que são muito úteis devem ter preços muitos baixos e mesmo não custar nada? Ele deveria ter concluído, ao contrário, que é preciso restringir a abundância, a produção das cousas muito úteis, se se quiser elevar os preços das mesmas, o valor de troca.

Os antigos vinhateiros da França, ao solicitarem uma lei que proibisse a plantação de novas vinhas, os holandeses, ao queimarem as especiarias da Ásia e ao arrancarem as cravoarias nas Molucas — queriam somente reduzir a abundância para elevar o valor de troca. Em toda a Idade Média, quando se limitava por leis o número de companheiros que um mestre podia empregar ou o número de instrumentos que podia utilizar, agia-se segundo este mesmo princípio (Ver Anderson, História do Comércio).

Depois de ter apresentado a abundância como valor útil, e a raridade como valor de troca — nada mais fácil do que demonstrar que a abundância e a raridade estão em razão inversa — o sr. Proudhon identifica o valor de utilidade com oferta e o valor de troca com procura. Para tornar a antítese ainda mais explícita, ele faz uma substituição de termos pondo "valor de opinião" no lugar de valor permutável. Vemos assim que a luta mudou de terreno, e temos de um lado a utilidade (o valor em uso, a oferta), de outro a opinião (o valor permutável, a procura).

Estas duas potências opostas uma à outra, quem as conciliará? Como fazer para pô-las de acordo? Seria simplesmente possível estabelecer entre elas um ponto de comparação?

"Certamente, exclama o sr. Proudhon, existe um: é o arbítrio. O preço que resultará desta luta entre a oferta e a procura, entre a utilidade e a opinião, não será a expressão da justiça eterna."

O sr. Proudhon continua a desenvolver esta antítese:

"Na minha qualidade de comprador livre, sou juiz da minha necessidade, juiz da conveniência do objeto, juiz do preço que quero atribuir-lhe. De outro lado, em vossa qualidade de produtor livre, sois senhor dos meios de execução, e, por conseguinte, tendes a faculdade de reduzir vossas despesas." (Tomo I, pág. 42.)

E como a procura ou o valor em troca é idêntico à opinião, o sr. Proudhon é levado a dizer:

"Está provado que é o livre arbítrio do homem que dá lugar à oposição entre o valor útil e o valor em troca. Como resolver esta oposição enquanto subsistir o livre arbítrio? E como sacrificar este, a não ser com sacrifício do homem?" (Tomo I, pág. 51).

Não há, assim, resultado possível. Há uma luta entre duas potências por assim dizer incomensuráveis, entre o útil e a opinião, entre o comprador livre e o produtor livre.

Vejamos as cousas mais de perto.

A oferta não representa exclusivamente a utilidade, a procura não representa exclusivamente a opinião. Aquele que procura não oferece também ele um produto qualquer, ou o sinal representativo de todos os produtos, o dinheiro, e, oferecendo-o, não representa ele, segundo o sr. Proudhon, a utilidade ou o valor de uso?

De outro lado, aquele que oferece não procura também um produto qualquer, ou o sinal representativo de todos os produtos? E não se torna ele assim o representante da opinião, do valor de opinião ou do valor em troca?

A procura é ao mesmo tempo uma oferta, a oferta é ao mesmo tempo uma procura. Assim, a antítese do sr. Proudhon, identificando simplesmente a oferta e a procura, uma com a utilidade, outra com a opinião, repousa apenas numa abstração fútil.

Aquilo que o sr. Proudhon chama valor útil, outros economistas chamam com a mesma razão valor de opinião. Não citaremos senão Storch (Cours d’Économie politique, Paris, 1823, págs. 88 e 89).

Segundo ele, chamam-se necessidades as coisas de que sentimos necessidade; chamam-se valores as cousas às quais atribuímos valor. A maior parte das cousas só têm valor porque satisfazem as necessidades engendradas pela opinião. A opinião sobre nossas necessidades pode mudar, e assim a utilidade das cousas que não exprimem senão uma relação entre essas cousas e nossas necessidades também pode mudar. As próprias necessidades naturais mudam continuamente. Que variedade existe, com efeito, nos objetos que servem de alimentação principal para os diferentes povos!

A luta não se estabelece entre a utilidade e a opinião: ela se estabelece entre o valor venal que aquele que oferece procura, e o valor venal que aquele que procura oferece. O valor de troca do produto é de cada vez a resultante destas apreciações contraditórias.

Em última análise, a oferta e a procura põem em presença a produção e o consumo, mas a produção e o consumo fundados nas trocas individuais.

O produto que se oferece não é o útil em si mesmo. É o consumidor que sente a sua utilidade. E mesmo quando se lhe reconhece a qualidade de ser útil, ele não é exclusivamente o útil. No curso da produção, ele foi trocado por todas as despesas de produção, tais como as matérias-primas, os salários dos operários, etc., cousas, todas elas, valores venais. O produto representa assim, aos olhos do produtor, uma soma de valores venais. Aquilo que ele oferece, não é somente um objeto útil, mas também e sobretudo um valor venal.

Quanto à procura, ela não será efetiva senão com a condição de ter à sua disposição meios de troca. Estes meios são também eles produtos, valores venais.

Na oferta e na procura encontramos, pois, de um lado, um produto que custou valores venais, e a necessidade de vender; de outro, meios que custaram valores venais, e o desejo de comprar.

O sr. Proudhon opõe o comprador livre ao produtor livre. Ele atribui a um e a outro qualidades puramente metafísicas. É o que o faz dizer:

"Está provado que é o livre arbítrio do homem que dá lugar à oposição entre o valor útil e o valor de troca".

O produtor, desde que produziu numa sociedade fundada na divisão do trabalho e na troca, e essa é a hipótese do sr. Proudhon, é forçado a vender. O sr. Proudhon torna o produtor senhor dos meios de produção; mas convirá conosco que não é do livre arbítrio que dependem seus meios de produção. Há mais: estes meios de produção são em grande parte produtos que lhe vêm de fora, e na produção moderna ele não é mesmo livre para produzir a quantidade que quiser. O grau atual do desenvolvimento das forças produtivas o obriga a produzir nesta ou naquela escala.

O consumidor não é mais livre do que o produtor. Sua opinião repousa nos seus meios e suas necessidades, que são determinados pela sua situação social; esta depende por sua vez da organização social em seu conjunto. Sim, o operário que compra batatas, e a mulher mantida por outrem que compra peças de renda seguem ambos sua opinião respectiva. Mas a diversidade de suas opiniões explica-se pela diferença da posição que ocupam no mundo, a qual é produto da organização social.

O sistema das necessidades é todo ele fundado na opinião ou na organização inteira da produção? As necessidades nascem com maior frequência, diretamente da produção, ou de um estado de cousas baseado na produção. O comércio do universo gira quase que inteiramente sobre necessidades, não do consumo individual, mas da produção. Assim, para citar outro exemplo, a necessidade que existe de notários não supõe um dado direito civil, que não é senão a expressão de um certo desenvolvimento da propriedade, isto é, da produção?

Não basta ao sr. Proudhon haver eliminado da relação entre a oferta e a procura os elementos de que acabamos de falar. Ele leva a abstração aos limites extremos, fundindo todos os produtores num só produtor, todos os consumidores num só consumidor, estabelecendo a luta entre estas duas personagens quiméricas. Mas no mundo real as cousas se passam de outro modo. A concorrência entre os que oferecem e a concorrência entre os que procuram, formam um elemento necessário da luta entre os compradores e os vendedores, de onde resulta o valor venal.

Depois de ter eliminado as despesas de produção e a concorrência, o sr. Proudhon pode, muito à vontade, reduzir ao absurdo a fórmula da oferta e da procura.

"A oferta e a procura, diz ele, não são outra coisa senão duas formas cerimoniais que servem para pôr em presença o valor de utilidade e o valor de troca e para provocar a sua conciliação. São os polos elétricos que entrando em ligação devem produzir o fenômeno de afinidade denominado troca" (Tomo I, págs. 49 e 50).

Poder-se-ia do mesmo modo dizer que a troca não é senão uma "forma cerimonial", para pôr em presença o consumidor e o objeto do consumo; poder-se-ia do mesmo modo dizer que todas as relações econômicas são "formas cerimoniais", para servirem de intermediárias. A oferta e a procura são relações de uma produção dada, nem mais nem menos do que as trocas individuais.

Em que consiste, pois, a dialética do sr. Proudhon? Em substituir o valor útil e o valor permutável, a oferta e a procura por noções abstratas e contraditórias, tais como a escassez e a abundância, o útil e a opinião, um produtor e um consumidor, ambos cavaleiros do livre arbítrio.

E aonde queria ele chegar?

Queria preparar o meio de introduzir mais tarde um dos elementos que havia afastado, as despesas de produção, como a síntese entre o valor útil e o valor permutável. É assim que para ele as despesas de produção constituem o valor sintético ou o valor constituído.

O valor constituído ou o valor sintético

"O valor (venal) é a pedra angular do edifício econômico".

O valor "constituído" é a pedra angular do sistema das contradições econômicas.

Que é, pois, este "valor constituído", que constitui toda a descoberta do sr. Proudhon em economia política?

Uma vez admitida a utilidade, o trabalho é a fonte do valor. A medida do trabalho é o tempo. O valor relativo dos produtos é determinado pelo tempo de trabalho que foi preciso para produzi-los. O preço é a expressão monetária do valor relativo de um produto. Enfim, o valor constituído de um produto é simplesmente o valor que se constitui pelo tempo do trabalho nele fixado.

Assim como Adam Smith descobriu a divisão do trabalho, (neste ponto há uma falha na edição transcrita - o texto em colchetes a seguir foi extraído da edição da Editora Leitura, Rio, 1955) [assim também , o sr. Proudhon pretende ter descoberto o valor constituído.] Não se trata precisamente de "algo de inaudito", mas é preciso convir em que não há nada de inaudito em nenhuma descoberta da Ciência Econômica. O sr. Proudhon, que sente toda a importância de sua invenção, procura contudo atenuar o mérito de tal coisa "a fim de tranquilizar o leitor sobre suas pretensões à originalidade, e conciliar os espíritos cuja timidez os torna pouco favoráveis às ideias novas". Entretanto, à medida que relata o que cada um de seus predecessores fez para a apreciação do valor, ele é forçosamente levado a confessar bem alto que a ele que cabe a maior parte, a parte do leão.

"A ideia sintética do valor tinha sido vagamente percebida por Adam Smith... Mas esta ideia do valor era inteiramente intuitiva em A. Smith. A sociedade não muda seus hábitos através da crença em intuições: ela não se decide senão através da autoridade dos fatos. Era preciso que a antinomia se exprimisse de uma maneira mais sensível e mais nítida: J. B. Say foi seu principal intérprete".

Eis a história completa da descoberta do valor sintético: cabe a Adam Smith a intuição vaga, a J. B. Say a antinomia, ao sr. Proudhon a verdade constituinte e "constituída". E que não haja aí nenhum engano: todos os outros economistas, de Say a Proudhon, nada mais fizeram senão se arrastar na rotina da antinomia.

"É incrível que tantos homens de senso se debatam há quarenta anos contra uma ideia tão simples. A comparação dos valores se efetua sem que haja entre eles qualquer ponto de comparação e sem unidade de medida: eis aí o que os economistas do século XIX, no lugar de adotar a teoria revolucionária da igualdade, resolveram sustentar contra a opinião de toda a gente. Que dirá a posteridade?" (Tomo I, pág. 68).

A posteridade, tão bruscamente apostrofada, começará por se sentir embaraçada ante a cronologia. Ela deve necessariamente perguntar a si mesma: Ricardo e os de sua escola não são, pois, economistas do século XIX? O sistema de Ricardo, que apresenta como princípio "que o valor relativo das mercadorias decorre exclusivamente da quantidade de trabalho requerida para sua produção", remonta a 1817. Ricardo é o chefe de toda uma escola, que reina na Inglaterra a partir da Restauração. A doutrina ricardiana resume rigorosamente, impiedosamente, toda a burguesia moderna. "Que dirá a posteridade?" Ela não dirá que o sr. Proudhon não conheceu Ricardo, pois que fala dele, e fala longamente, e sempre volta a falar, acabando por dizer que sua obra é uma "moxinifada". Se porventura a posteridade intervir nisso, ela dirá talvez que o sr. Proudhon, temendo chocar a anglofobia de seus leitores, preferiu tornar-se o editor responsável das ideias de Ricardo. Seja como for, ela achará muito ingênuo o fato de o sr. Proudhon apresentar como "teoria revolucionária do futuro" aquilo que Ricardo expôs cientificamente como a teoria da sociedade atual, da sociedade burguesa, e que tome assim para a solução da antinomia entre a utilidade e o valor de troca aquilo que Ricardo e sua escola apresentaram muito tempo antes dele como a fórmula científica de um único lado da antinomia, do valor em troca. Mas deixemos para sempre a posteridade de lado, e confrontemos o sr. Proudhon com seu predecessor Ricardo. Eis algumas passagens deste autor, que resumem sua doutrina sobre o valor: "Não é a utilidade que é a medida do valor de troca ainda que ela lhe seja absolutamente necessária." (P. 3, tomo I dos Príncipes de l'économie politique, etc., traduzido do inglês por F. S. Constâncio, Paris, 1835).

"As cousas, uma vez reconhecidas úteis por si mesmas, tiram seu valor de troca de duas fontes: de sua raridade e da quantidade de trabalho necessário para obtê-las. Há cousas cujo valor não depende senão de sua raridade. Nenhum trabalho podendo aumentar-lhe a quantidade, o seu valor não pode baixar em consequência de sua maior abundância. Tal acontece com as estátuas, com os quadros preciosos, etc. Este valor depende unicamente das faculdades, do gosto e do capricho daqueles que têm desejo de possuir tais objetos" (N.° 4 e 5, t. I, obr. cit.)." Eles não formam, contudo, senão uma parte muito pequena das mercadorias que se trocam diariamente. Sendo fruto da indústria, o maior número dos objetos que se deseja possuir, eles podem ser multiplicados, não somente num país mas em vários, num grau a que é quase impossível assinalar limites, todas as vezes que se quiser empregar a indústria necessária para criá-los" (P. 5, t. I, obr. cit.). "Quando, pois, falamos de mercadorias, de seu valor de troca e dos princípios que regulam o seu preço relativo, não temos em vista senão as mercadorias cuja quantidade podem aumentar pela indústria do homem, cuja produção é encorajada pela concorrência e não é contrariada por nenhum entrave " (T. I, pág. 5).

Ricardo cita Adam Smith, que, segundo ele, "definiu com muita precisão a fonte primitiva de todo valor permutável" (Cap. V. t. I), e acrescenta:

"Que tal seja, na realidade, a base do valor permutável de todas as cousas, isto é, o tempo de trabalho, com exceção daquelas que a indústria dos homens não pode multiplicar à vontade, é um ponto de doutrina da mais alta importância em economia política: pois não existem fontes de onde tenham brotado tantos erros, e de onde tenham nascido tantas opiniões diversas nesta ciência, como o sentido vago e pouco preciso que se atribui à palavra valor" (P. 8, t. I). "Se é a quantidade de trabalho fixada numa cousa que regula seu valor de troca, segue-se que todo aumento na quantidade do trabalho deve necessariamente aumentar o valor do objeto ao qual ele tenha sido aplicado, e do mesmo modo toda diminuição de trabalho deve diminuir-lhe o preço" (P. 9, t. I).

Ricardo critica em seguida A. Smith:

  1. "Por dar ao valor outra medida que não o trabalho, ora o valor do trigo, ora a quantidade de trabalho que uma coisa pode comprar, etc." (T. I, págs. 9 e 10).
  2. "Por ter admitido sem reservas o princípio e por restringir, apesar disso, a sua aplicação ao estado primitivo e rude da sociedade, que precede a acumulação dos capitais e a propriedade das terras" (T. I, pág. 21).

Ricardo esforça-se por demonstrar que a propriedade das terras, ou seja a renda, não poderia alterar o valor relativo da dos gêneros, e que a acumulação dos capitais não exerce senão uma ação passageira e oscilatória sobre os valores relativos determinados peia quantidade comparativa de trabalho empregado na sua produção. Em apoio desta tese ele apresenta a sua famosa teoria da renda fundiária, decompõe o capital, e chega, em última análise, a não encontrar ali senão trabalho acumulado. Ele desenvolve, em seguida, toda uma teoria do salário e do lucro, e demonstra que o salário e o lucro têm seus movimentos de alta e de baixa, em razão inversa um do outro, sem influírem sobre o valor relativo do produto. Ele não despreza a influência que a acumulação dos capitais e a diferença de sua natureza (capitais fixos e capitais circulantes), assim como a taxa dos salários, podem exercer sobre o valor proporcional dos produtos. São esses, aliás, os principais problemas de que se ocupa Ricardo.

"Qualquer economia no trabalho, diz ele, faz sempre baixar o valor relativo de uma mercadoria, refira-se esta economia ao trabalho necessário à fabricação do próprio objeto, ou ao trabalho necessário à formação do capital empregado nesta produção" (T. I. pág. 48). "Por conseguinte, enquanto um dia de trabalho continue a dar a um a mesma quantidade de peixe e a outro a mesma quantidade de caça, a taxa natural dos preços respectivos de troca permanecerá sempre a mesma, qualquer que seja, aliás, a variação nos salários e no lucro, e apesar de todos os efeitos da acumulação do capital" (T. I, pág. 32). "Consideramos o trabalho como o fundamento do valor das cousas, e a quantidade de trabalho necessário à sua produção como a regra que determina as quantidades respectivas das mercadorias que se devem dar em troca de outras: mas não pretendemos negar que tenha havido no preço corrente das mercadorias algum desvio acidental e passageiro em relação a este preço primitivo e natural" (T. I, pág. 105, loc. cit.). "São as despesas de produção que regulam, em última análise, os preços das cousas, e não, como se tem afirmado muitas vezes, a proporção entre a oferta e a procura " (T. II, pág. 253).

Lord Lauderdale tinha desenvolvido as variações do valor permutável segundo a lei da oferta e da procura, ou da raridade e da abundância relativamente à procura. Segundo ele, o valor de uma cousa pode aumentar quando a quantidade dela diminui ou que a procura aumenta; ela pode diminuir em razão do aumento de sua quantidade ou em razão da diminuição da procura. Assim, o valor de uma cousa pode mudar pela atuação de oito causas diferentes, a saber, das quatro causas aplicadas a esta mesma cousa, e das quatro causas aplicadas ao dinheiro ou a qualquer outra mercadoria que sirva de medida de seu valor. Eis a refutação de Ricardo:

"Os produtos de que um particular ou uma companhia têm o monopólio variam de valor segundo a lei que Lord Lauderdale enunciou: baixam à proporção que são oferecidos em maior quantidade, e sobem com o desejo que demonstram os compradores de os adquirir; o seu preço não tem relação necessária com seu valor natural. Mas quanto às cousas que estão sujeitas à concorrência entre os vendedores e cuja quantidade pode aumentar em limites moderados, seu preço depende, em definitivo, não do estado da procura e do abastecimento, mas sim do aumento das despesas de produção." (T. II, pág. 159).

Deixaremos ao leitor o cuidado de fazer a comparação entre a linguagem tão precisa, tão clara, tão simples de Ricardo, e os esforços de retórica que faz o sr. Proudhon para chegar à determinação do valor relativo pelo tempo de trabalho.

Ricardo mostra-nos o movimento real da produção burguesa, que constitui o valor. O sr. Proudhon, fazendo abstração deste movimento real, "agita-se" para inventar novos processos, para regular o mundo segundo uma fórmula pretensamente nova, que não é senão a expressão teórica do movimento real existente e tão bem exposto por Ricardo. Ricardo escolhe seu ponto de partida na sociedade atual, para nos demonstrar como ela constitui o valor: o sr. Proudhon escolhe como ponto de partida o valor constituído, para constituir um novo mundo social por meio deste valor. Para ele, o sr. Proudhon, o valor constituído deve dar uma volta e tornar constituinte para um mundo já todo constituído segundo este modo de apreciação. A determinação do valor pelo tempo de trabalho é, para Ricardo, a lei do valor permutável; para o sr. Proudhon, ela é a síntese do valor útil e do valor permutável. A teoria dos valores de Ricardo é a interpretação científica da vida econômica atual: a teoria dos valores do sr. Proudhon é a interpretação utópica da teoria de Ricardo. Ricardo verifica a verdade de sua fórmula fazendo-a derivar de todas as relações econômicas, e explicando por este meio todos os fenômenos, mesmo aqueles que, à primeira vista, parecem contradizê-la, como a renda, a acumulação dos capitais e a relação entre os salários e os lucros; é isso, precisamente, o que faz de sua doutrina um sistema científico: o sr. Proudhon, que reencontrou esta fórmula de Ricardo por meio de hipóteses inteiramente arbitrárias, é forçado em seguida a procurar fatos econômicos isolados que ele desnatura e falsifica, a fim de fazê-los passar como exemplos, como aplicações já existentes, como começo de realização de sua ideia regeneradora (Ver o parágr. 3: Aplicação do valor constituído).

Passemos agora às conclusões que o sr. Proudhon tira do valor constituído (pelo tempo do trabalho).

— Uma certa quantidade de trabalho equivale ao produto criado por esta mesma quantidade de trabalho.

— Todo dia de trabalho vale outro dia de trabalho; isso quer dizer que, em quantidade igual, o trabalho de um vale o trabalho de outro: não há diferença qualificativa. Havendo quantidade igual de trabalho, o produto de um se dá em troca do produto de outro. Todos os homens são trabalhadores assalariados, e assalariados igualmente pagos por um tempo igual de trabalho. A igualdade perfeita preside às trocas.

Estas conclusões são as consequências naturais, rigorosas do valor "constituído" ou determinado pelo tempo de trabalho.

Se o valor relativo de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho requerida para produzi-la, segue-se naturalmente que o valor relativo do trabalho, ou o salário, é igualmente determinado pela quantidade de trabalho que é preciso para produzir o salário. O salário, ou seja o valor relativo ou o preço do trabalho, é pois determinado pelo tempo do trabalho que é preciso para produzir tudo aquilo que é necessário para o sustento do operário.

"Diminuí as despesas de fabricação dos chapéus e seu preço acabará por descer para seu novo preço natural, embora a procura possa duplicar, triplicar ou quadruplicar. Diminuí as despesas da manutenção dos homens, diminuindo o preço natural das roupas e dos alimentos que sustentam a vida, e vereis os salários acabarem baixando, embora a procura de braços tenha podido crescer consideravelmente." (Ricardo, tomo II, pág. 253).

Certamente, a linguagem de Ricardo não podia ser mais cínica. Colocar no mesmo plano as despesas de fabricação dos chapéus e as despesas da manutenção do homem é transformar o homem em chapéu. O cinismo está nas cousas e não nas palavras que exprimem as cousas. Escritores franceses, tais como os srs. Droz, Blanqui, Rossi e outros, proporcionam-se a inocente satisfação de provar a sua superioridade sobre os economistas ingleses, procurando observar a etiqueta de uma linguagem "humanitária"; se reprovam a Ricardo e à sua escola sua linguagem cínica, é que se sentem vexados de verem as relações econômicas expostas em toda a sua crueza, de verem traídos os mistérios da burguesia.

Resumamos: o trabalho, sendo ele próprio mercadoria, é medido como tal pelo tempo do trabalho que é preciso para produzir o trabalho-mercadoria. E o que é preciso para produzir o trabalho-mercadoria? Justamente aquilo que é preciso de tempo de trabalho para produzir os objetos indispensáveis à manutenção incessante do trabalho, ou seja, para fazer viver o trabalhador e pô-lo em condições de propagar a sua raça. O preço natural do trabalho não é outra cousa senão o mínimo de salário. Se o preço corrente do salário se eleva acima do preço natural, é precisamente porque a lei do valor, apresentada como princípio pelo sr. Proudhon, se acha contrabalançada pelas consequências das variações da relação entre a oferta e a procura. Mas o mínimo de salário não deixa de ser o centro para o qual gravitam os preços correntes do salário.

Assim o valor relativo, medido pelo tempo de trabalho, é fatalmente a fórmula da escravidão moderna do operário, em vez de ser, como o sr. Proudhon o quer, a "teoria revolucionária" da emancipação do proletariado.

Vejamos agora em quantos casos a aplicação do tempo de trabalho como medida do valor é incompatível com o antagonismo existente das classes e a retribuição desigual do produto entre o trabalhador imediato e o possuidor do trabalho acumulado.

Suponhamos um produto qualquer, por exemplo, o tecido de linho. Este produto, como tal, encerra uma quantidade de trabalho determinada. Esta quantidade de trabalho será sempre a mesma, seja qual for a situação recíproca daqueles que concorreram para criar esse produto.

Tomemos outro exemplo: um pano de lã, que teria exigido a mesma quantidade de trabalho que o tecido de linho.

Se houver troca desses produtos, haverá troca de quantidades iguais de trabalho. Trocando-se estas quantidades iguais de trabalho, não se modifica a situação recíproca dos produtores, do mesmo modo como não se modifica a situação dos operários e dos fabricantes entre eles. Dizer que esta troca de produtos medidos pelo tempo tem por consequência a retribuição igualitária de todos os produtores é supor que a igualdade de participação do produto subsistiu anteriormente à troca. Desde que a troca do pano de lã pelo tecido de linho seja efetuada, os produtores do pano de lã participarão do tecido de linho numa proporção igual àquela na qual eles tinham participado antes do pano de lã.

A ilusão do sr. Proudhon provém do fato de tomar como consequência aquilo que só poderia ser, quanto muito, uma suposição gratuita.

Vamos mais longe.

O tempo de trabalho, como medida de valor, supõe pelo menos que os dias sejam equivalentes, e que o dia de um operário valha o dia de outro? Não.

Admitamos por um momento que o dia de um joalheiro equivale a três dias de um tecelão; verifica-se sempre que qualquer mudança do valor das joias relativamente ao dos tecidos, a não ser que seja o resultado passageiro das oscilações da procura e da oferta, deve ter como causa uma diminuição ou um aumento do tempo de trabalho empregado de um lado ou de outro na produção. Se três dias de trabalho de diferentes trabalhadores estiverem entre eles como 1, 2, 3, toda mudança no valor relativo de seus produtos será uma mudança nesta proporção de 1, 2, 3. Assim, pode-se medir os valores pelo tempo de trabalho, apesar da desigualdade do valor dos diferentes dias de trabalho; mas, para aplicar semelhante medida, é preciso que façamos uso de uma escala comparativa dos diferentes dias de trabalho: é a concorrência que estabelece esta escala.

Vossa hora de trabalho valerá a minha? É uma questão que se resolve pela concorrência.

A concorrência, segundo um economista americano, determina quantos dias de trabalho simples contém um dia de trabalho complexo. Esta redução de dias de trabalho complexo a dias de trabalho simples não pressupõe que o próprio trabalho simples seja tomado como medida de valor? A quantidade de trabalho servindo somente ela de medida ao valor sem se considerar a qualidade supõe por sua vez que o trabalho simples se tornou o "pivot" da indústria. Ela supõe que os trabalhos se igualam pela subordinação do homem à máquina ou pela divisão extrema do trabalho; que os homens se curvam diante do trabalho; que o pêndulo do relógio se torna a medida exata da atividade relativa de dois operários, como o é da velocidade de duas locomotivas. Assim, não se deve dizer que uma hora de um homem vale uma hora de outro homem, mas antes que um homem de uma hora vale outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é quando muito a carcaça do tempo. Não se trata mais de qualidade. A quantidade decide tudo sozinha: hora por hora, dia por dia. Mas esta igualação do trabalho não é obra da justiça eterna do sr. Proudhon; é simplesmente a consequência da indústria moderna.

Na oficina automática, o trabalho de um operário quase que não se distingue mais do trabalho de outro operário: os operários não podem mais se distinguir entre eles senão pela quantidade de tempo que empregam no trabalho. Entretanto, esta diferença quantitativa torna-se, de um certo ponto de vista, qualitativa, na medida em que o tempo a ser empregado no trabalho depende, em parte, de causas puramente materiais, tais como a constituição física, a idade, o sexo; em parte, de causas morais, puramente negativas, tais como a paciência, a impassibilidade, a assiduidade. Enfim, se há uma diferença de qualidade no trabalho dos operários, é quando muito uma qualidade da última qualidade, que está longe de ser uma especialidade distintiva. Eis qual é, em última análise, o estado de cousas na indústria moderna. É desta igualdade já realizada do trabalho automático que o sr. Proudhon tira a sua plaina de "igualamento", que ele se propõe realizar universalmente nos "tempos vindouros".

Todas as consequências "igualitárias" que o sr. Proudhon tira da doutrina de Ricardo repousam sobre um erro fundamental. É que ele confunde o valor das mercadorias medido pela quantidade de trabalho nelas fixado com o valor das mercadorias medido pelo "valor do trabalho". Se estas duas maneiras de medir o valor das mercadorias se confundissem numa só, poder-se-ia dizer indiferentemente: o valor relativo de uma mercadoria qualquer é medido pela quantidade de trabalho nela fixado. Ou então: é medido pela quantidade de trabalho que esteja em condições de comprar. Ou ainda: é medido pela quantidade de trabalho que esteja em estado de adquiri-lo. Mas as cousas não se passam assim. O valor do trabalho, do mesmo modo que o valor de qualquer outra mercadoria, não poderia servir de medida do valor. Alguns exemplos bastarão para explicar ainda melhor aquilo que acabamos de dizer.

Se o moio de trigo custasse dois dias de trabalho em vez de um só, ele teria o dobro de seu valor primitivo: mas não poria em movimento o dobro da quantidade de trabalho, pois não conteria mais matéria nutritiva que antes. Assim, o valor do trigo medido pela quantidade de trabalho empregado em sua produção teria dobrado; mas medido, seja pela quantidade de trabalho que pode comprar, seja pela quantidade de trabalho pela qual pode ser comprado, ele estaria longe de haver dobrado. De outro lado, se o mesmo trabalho produzisse o dobro de roupas que antes, o valor relativo baixaria de metade; entretanto, esta dupla quantidade de roupas não seria por isso levada a exigir senão a metade da quantidade de trabalho, ou o mesmo trabalho não poderia exigir a quantidade dupla de roupas; pois a metade das roupas continuaria a prestar ao operário o mesmo serviço que antes.

Assim, determinar o valor relativo das mercadorias pelo valor do trabalho está contra os fatos econômicos. E ficar num círculo vicioso, é determinar o valor relativo por um valor relativo que, por sua vez, tem necessidade de ser determinado.

Está fora de dúvida que o sr. Proudhon confunde as duas medidas, a medida pelo tempo do trabalho necessário para a produção de uma mercadoria e a medida pelo valor do trabalho.

"O trabalho de qualquer homem, diz ele, pode comprar o valor que encerra."

Assim, segundo o sr. Proudhon, uma certa quantidade de trabalho fixado num produto equivale à retribuição do trabalhador, ou seja, do valor do trabalho. É ainda a mesma razão que o leva a confundir as despesas de produção com os salários.

"Que é o salário? É o preço de custo do trigo, etc., é o preço integrante de todas as cousas." Vamos mais longe ainda: "O salário é a proporcionalidade dos elementos que compõem a riqueza."

Que é o salário? É o valor do trabalho.

Adam Smith toma por medida de valor ora o tempo do trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, ora o valor do trabalho. Ricardo mostrou este erro fazendo ver claramente a disparidade destas maneiras de medir. O sr. Proudhon vai além do erro de Adam Smith identificando as duas cousas, com as quais este não tinha feito senão uma justaposição.

É para encontrar a justa proporção na qual os operários devem participar dos produtos, ou, em outros termos, para determinar o valor relativo do trabalho, que o sr. Proudhon procura uma medida do valor relativo das mercadorias. Para determinar a medida do valor relativo das mercadorias, ele nada imagina de melhor que dar como equivalente de uma certa quantidade de trabalho a soma dos produtos que ela criou, o que leva a supor que toda a sociedade não consiste senão em trabalhadores imediatos, recebendo como salário o seu próprio produto. Em segundo lugar, ele estabelece de fato a equivalência dos dias dos diversos trabalhadores. Em resumo, o sr Proudhon procura a medida do valor relativo das mercadorias, para encontrar a retribuição igual dos trabalhadores, e toma a igualdade dos salários como um dado que já encontrasse pronto, para pôr-se à procura do valor relativo das mercadorias. Que admirável dialética!

"Say e os economistas que o seguiram observaram que o trabalho estando ele próprio sujeito à avaliação, sendo uma mercadoria como qualquer outra, ficar-se-ia num círculo vicioso se se a considerasse como princípio e causa eficiente do valor. Estes economistas, que se me permita dizê-lo, deram prova nisto de uma prodigiosa falta de atenção. Do trabalho se diz que vale não como mercadoria propriamente, mas tendo-se em vista os valores que se supõem encerrados potencialmente nele. O valor do trabalho é uma expressão figurada, uma antecipação da causa sobre o efeito. É uma ficção do mesmo modo como a produtividade do capital. O trabalho produz, o capital vale... Por uma espécie de elipse diz-se valor do trabalho... O trabalho como a liberdade... é cousa vaga e indeterminada por sua natureza, mas que se define qualitativamente pelo seu objeto, o que equivale a dizer que se torna uma realidade pelo produto. Mas será necessário insistir? Desde o momento em que o economista (lêde: o sr. Proudhon) muda o nome das cousas, vera rerum vocabula, ele confessa implicitamente a sua impotência e se põe fora de causa." (Proudhon, I, 188).

Vimos que o sr. Proudhon faz do valor do trabalho "a causa eficiente" do valor dos produtos, de maneira que para ele o salário, nome oficial do "valor do trabalho", forma o preço integrante de todas as cousas. Eis porque a objeção de Say o perturba. No trabalho-mercadoria, que é uma realidade assustadora, ele não vê senão uma elipse gramatical. Assim, toda a sociedade atual, fundada sobre o trabalho-mercadoria, passa a fundar-se sobre uma licença poética, sobre uma expressão figurada. A sociedade quer "eliminar todos os inconvenientes" que a atormentam. Pois bem! Que elimine os termos malsonantes, que mude de linguagem, e para isso nada mais tem a fazer senão se dirigir à Academia para pedir-lhe uma nova edição de seu dicionário. Depois de tudo o que acabamos de ver, é-nos fácil compreender porque o sr. Proudhon, numa obra de economia política, teve de entrar em longas dissertações sobre a etimologia e outras partes da gramática. Assim, vemo-lo ainda a discutir sapientemente a derivação sediça de servus a servare. Estas dissertações filológicas têm um sentido profundo, um sentido esotérico; elas constituem uma parte essencial da argumentação do sr. Proudhon.

O trabalho, a força de trabalho, enquanto é vendida e comprada, é uma mercadoria como qualquer outra mercadoria, e tem, por conseguinte, um valor de troca. Mas o valor do trabalho, ou o trabalho, enquanto mercadoria, produz tão pouco quanto o valor do trigo ou o trigo, considerado como mercadoria, serve de alimento.

O trabalho "vale" mais ou menos, na medida em que os gêneros alimentícios estejam mais caros ou menos caros, na medida em que a oferta e a procura de braços se apresentem neste ou naquele grau, etc. etc.

O trabalho não é uma "cousa vaga"; é sempre um trabalho determinado, não é jamais o trabalho em geral que se vende ou se compra. Não é somente o trabalho que se define qualitativamente pelo objeto, mas é também o objeto que é determinado pela qualidade específica do trabalho.

O trabalho, enquanto é vendido e comprado, é ele próprio mercadoria. Porque é ele comprado? "Em vista dos valores que se supõem existir potencialmente encerrados nele." Mas se se diz que tal cousa é uma mercadoria, não se trata mais do fim para o qual é comprado, ou seja a utilidade que dela se queira tirar, a aplicação que dela se queira fazer. Ele é mercadoria como objeto de tráfico. Todos os raciocínios do sr. Proudhon se limitam a isto: o trabalho não é comprado como objeto imediato de consumo. Não, ele é comprado como instrumento de produção, do mesmo modo como se compra uma máquina. Considerado como mercadoria, o trabalho vale e não produz. O sr. Proudhon também poderia ter dito que não existe mercadoria, pois que todas as mercadorias não são adquiridas senão com um fim de utilidade qualquer e jamais como mercadoria em si mesma.

Ao medir o valor das mercadorias pelo trabalho, o sr. Proudhon entrevê vagamente a impossibilidade de subtrair a esta mesma medida o trabalho que apresenta um valor, o trabalho- mercadoria. Ele pressente que isso é fazer do mínimo do salário o preço natural e normal do trabalho imediato, que é aceitar o estado atual da sociedade. Outrossim, para fugir a esta consequência fatal, ele muda de opinião e pretende que o trabalho não é uma mercadoria, que não poderia ter um valor. Esquece-se de que ele mesmo havia tomado como medida o valor do trabalho, esquece-se de que todo o seu sistema repousa sobre o trabalho-mercadoria, sobre o trabalho que se troca, se vende e se compra, se troca com os produtos, etc.; sobre o trabalho enfim, que é uma fonte imediata de renda para o trabalhador. Ele se esquece de tudo.

Para salvar o seu sistema, ele consente em sacrificar a sua base.

Et propter vitam vivendi perdere causas!

Chegamos agora a uma nova determinação do "valor constituído".

"O valor é a relação da proporcionalidade dos produtos que formam a riqueza".

Notemos primeiramente que as simples palavras "valor relativo ou permutável" implicam a ideia de uma relação qualquer, na qual os produtos se trocam reciprocamente. Pode-se dar a esta relação o nome de "relação de proporcionalidade", mas em nada ficará alterado o valor relativo, a não ser a expressão. Nem a depreciação, nem a alta do valor de um produto destroem a qualidade que ele tem de estar numa "relação de proporcionalidade" qualquer com os outros produtos que formam a riqueza.

Por que, então, este novo termo, que não traz uma nova ideia?

A "relação de proporcionalidade" faz pensar em muitas outras relações econômicas, tais como a proporcionalidade da produção, a justa proporção entre a oferta e a procura, etc.; e o sr. Proudhon pensou em tudo isso ao formular esta paráfrase didática do valor venal.

Em primeiro lugar, sendo o valor relativo dos produtos determinado pela quantidade comparativa do trabalho empregado na produção de cada um deles, a relação da proporcionalidade, aplicada neste caso especial, significa a quantidaderespectiva dos produtos que podem ser fabricados num tempo dado e que, em consequência, são dados em troca.

Vejamos que partido tira o sr. Proudhon desta relação de proporcionalidade.

Toda gente sabe que, quando a oferta e a procura se equilibram, o valor relativo de um produto qualquer é exatamente determinado pela quantidade de trabalho que nele foi fixada, o que equivale a dizer que este valor relativo exprime a relação da proporcionalidade precisamente no sentido que lhe acabamos de dar. O sr. Proudhon transtornou a ordem das coisas. Começai, diz ele, por medir o valor relativo de um produto pela quantidade de trabalho que nele está fixada, e a oferta e a procura ficarão infalivelmente equilibradas. A produção corresponderá ao consumo, o produto será sempre permutável. Seu preço corrente exprimirá exatamente seu justo valor. Em vez de dizer como todo mundo: quando o tempo é bom vê-se muita gente passeando, o sr. Proudhon faz sua gente passear para poder assegurar-lhe um bom tempo.

Aquilo que o sr. Proudhon apresenta como consequência do valor venal determinado a priori pelo tempo de trabalho não se poderia justificar senão por uma lei, redigida mais ou menos nestes termos:

Os produtos serão daqui em diante trocados na razão exata do tempo de trabalho que custaram. Seja qual for a proporção entre a oferta e a procura, a troca das mercadorias far-se-á sempre como se elas tivessem sido produzidas proporcionalmente à procura. Que o sr. Proudhon se resolva a formular e fazer semelhante lei, e nós o auxiliaremos. Se, ao contrário, ele fizer questão de justificar a sua teoria, não como legislador, mas como economista, terá de provar que o tempo que é preciso para criar uma mercadoria indica exatamente o seu grau de utilidade e assinala sua relação de proporcionalidade com a procura, e, em consequência, com o conjunto das riquezas. Neste caso, se um produto é vendido por um preço igual ao seu custo de produção, a oferta e a procura sempre se equilibrarão; pois o custo de produção é considerado como capaz de exprimir a verdadeira relação entre a oferta e a procura.

O sr. Proudhon esforça-se, efetivamente, em provar que o tempo do trabalho que é preciso para criar um produto assinala sua justa proporção relativamente às necessidades, de tal modo que as coisas cuja produção custa menos tempo são as mais imediatamente úteis, e assim a seguir, gradualmente. Basta a produção de um objeto de luxo para provar, segundo esta doutrina, que a sociedade dispõe de tempo de sobra que lhe permite satisfazer uma necessidade de luxo.

A própria prova de sua tese, o sr. Proudhon vai encontrá-la na observação de que as cousas mais úteis custam menos tempo de produção, que a sociedade começa sempre pelas indústrias mais fáceis, e que sucessivamente ela "se entrega à produção dos objetos que custam maior tempo de trabalho e que correspondem à necessidade de uma ordem mais elevada".

O sr. Proudhon toma de empréstimo ao sr. Dunoyer o exemplo da indústria extrativa, — colheita, forragens, caça, pesca, etc. — que é a indústria mais simples, a menos custosa e pela qual o homem começou "o primeiro dia de sua segunda criação". O primeiro dia de sua primeira criação está consignado no Gênese, que nos faz ver em Deus o primeiro industrial do mundo.

As coisas se passam de modo muito diferente do que pensa o sr. Proudhon. No próprio momento em que a civilização começa, a produção começa a se fundar sobre o antagonismo das ordens, dos estados, das classes, enfim sobre o antagonismo do trabalho acumulado e do trabalho imediato. Sem antagonismo, não há progresso. Essa a lei que a civilização seguiu até nossos dias. Até o presente as forças produtivas se desenvolveram graças a este regime de antagonismo das classes. Dizer agora que, estando satisfeitas todas as necessidades de todos os trabalhadores, os homens podiam se entregar à criação de produtos de uma ordem superior, as indústrias mais complicadas, seria fazer abstração do antagonismo das classes e submeter todo o desenvolvimento histórico. É como se se quisesse dizer que, como se alimentavam moreias em piscinas artificiais, no tempo dos imperadores romanos, havia com que alimentar abundantemente toda a população de Roma; a verdade é que, pelo contrário, ao povo romano faltava o necessário para comprar pão, enquanto que aos aristocratas romanos não faltavam escravos para serem dados como alimento às moreias.

O preço dos víveres tem subido quase continuamente, enquanto que o preço dos objetos manufaturados e de luxo tem quase continuamente baixado. Considerai a própria indústria agrícola: os produtos mais indispensáveis, tais como o trigo, a carne, etc., sobem de preço, enquanto que o algodão, o açúcar, o café, etc., baixam continuamente numa proporção surpreendente. E o mesmo se passa entre os comestíveis propriamente ditos, os produtos de luxo, tais como as alcachofras, os espargos, etc., e estão hoje relativamente por preços menores do que os gêneros de primeira necessidade. Em nossa época, o supérfluo é mais fácil de produzir do que o necessário. Afinal, em diversas épocas históricas, as relações recíprocas dos preços são não somente diferentes, mas opostas. Em toda a Idade Média, os produtos agrícolas eram relativamente mais baratos do que os produtos manufaturados; nos tempos modernos eles estão em razão inversa. A utilidade dos produtos agrícolas terá por isso diminuído depois da Idade Média?

O uso dos produtos é determinado pelas condições sociais nas quais se encontram colocados os consumidores, e estas condições repousam elas próprias sobre os antagonismos das classes.

O algodão, as batatas e a aguardente são produtos de uso dos mais comuns. As batatas engendraram as escrófulas; o algodão expulsou em grande parte o linho e a lã, ainda que a lã e o linho sejam, em muitos casos, de maior utilidade, não fosse do ponto de vista da higiene; a aguardente, enfim, acabou levando vantagem sobre a cerveja e o vinho, ainda que a aguardente empregada como substância alimentar seja geralmente tida como um veneno. Durante um século inteiro os governos lutaram em vão contra o ópio europeu; a economia prevaleceu, e ditou suas ordens ao consumo.

Por que, pois, o algodão, a batata e a aguardente constituem os "pivots" da sociedade burguesa? Porque é preciso, para produzi-los, menos trabalho, e estão em consequência, aos preços mais baixos. Por que o mínimo do preço decide do máximo do consumo? Seria por acaso devido à utilidade absoluta destes artigos, à sua utilidade intrínseca, à sua utilidade na, medida em que correspondem da maneira mais eficiente às necessidades do operário como homem, e não do homem como operário? Não; é porque, numa sociedade fundada sobre a miséria, os produtos mais miseráveis têm a prerrogativa fatal de servir para o uso do maior número.

Dizer agora que as coisas menos custosas, sendo de um uso maior, devem ser de maior utilidade, é dizer que o uso tão generalizado da aguardente, por motivo do pequeno custo de sua produção, é a prova concludente de sua utilidade; é dizer ao proletário que a batata lhe é mais salutar do que a carne; é aceitar o estado de coisas existentes; é fazer, enfim, com o sr. Proudhon, a apologia de uma sociedade sem a compreender.

Numa sociedade futura, na qual tivesse cessado o antagonismo das classes, na qual não houvesse mais classes, o uso não seria mais determinado pelo mínimo do tempo de produção, mas o tempo de produção social que se consagraria aos diferentes objetos seria determinado pelo seu grau de utilidade social.

Para voltar à tese do sr. Proudhon: desde que o tempo do trabalho necessário à produção de um objeto não é a expressão de seu grau de utilidade, o valor de troca deste mesmo objeto, determinado com antecedência pelo tempo de trabalho nele fixado, não poderia jamais regular a relação justa entre a oferta e a procura, isto é, a relação de proporcionalidade no sentido que o sr. Proudhon no momento lhe atribui.

Não é a venda de um produto qualquer pelo preço de seu custo de produção que constitui "a relação de proporcionalidade" entre a oferta e a procura, ou a quantidadeproporcional deste produto relativamente ao conjunto da produção; são as variações da procura e da oferta que indicam ao produtor a quantidade na qual é preciso produzir uma dada mercadoria, para receber em troca pelo menos as despesas de produção. E como estas variações são contínuas, há também um movimento contínuo de retração e de aplicação dos capitais, quanto aos diferentes ramos da indústria.

"Não é senão por motivo de semelhantes variações que os capitais são aplicados precisamente na proporção requerida, e não além, na produção das diferentes mercadorias para as quais existe procura. Pela alta ou pela baixa dos preços, os lucros se elevam acima ou caem abaixo de seu nível geral, e desse modo os capitais são atraídos ou desviados do modo de emprego particular que acabe de passar por uma ou outra dessas variações." "Se observarmos os mercados das grandes cidades, veremos com que regularidade são eles abastecidos de todas as espécies de artigos, nacionais e estrangeiros, na quantidade requerida, sejam quais forem as diferenças da procura por efeito do capricho, do gosto ou devido às variações na população, e sem que haja engorgitamentos frequentes em consequência de fornecimentos superabundantes, nem encarecimento excessivo devido à fraqueza do abastecimento em relação à procura: deve-se admitir que o princípio que distribui o capital em cada ramo de indústria, nas proporções exatamente convenientes, é mais poderoso do que, em geral, se supõe" (Ricardo, t.I, págs. 105 e 108).

Se o sr. Proudhon aceita o valor dos produtos como determinado pelo tempo de trabalho, ele deve aceitar igualmente o movimento oscilatório, que, só ele, faz do trabalho a medida do valor. Não existe "relação de proporcionalidade" já constituída, o que existe é um movimento constituinte.

Acabamos de ver em que sentido é acertado falar da "proporcionalidade", como de uma consequência do valor determinado pelo tempo do trabalho. Vamos ver agora como esta medida pelo tempo, chamada pelo sr. Proudhon de "lei de proporcionalidade", se transforma em lei de desproporcionalidade.

Todas as invenções novas que permitem produzir numa hora aquilo que até então era produzido em duas horas depreciam todos os produtos homogêneos que se encontram no mercado. A concorrência força o produtor a vender o produto de duas horas pelos mesmos preços baratos do produto de uma hora. A concorrência realiza a lei segundo a qual o valor relativo de um produto é determinado pelo tempo do trabalho necessário para produzi-lo. O tempo do trabalho servindo de medida ao valor venal torna-se assim a lei de uma depreciação contínua do trabalho. Diremos mais. Haverá depreciação não somente para as mercadorias: levadas ao mercado, mas também para os instrumentos de produção, e para toda uma oficina. Este fato já foi assinalado por Ricardo ao escrever:

"Aumentando constantemente a facilidade de produção, diminuímos constantemente o valor de algumas das coisas produzidas anteriormente" (Tomo II, pág. 58).

Sismondi vai mais longe. Ele vê, neste "valor constituído" pelo tempo de trabalho, a fonte de todas as contradições da indústria e do comércio modernos.

"O valor mercantil, diz ele, está sempre fixado, em última análise, na quantidade de trabalho necessária para se obter a coisa avaliada: não é aquela que custou atualmente, mas a que custaria daqui por diante com meios de produção talvez aperfeiçoados; e esta quantidade, embora seja difícil de ser apreciada, é sempre estabelecida com fidelidade pela concorrência... É sobre esta base que se calcula tanto a procura do vendedor quanto a oferta do comprador. O primeiro afirmará talvez que a coisa lhe custou dez dias de trabalho; mas se o segundo reconhece que ela pode dali por diante ser feita com oito dias de trabalho, se a concorrência demonstrar tal coisa aos dois contratantes, será a oito dias somente que se reduzirá o valor, estabelecendo-se nessa mesma base o preço do mercado. Um e outro contratantes têm, é verdade, a noção de que a coisa é útil, de que ela é desejada, de que sem desejo não haveria venda; mas a fixação do preço não conserva nenhuma relação com a utilidade" (Etudes, etc., t.II, pág. 267, ed. de Bruxelas).

É importante insistir sobre este ponto: aquilo que determina o valor não é o tempo no qual a coisa tenha sido produzida, mas o mínimo de tempo no qual ela é suscetível de ser produzida, e este mínimo é verificado pela concorrência. Suponhamos por um momento que não haja mais concorrência e, como consequência, que não haja mais meios de precisar o mínimo de trabalho necessário para a produção de um artigo. O que acontecerá? Bastará empregar na produção de um objeto seis horas de trabalho, para se ter o direito, segundo o sr. Proudhon, de exigir em troca seis vezes mais do que aquele que não tenha empregado senão uma hora na produção do mesmo objeto.

No lugar de uma "relação de proporcionalidade" temos uma relação de desproporcionalidade, se é que ainda temos de ficar nas relações, boas ou más.

A depreciação contínua do trabalho não é senão um dos lados, uma das consequências da avaliação dos artigos pelo tempo de trabalho. A elevação dos preços, a superprodução, e muitos outros fenômenos de anarquia industrial têm a sua interpretação neste modo de avaliação.

Mas o tempo do trabalho, servindo de medida ao valor, fará pelo menos nascer a variedade proporcional nos produtos que tanto encanta o sr. Proudhon.

Muito ao contrário, o monopólio, com toda a sua monotonia, segue-se a ele, para invadir o mundo dos produtos, do mesmo modo como, aos olhos de toda gente, o monopólio invadiu o mundo dos instrumentos de produção. Apenas alguns ramos da produção industrial, como a indústria do algodão, podem fazer progressos muito rápidos. A consequência natural destes progressos é que os produtos da manufatura algodoeira, por exemplo, baixam rapidamente de preço; mas à medida que o preço do algodão baixa, o preço do linho deve comparativamente subir. Que resultará disso? O linho será substituído pelo algodão. É desta maneira que o linho foi expelido de quase toda a América do Norte. E obtivemos, no lugar da variedade proporcional dos produtos, o reino do algodão.

Que resta desta "relação de proporcionalidade"? Nada mais senão o voto de um homem honesto, que queria que as mercadorias se produzissem em proporções tais que pudessem ser vendidas por um preço honesto. Os bons burgueses e os economistas filantropos sempre gostaram de formular este voto inocente.

Passemos a palavra ao velho Bois-Guillebert:

"O preço dos artigos, diz ele, deve sempre ser proporcionado, não devendo haver nisso senão o entendimento que possa fazê-los viver juntos, para se oferecerem a qualquer momento (eis a permutabilidade contínua do sr. Proudhon), e receberem reciprocamente o nascimento uns dos outros... Como a riqueza não é, assim, senão esta mistura contínua de homem com homem, de profissão com profissão, etc., é uma cegueira espantosa ir procurar a causa da miséria em outro lugar que não a cessação de tal comércio, ocasionada pela desordem das proporções nos preços". (Dissertation sur la nature des richesses, edição Daire).

Ouçamos também um economista moderno:

"Uma grande lei que se deve aplicar à produção é a lei da proporcionalidade (the law of proportion), que é a única que pode preservar a continuidade do valor... O equivalente deve ser garantido... Todas as nações tentaram em diversas épocas, por meio de numerosos regulamentos e restrições comerciais, realizar até um certo ponto esta lei de proporcionalidade; mas o egoísmo, inerente à natureza do homem, levou-o a subverter todo este regime regulamentar. Uma produção proporcionada (proportvonate production) é a realização de toda a verdade da ciência da economia social". (W. Atkinson, Principies of Political Economy, London, 1840, págs. 170-195).

Fuit Troja! Esta justa proporção entre a oferta e a procura, que começa a ser de novo o objeto de tantos votos, há muito tempo que cessou de existir. Ela passou à condição de velharia. Ela não foi possível senão nas épocas em que os meios de produção eram limitados, em que a troca se verificava em limites extremamente restritos. Com o nascimento da grande indústria, esta justa proporção teve de cessar, e a produção é fatalmente constrangida a passar, numa sucessão perpétua, pelas vicissitudes de prosperidade e de depressão, de crise e de estagnação, de nova prosperidade, e assim por diante.

Aqueles que, como Sismondi, querem voltar à justa proporcionalidade da produção, conservando ao mesmo tempo as bases atuais da sociedade, são reacionários, pois que, para serem consequentes, eles deviam também querer restabelecer todas as outras condições da indústria dos tempos passados.

Que é que mantinha a produção em proporções justas ou quase justas? Era a procura que determinava a oferta, que a precedia. A produção seguia passo a passo o consumo. A grande indústria, forçada pelos próprios instrumentos de que dispõe para produzir numa escala cada vez maior, não pode mais esperar a procura. A produção precede o consumo, a oferta força a procura.

Na sociedade atual, na indústria baseada nas trocas individuais, a anarquia da produção, que é a fonte de tanta miséria, é ao mesmo tempo a fonte de todo progresso.

Assim, das duas coisas, uma:

Ou quereis as proporções justas dos séculos passados com os meios de produção de nossa época, e então sereis ao mesmo tempo reacionários e utopistas.

Ou quereis o progresso sem a anarquia: então, para conservar as forças produtivas, tereis de abandonar as trocas individuais.

As trocas individuais não se conciliam senão com a pequena indústria dos séculos passados, com o corolário da "justa proporção", ou então com a grande indústria, mas com todo o seu cortejo de miséria e anarquia.

Afinal, a determinação do valor pelo tempo do trabalho, ou seja a fórmula que o sr. Proudhon nos apresenta como a fórmula regeneradora do futuro, não é pois senão a expressão científica das relações econômicas da sociedade atual, da maneira como Ricardo clara e nitidamente demonstrou muito antes do sr. Proudhon.

Mas nem mesmo a aplicação "igualitária" desta fórmula pertenceria ao sr. Proudhon? Não terá sido ele o primeiro a imaginar a reforma da sociedade com a transformação de todos os homens em trabalhadores imediatos, trocando quantidades de trabalho iguais? E caberá a ele censurar os comunistas — gente desprovida de qualquer conhecimento de economia política, "homens obstinadamente estúpidos", "estes sonhadores paradisíacos" — por não terem encontrado, antes dele, esta "solução do problema do proletariado"?

Qualquer pessoa, por menos familiarizada que esteja com o movimento da economia política na Inglaterra, sabe que quase todos os socialistas desse país têm, em diferentes épocas, proposto a aplicação igualitária da teoria ricardiana. Poderíamos citar ao sr. Proudhon: Hopkins, Économie Politique, 1822; William Thompson, An Inquiry into the Principies of the Distribution of Wealth most conducive to Human Happiness, 1827; T. R. Edmonds, Pratical, moral and political Economy, 1828, etc., etc., e quatro páginas de etc. Contentar-nos-emos em dar a palavra a um comunista inglês, o sr. Bray. Reproduziremos as passagens decisivas de sua obra notável — Labour’s wrongs and Labour’s remedy, Leeds, 1839 — e nisso nos demoraremos bastante, primeiramente porque Bray é pouco conhecido na França, e em segundo lugar porque acreditamos ter aí encontrado a chave das obras passadas, presentes e futuras do sr. Proudhon.

"O único meio de chegar à verdade é abordar de frente os primeiros princípios. Remontemos diretamente à fonte de onde se originam os próprios governos. Indo assim à origem da coisa, veremos que toda força de governo, que todas as injustiças sociais e governamentais provêm do sistema social atualmente em vigor — da instituição da propriedade tal como existe presentemente (the institution of property as it at present exists), e que assim, para pôr fim, para sempre, às injustiças e às misérias dos nossos dias, é preciso derribar de alto a baixo o estado atual da sociedade... Atacando os economistas no seu próprio terreno e com suas próprias armas, evitaremos a absurda tagarelice sobre os visionários e teóricos à qual eles estão sempre prontos a se entregar. A não ser que neguem ou desaprovem as verdades e os princípios já aceitos, sobre os quais fundam os seus próprios argumentos, os economistas não poderão repelir as conclusões às quais chegamos por este método (Bray, págs. 17 e 41). É somente o trabalho que dá valor (It is labour alone which bestows value)... Cada homem tem um direito indubitável a tudo aquilo que seu trabalho honesto pode lhe proporcionar. Apropriando-se assim dos frutos de seu trabalho, ele não comete nenhuma injustiça em relação aos outros homens; pois não prejudica o direito que qualquer outra pessoa tem de agir do mesmo modo... Todas as ideias de superioridade e de inferioridade, de patrão e assalariado, nascem porque se esqueceram os primeiros princípios, e, como consequência, a desigualdade se introduziu na posse (and to the consequent rise of inequalilgr of possessions). Enquanto for mantida esta desigualdade, será impossível desarraigar tais ideias ou derribar as instituições que se baseiam sobre elas. Até o presente, tem-se tido sempre a vã esperança de remediar um estado de coisas que é contra a natureza, tal como nos rege no presente, destruindo a desigualdade existente e deixando subsistir a causa da desigualdade; mas demonstraremos logo que o governo não é uma causa, mas um efeito, que não cria, mas que é criado — que numa palavra, ele é o resultado da desigualdade na posse (the offspring of inequality of possessions) e que a desigualdade de posse está inseparavelmente ligada ao sistema social atual" (Bray, págs. 33, 36 e 37).

"O sistema de igualdade tem a seu favor não somente as maiores vantagens, mas também a estrita justiça... Cada homem é um elo, e um elo indispensável na cadeia dos efeitos, que tem o seu ponto de partida numa ideia, para chegar talvez à produção de uma peça de pano. Assim, do fato de não serem as mesmas as nossas inclinações para as diferentes profissões, não se deve concluir que o trabalho de uma pessoa deve ser melhor retribuído do que o trabalho de outra. O inventor receberá sempre, além de sua recompensa em dinheiro, o tributo de nossa admiração, que somente o gênio pode merecer de nós..."

"Pela própria natureza do trabalho e da troca, a estrita justiça requer que todos os que trocam tenham benefícios, não somente mútuos, mas iguais (ali exchangers should be not only mutually but they should likewise be equally benefitted). Não existem senão duas cousas que os homens possam trocar entre eles: o trabalho e o produto do trabalho. Se as trocas se verificassem segundo um sistema equitativo, o valor de todos os artigos seria determinado pelo seu custo de produção completo; e valores iguais seriam sempre trocados por valores iguais (If a just system of exchanges were acted upon, the value of ali articles would be determined by the entire cost of production, and equal values should always exchange for equal values). Se, por exemplo, um chapeleiro leva um dia de trabalho para fazer um chapéu, e o sapateiro o mesmo tempo para fazer um par de sapatos (supondo-se que a matéria-prima que empregam tem o mesmo valor) e se trocarem esses artigos entre eles, o lucro que terão é ao mesmo tempo mútuo e igual. A vantagem que decorre da troca para cada uma das partes não pode constituir uma desvantagem para o outro, pois que cada uma forneceu a mesma quantidade de trabalho e que os materiais de que elas haviam se servido eram de valor igual. Mas se o chapeleiro tivesse obtido dois pares de sapatos por um chapéu, sempre de acordo com a nossa primeira suposição, é evidente que a troca não seria justa. O chapeleiro privaria o sapateiro de um dia de trabalho; e se agisse assim em todas as suas trocas, ele receberia pelo trabalho de meio-ano o produto de um ano inteiro de outra pessoa. Até aqui, seguimos sempre este sistema de troca soberanamente injusto: os operários têm dado ao capitalista o trabalho de um ano inteiro em troca do valor de meio-ano (the workmen have given the capitalist the labour of a whole year, in exchange for the value of only half a year) — e é daí, e não de uma desigualdade suposta nas forças físicas e intelectuais dos indivíduos, que proveio a desigualdade da riqueza e do poder. A desigualdade das trocas, a diferença dos preços nas compras e nas vendas não podem existir senão com a condição de que para todo o sempre os capitalistas permaneçam capitalistas e os operários, operários — formando uns uma classe de tiranos, os outros uma classe de escravos... Esta transação prova, pois, claramente, que os capitalistas e os proprietários não fazem outra cousa senão dar ao operário, pelo seu trabalho de uma semana, uma parte da riqueza que obtiveram dele a semana precedente, o que quer dizer que, por algo, eles não lhe dão nada (nothing for something)... A transação entre o trabalhador e o capitalista é uma verdadeira comédia; com efeito, ela não é, em muitas circunstâncias, senão um roubo impudente embora legal" (The whole transaction between the producer and the capitalist is a mere farce: it is, in fact, in thousands of instances, no other than a barefaced though legal robbery.) (Bray, págs. 45, 48, 49 e 50).

O lucro do capitalista será sempre uma perda para o operário — até que as trocas entre as partes sejam iguais; e as trocas não podem ser iguais enquanto a sociedade estiver dividida entre capitalistas e produtores, e enquanto estes últimos viverem de seu trabalho e os primeiros se intumesçam com o produto desse trabalho..."

"É claro, continua Bray, que procurareis em vão estabelecer esta ou aquela forma de governo... que em vão pregareis em nome da moral e da fraternidade... a reciprocidade é incompatível com a desigualdade das trocas. A desigualdade das trocas pelo fato de ser a fonte da desigualdade das posses, é o inimigo secreto que nos devora" (No reciprocity can exist where there are unequal exchanges. Inequality of exchanges, as being the cause of inequality of possessions, is the secret enemy that devours us.) (Bray, págs. 51 e 52).

"A consideração do fim da sociedade autoriza-me a concluir que não somente todos os homens devem trabalhar e assim chegar a poder trocar, mas também que valores iguais devem ser trocados por valores iguais. Além disso, como o lucro de um não deve constituir uma perda para outro, o valor deve ser determinado pelo custo de produção. Entretanto, vimos que sob o regime atual, o lucro do capitalista e do homem rico representa sempre uma perda do operário — e este resultado deve inevitavelmente continuar, permanecendo o pobre inteiramente abandonado à vontade do rico, sob qualquer forma de governo, enquanto subsistir a desigualdade das trocas — e que a igualdade das trocas não pode ser assegurada senão por um regime social que reconheça a universalidade do trabalho... A igualdade das trocas faria a riqueza passar gradualmente das mãos dos capitalistas atuais para as das classes operárias " (Bray, págs. 54 e 55).

"Enquanto este sistema de desigualdade das trocas estiver em vigor, os produtores serão sempre tão pobres, tão ignorantes, tão sobrecarregados de trabalho, quanto o são atualmente, ainda mesmo se se abolissem todas as taxas, todos os impostos governamentais... Somente uma transformação total do sistema, com a introdução da igualdade do trabalho e das trocas, poderá melhorar este estado de cousas e assegurar aos homens a verdadeira igualdade de direitos... Os produtores não têm senão que fazer um esforço — e é por eles mesmos que todos os esforços para a sua própria salvação devem ser feitos — para que suas cadeias se rompam para sempre... Como objetivo, a igualdade política é um erro; ela é mesmo um erro como meio." (As an end, the political equality is there a faillure, as a means, also, it is there a failure.)

"Com a igualdade das trocas, o lucro de um não pode ser a perda de outro; pois toda troca não será mais do que uma simples transferência de trabalho e de riqueza, não exigindo nenhum sacrifício. Assim, num sistema social baseado na igualdade das trocas, o produtor poderá também chegar à riqueza por meio de suas economias; mas sua riqueza não será senão o produto acumulado de seu próprio trabalho. Ele poderá trocar sua riqueza ou dá-la a outrem; mas ser-lhe-á impossível permanecer rico por um período um tanto prolongado depois que tenha deixado de trabalhar. Com a igualdade das trocas, a riqueza perde o poder atual de se renovar e de se reproduzir por assim dizer por ela mesma: ela não poderá mais encher o vácuo que o consumo terá criado; pois, a não ser que seja reproduzida pelo trabalho, a riqueza, uma vez consumida, estará perdida para sempre. Aquilo que chamamos agora lucros e juros não poderá mais existir sob o regime das trocas iguais. O produtor e o distribuidor seriam igualmente recompensados e é a soma total de seu trabalho que serviria para determinar o valor de todos os artigos criados e postos ao alcance do consumidor...

O princípio da igualdade nas trocas deve, pela sua própria natureza, levar ao trabalho universal " (Bray, págs. 76. 88, 89, 92 e 109).

Depois de refutar as objeções dos economistas contra o comunismo, o sr. Bray assim continua:

"Se uma mudança de caráter é indispensável para fazer vingar um sistema social de comunidade na sua forma perfeita; se, de outro lado, o regime atual não apresenta nem as circunstâncias, nem as facilidades requeridas para se chegar a esta mudança de caráter e para preparar os homens para uma situação melhor que todos desejamos, é evidente que as cousas devem, necessariamente, ficar tal como estão, a não ser que se descubra e aplique um termo social preparatório — um movimento que participe tanto do sistema atual como do sistema futuro (do sistema de comunidade) — uma espécie de parada intermediária à qual a sociedade possa chegar com todos os seus excessos e todas suas loucuras, para deixá-la em seguida, rica de qualidades e de atributos que são as condições vitais do sistema de comunidade" (Bray, pág. 136).

"Todo o movimento não exigiria senão a cooperação na sua forma mais simples... O custo de produção determinaria, em qualquer circunstância, o valor do produto, e valores iguais seriam trocados sempre por valores iguais. De duas pessoas, uma das quais tivesse trabalhado a semana inteira e a outra meia semana, a primeira receberia o dobro da remuneração da segunda; mas este excedente de pagamento não seria dado a uma pessoa com prejuízo de outra: a perda sofrida pela última não recairia de nenhum modo sobre a primeira. Cada pessoa trocaria o salário que tivesse recebido individualmente por objetos do mesmo valor que seu salário, e, em nenhum caso, o lucro realizado por um homem ou uma indústria constituiria a perda de um outro homem ou de um outro ramo de indústria. O trabalho de cada indivíduo seria a única medida de seus lucros e de sua perda...

...Por meio de agências (boards of trade) gerais ou locais, determinar-se-ia a quantidade de objetos diferentes exigidos pelo consumo, e o valor relativo de cada objeto em comparação com os outros (o número de operários a empregar nos ramos de trabalho), numa palavra, tudo aquilo que se relaciona com a produção e com a distribuição sociais. Estas operações seriam executadas, numa nação, em tão pouco tempo com tanta facilidade quanto o são, sob o regime atual, numa sociedade particular... Os indivíduos se agrupariam em famílias, as famílias em comunas, como sob o regime atual... Não se aboliria nem mesmo, diretamente, a distribuição das populações na cidade e no campo, apesar de todos os seus inconvenientes. Nesta associação, cada indivíduo continuaria a gozar da liberdade que possui presentemente de acumular na quantidade que melhor lhe parecer, e de fazer destas acumulações o uso que julgar conveniente... Nossa sociedade será por assim dizer uma grande sociedade por ações, composta de um número infinito de sociedades por ações menores, as quais trabalham, produzem e trocam seus produtos numa base da mais perfeita igualdade... Nosso novo sistema de sociedade por ações, que não é senão uma concessão feita à sociedade atual, para chegar ao comunismo, e estabelecido de maneira a fazer coexistir a propriedade individual dos produtos com a propriedade em comum das forças produtivas, faz depender a sorte de cada indivíduo de sua própria atividade, e lhe concede uma parte igual em todas as vantagens proporcionadas pela natureza e pelo progresso das artes. Desse modo pode se aplicar à sociedade tal como existe, e prepará-la para mudanças ulteriores" (Bray, págs. 158, 160, 162, 194 e 199).

Bastam-nos apenas mais algumas palavras para responder ao sr. Bray que, sem que tenhamos qualquer culpa, suplantou, como vemos, o sr. Proudhon, com a exceção de que o primeiro, longe de querer possuir a última palavra da humanidade, propõe somente medidas que supõe boas para uma época de transição entre a sociedade atual e o regime de comunidade.

Uma hora de trabalho de Pedro é trocada por uma hora de trabalho de Paulo. Eis o axioma fundamental do sr. Bray.

Suponhamos que Pedro tenha a seu dispor doze horas de trabalho e Paulo apenas seis: Pedro não poderá assim fazer com Paulo senão uma troca de seis horas por seis. Pedro terá, por conseguinte, seis horas de trabalho de sobra. Que fará ele destas seis horas de trabalho?

Ou não fará nada, o que significará que terá trabalhado seis horas a troco de nada; ou então deixará de trabalhar outras seis horas para estabelecer o equilíbrio; ou ainda, e é este o seu último recurso, dará a Paulo estas seis horas, das quais não sabe o que fazer.

Assim, no final de contas, que terá ganho Pedro a mais do que Paulo? Horas de trabalho, não. Não terá ganho senão horas de lazer: ele será forçado durante seis horas a viver como um ocioso. E, para que este novo direito à ociosidade seja não apenas aproveitado, mas também apreciado na nova sociedade, é preciso que esta encontre a sua mais alta felicidade na preguiça, e que o trabalho lhe pese como uma cadeia da qual deverá se livrar custe o que custar. E se ainda, para voltar ao nosso exemplo, estas horas de lazer que Pedro teve a mais sobre Paulo fossem um ganho real! Mas não; Paulo, não trabalhando no começo senão seis horas, chega por meio de um trabalho regular e regrado ao resultado que Pedro não obtêm senão por um excesso de trabalho. Todos quererão ser Paulo, haverá concorrência para conseguir o lugar de Paulo, concorrência de preguiça.

Pois bem! A troca de quantidades iguais de trabalho que nos deu ela? Superprodução, depreciação, excesso de trabalho seguido de desocupação, enfim as relações econômicas tais como as vemos constituídas na sociedade atual, menos a concorrência de trabalho.

Mas não, nós nos enganamos. Haverá ainda um expediente que poderá salvar a sociedade nova, a sociedade dos Pedros e dos Paulos. Pedro consumirá sozinho o produto das seis horas de trabalho que lhe sobram. Mas desde que ele não tem mais de trocar por haver produzido, ele também não tem de produzir para trocar, e toda a suposição de uma sociedade baseada sobre a troca e a divisão de trabalho cairia. Ter-se-á salvo a igualdade das trocas pelo próprio fato de que as trocas terão cessado de existir: Paulo e Pedro ficariam reduzidos à condição de Robinson.

Assim, se se supõem todos os membros da sociedade trabalhadores imediatos, a troca de quantidades iguais de horas de trabalho não será possível senão com a condição de que se combine com antecedência o número de horas que será preciso empregar na produção material. Mas uma tal convenção nega a troca individual.

Chegaremos ainda à mesma consequência, se tomarmos como ponto de partida não mais a distribuição dos produtos criados, mas o ato da produção. Na grande indústria, Pedro não tem a liberdade de fixar ele próprio o tempo de seu trabalho, pois o trabalho de Pedro nada vale sem o concurso de todos os Pedros e de todos os Paulos que formam a oficina. É isto que explica a resistência tenaz que os comerciantes ingleses opuseram à lei das dez horas. É que sabiam muito bem que uma diminuição de duas horas, concedida às mulheres e às crianças, devia igualmente acarretar uma diminuição de tempo de trabalho para os adultos. É da natureza da grande indústria que o tempo de trabalho seja igual para todos. O que é hoje o resultado do capital e da concorrência dos operários entre eles será amanhã, se se suprimir a relação entre o trabalho e o capital, a consequência de uma convenção baseada sobre a relação entre a soma das forças produtivas e a soma das necessidades existentes.

Mas uma tal convenção é a condenação da troca individual, e eis-nos chegados de novo ao nosso primeiro resultado.

A princípio, não há troca dos produtos, mas troca dos trabalhos que concorrem à produção. É do modo de troca das forças produtivas que depende o modo de troca dos produtos. Em geral, a forma da troca dos produtos corresponde à forma da produção. Mudai a última, e a primeira, como consequência, será também mudada. Vemos também na história da sociedade o modo de trocar os produtos se regular pelo modo de sua produção. A troca individual corresponde, ainda, a um modo de produção determinado, que, ele próprio, corresponde ao antagonismo das classes.

Mas as consciências honestas se recusam a esta evidência. Enquanto se é burguês não se pode fazer outra cousa senão ver nesta relação de antagonismo uma relação de harmonia e de justiça eterna, que não permite a ninguém obter vantagens à custa de outrem. Para o burguês, a troca individual pode subsistir sem o antagonismo das classes: para ele são duas cousas inteiramente separadas. A troca individual como a imagina o burguês está longe de se parecer com a troca individual tal como é praticada.

O sr. Bray faz da ilusão do honesto burguês o ideal que queria ver realizado. Depurando a troca individual, livrando-a de todos os elementos antagônicos que nela sejam encontrados, ele acredita achar uma relação "igualitária", que desejaria fazer passar para a sociedade.

O sr. Bray não vê que esta relação igualitária, este ideal corretivo, que desejaria aplicar ao mundo, não é senão o reflexo do mundo atual, e que é por conseguinte inteiramente impossível reconstituir a sociedade sobre uma base que não é senão uma sombra embelezada dela mesma. À medida que a sombra volta a ser corpo, vê-se que este corpo, longe de ser a transfiguração sonhada, é o corpo atual da sociedade.[1 1]

Aplicação da lei das proporcionalidades de valor

A moeda

O ouro e a prata são as primeiras mercadorias cujo valor tenha chegado a se constituir.

O ouro e a prata são, pois, as primeiras aplicações do "valor constituído"... pelo sr. Proudhon. E como o sr. Proudhon constitui os valores dos produtos determinando-os pela quantidade comparativa de trabalho neles fixada, a única cousa que tinha de fazer era provar que as variações sobrevindas no valor do ouro e da prata se explicam sempre pelas variações do tempo de trabalho que é preciso para os produzir. O sr. Proudhon não pensa nisso. Não fala do ouro e da prata como mercadoria, fala deles como moeda.

Toda a lógica, se houver lógica, consiste em escamotear a qualidade que tem o ouro e a prata de servir de moeda, para benefício de todas as mercadorias que têm a qualidade de serem avaliadas pelo tempo do trabalho. Decididamente há mais ingenuidade do que malícia nesta escamoteação.

Um produto útil, sendo avaliado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-lo, é sempre aceitável em troca. Testemunham-no, exclama o sr. Proudhon, o ouro e a prata que se encontram nas condições que desejo de "permutabilidade". Assim, o ouro e a prata são o valor chegado ao estado de constituição, a incorporação da ideia do sr. Proudhon. Ele não podia ser mais feliz na escolha de seu exemplo. O ouro e a prata, além da qualidade que possuem de ser uma mercadoria, avaliada como qualquer outra mercadoria pelo tempo de trabalho, têm ainda a de ser agente universal de troca, de ser moeda. Tomando agora o ouro e a prata como uma aplicação do "valor constituído" pelo tempo do trabalho, nada mais fácil do que provar que toda mercadoria cujo valor seja constituído pelo tempo do trabalho será sempre permutável, será moeda.

Uma questão muito simples se apresenta ao espírito do sr. Proudhon. Por que têm o ouro e a prata o privilégio de ser o tipo do "valor constituído"?

"A função particular que o uso atribuiu aos metais preciosos de servir de agente ao comércio é puramente convencional, e qualquer outra mercadoria poderia, menos comodamente talvez, mas com a mesma autenticidade desempenhar este papel: os economistas o reconhecem e mais de um exemplo pode ser citado. Qual é, pois, a razão desta preferência geralmente dada aos metais, para servirem de moeda, e como se explica esta especialidade das funções, sem semelhante na economia política, do dinheiro?... Ora, é possível restabelecer a série de onde a moeda parece ter sido destacada, e, consequentemente reconduzir esta a seu verdadeiro princípio?"

Colocando a questão nestes termos, o sr. Proudhon já supôs a moeda. A primeira questão que deveria ter colocado era de saber porque, nas trocas tais como são constituídas atualmente, se teve de individualizar, por assim dizer, o valor permutável, criando um agente especial de troca. A moeda não é uma cousa, é uma relação social. Por que é a relação da moeda uma relação da produção, como qualquer outra relação econômica, tal como a divisão do trabalho, etc.? Se o sr. Proudhon se tivesse inteirado bem desta relação, não teria visto na moeda uma exceção, um membro destacado de uma série desconhecida ou a ser encontrada de novo.

Ele teria reconhecido, ao contrário, que esta relação é um elo, e, como tal, intimamente ligado a todo o encadeamento das outras relações, e que esta relação corresponde a um modo de produção determinado nem mais nem menos do que a troca individual. Que faz ele? Começa por destacar a moeda do conjunto do modo de produção atual, para fazer dela mais tarde o primeiro membro de uma série imaginária, de série a ser de novo encontrada.

Uma vez que se tenha reconhecido a necessidade de um agente particular de troca, ou seja a necessidade da moeda, só resta explicar porque esta função particular é atribuída ao ouro e à prata, de preferência a qualquer outra mercadoria. É esta uma questão secundária que não se explica mais pelo encadeamento das relações de produção, mas pelas qualidades específicas inerentes ao ouro ou à prata como matéria. Se, depois de tudo isso, os economistas, nessa conjuntura "se puseram fora do domínio da ciência, se se dedicaram à física, à mecânica, à história, etc.", como diz, censurando-os, o sr. Proudhon, eles não fizeram senão aquilo que deviam fazer. A questão não é mais do domínio da economia política.

"Aquilo que nenhum dos economistas, diz o sr. Proudhon, viu ou compreendeu é a razão econômica, que determinou, em favor dos metais preciosos, o favor de que gozam."

A razão econômica que ninguém, e não sem razão, viu ou compreendeu, o sr. Proudhon a viu, compreendeu e legou à posteridade.

"Ora, aquilo que ninguém notou é que, de todas as mercadorias, o ouro e a prata são as primeiras cujo valor chegou à constituição. No período patriarcal, o ouro e a prata são ainda regateados e se trocam em barras, mas já com uma tendência visível ao domínio e com uma preferência marcada. Pouco a pouco os soberanos apoderam-se desses metais e neles colocam a sua chancela: e desta consagração soberana nasce a moeda, ou seja, a mercadoria por excelência, aquela que, a despeito de todos os abalos do comércio, conserva um valor proporcional determinado e se faz aceitar em todos os pagamentos... O traço distintivo do ouro e da prata decorre, repito-o, de que, graças às suas propriedades metálicas, às dificuldades de sua produção, e sobretudo à intervenção da autoridade pública, eles conquistaram logo, como mercadorias, a fixidade e a autenticidade."

Dizer que, de todas as mercadorias, o ouro e a prata foram as primeiras cujo valor chegou à constituição, ou seja, depois de tudo o que precede, que o ouro e a prata foram as primeiras a chegar ao estado de moeda, eis a grande revelação do sr. Proudhon, eis a verdade que ninguém tinha descoberto antes dele.

Se, com estas palavras, o sr. Proudhon quis dizer que o ouro e a prata são mercadorias cujo tempo de produção foi conhecido mais cedo do que o de todas as outras, isto seria ainda mais uma das suposições com que ele está sempre pronto a obsequiar seus leitores. Se quiséssemos recorrer a essa erudição patriarcal, diríamos ao sr. Proudhon que o tempo necessário para produzir os objetos de primeira necessidade, tais como o ferro, etc., foi conhecido em primeiro lugar. Deixaremos de lado o arco clássico de Adam Smith.

Todavia, depois de tudo isso, como pode o sr. Proudhon falar ainda da constituição de um valor, pois que um valor não se constitui jamais por isso? Ele é constituído, não pelo tempo que é preciso para produzi-lo isoladamente, mas pela relação com a quantidadede todos os outros produtos que podem ser criados no mesmo tempo. Assim, a constituição do valor do ouro e da prata supõe a constituição já dada de um grande número de outros produtos.

Não é, pois, a mercadoria que chegou, no ouro e na prata, ao estado de "valor constituído", é o "valor constituído" do sr. Proudhon que chegou, no ouro e na prata, ao estado de moeda.

Examinemos agora, de mais perto, estas razões econômicas que, segundo o sr. Proudhon, valeram ao ouro e à prata a vantagem de serem erigidos em moeda mais cedo do que todos os outros produtos, passando pelo estado constitutivo do valor.

Estas razões econômicas são: "a preferência acentuada" já no "período patriarcal", e outras circunlocuções do próprio fato, que aumentam a dificuldade, pois que multiplicam o fato multiplicando os incidentes que o sr. Proudhon faz sobrevir para explicarem o fato. O sr. Proudhon ainda não esgotou todas as razões pretensamente econômicas. Eis uma de uma força soberana, irresistível:

"É da consagração pelo soberano que nasce a moeda: os soberanos se apossam do ouro e da prata e neles colocam sua chancela".

Assim, a simples vontade dos soberanos é, para o sr. Proudhon, a razão suprema em economia política!

Verdadeiramente, é preciso ser desprovido de todo conhecimento histórico para ignorar que são os soberanos que, sempre, sofreram as condições econômicas, cujas leis jamais são ditadas por eles. A legislação, tanto a política como a civil, não faz senão enunciar, verbalizar o poder das relações econômicas.

Foi o soberano que se apossou do ouro e da prata para fazer deles os agentes universais de troca, neles imprimindo sua chancela, ou não foram, ao contrário, estes agentes universais de troca que se apoderaram do soberano, forçando-o a imprimir neles a sua chancela e a dar-lhes uma consagração política?

A marca que se tem imprimido e se imprime na prata não é a de seu valor, mas a de seu peso. A fixidade e a autenticidade de que fala o sr. Proudhon não se aplicam senão ao título da moeda, e este título indica quanto existe de matéria metálica no pedaço de prata amoedada.

"O único valor intrínseco de um marco de prata, diz Voltaire com o bom senso que todos lhe reconhecem, é um marco de prata, uma meia-libra com peso de 8 onças. O peso e o título são os únicos a constituírem este valor intrínseco" (Voltaire, Système de Law).

Mas a questão de se saber quanto vale uma onça de ouro e de prata continua a subsistir. Se uma caxemira da casa Graivd Colbert ostentasse a marca da fábrica: pura lã, esta marca da fábrica ainda nada vos diria do valor da caxemira. Restaria sempre saber qual o valor da lã.

"Filipe I, rei de França, diz o sr. Proudhon, mistura à libra tornesa de Carlos Magno um terço de liga, imaginando que tendo só ele monopólio da fabricação das moedas, pode fazer aquilo que fazem todos os comerciantes que têm o monopólio de um produto. Com efeito, era esta alteração das moedas que tanto censuravam a Filipe e a seus sucessores! Um raciocínio muito justo, do ponto de vista da rotina comercial, mas muito falso em ciência econômica, esse que diz que, sendo a oferta e a procura a regra dos valores, pode-se, seja pela produção de uma escassez artificial, seja pelo açambarcamento da fabricação, fazer subir a apreciação e, portanto, o valor das coisas, e que isso é verdadeiro tanto para o ouro como para a prata, para o trigo como para o vinho, para o azeite e o tabaco. Contudo, a fraude de Filipe não foi quase suspeitada, pois que sua moeda foi reduzida ao seu justo valor, perdendo ele ao mesmo tempo aquilo que acreditara ganhar sobre seus súditos. A mesma coisa aconteceu depois a todas as tentativas análogas."

Em primeiro lugar, já foi demonstrado, muitas e muitas vezes, que quando o príncipe resolve alterar a moeda, é ele que sai perdendo. O que havia ganho uma só vez, com a primeira emissão, ele o perde todas as vezes que as moedas falsificadas lhe voltam às mãos sob a forma de impostos, etc. Mas Filipe e seus sucessores souberam se pôr a salvo desta perda, pois, uma vez posta em circulação a moeda alterada, nada havia de mais urgente para eles do que ordenar uma refundição geral das moedas, na antiga base.

E, além disso, se Filipe I tivesse realmente raciocinado como o sr. Proudhon, ele não teria raciocinado bem, "do ponto de vista comercial". Nem Filipe I nem o sr. Proudhon não demonstram possuir gênio mercantil, quando imaginam que se pode alterar o valor do ouro do mesmo modo que o de qualquer outra mercadoria pela única razão de ser seu valor determinado pela relação entre a oferta e a procura.

Se o rei Filipe tivesse ordenado que um moio de trigo passasse a chamar-se dois moios de trigo, ele teria sido um "escroc". Ele teria enganado todos os que vivem de rendas, todos os que, tendo de receber cem moios de trigo, recebessem apenas cinquenta. Suponhamos o rei como devedor de cem moios de trigo; ele não teria que pagar senão cinquenta. Mas no comércio cem moios jamais teriam valido mais de cinquenta. Trocando-se o nome não se muda a cousa. A quantidade de trigo, seja oferecida, seja procurada, não será nem diminuída nem aumentada tão-somente por essa mudança de nome. Assim, a relação entre a oferta e a procura sendo igualmente a mesma, apesar desta alteração de nome, o preço do trigo não sofrerá nenhuma alteração real. Falando de oferta e de procura das cousas, não se fala da oferta e da procura do nome das cousas. Filipe I não era um fabricante de ouro ou de prata, como diz Proudhon: ele era fabricante do nome das moedas. Fazei passar vossas caxemiras francesas por caxemiras asiáticas: é possível que enganeis um comprador ou dois. Mas a fraude, uma vez conhecida, as caxemiras a que destes o nome de asiáticas voltarão ao preço das caxemiras francesas. Dando um falso rótulo ao ouro e à prata, o rei Filipe I não podia enganar senão enquanto a fraude não era conhecida. Como qualquer outro negociante, ele enganaria os fregueses por uma falsa qualificação da mercadoria: isso não poderia durar muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, teria de sofrer os rigores das leis comerciais. Seria isso que o sr. queria provar? Não. Segundo ele, é do soberano e não do comércio que o dinheiro recebe seu valor. E, efetivamente, o que provou? Que o comércio é mais soberano que o soberano. Que o soberano ordene que um marco passe a ser dois marcos, mas o comércio dirá sempre que esses dois marcos não valem senão o primeiro marco.

Mas com isso a questão do valor determinado pela quantidade de trabalho não deu sequer mais um passo. Resta sempre decidir se estes dois marcos, que voltam a ser o marco anterior, são determinados pelo custo de produção ou pela lei da oferta e da procura.

O sr. Proudhon continua:

"Há ainda a considerar que se, no lugar de alterar as moedas estivesse no poder do rei dobrar a sua massa, o valor permutável do ouro e da prata teria logo baixado de metade, sempre por esta razão de proporcionalidade e de equilíbrio."

Se esta opinião, que o sr. Proudhon partilha com outros economistas, é justa, ela constitui uma prova em favor da doutrina da oferta e da procura desses economistas, e de nenhum modo em favor da proporcionalidade do sr. Proudhon. Pois, qualquer que seja a quantidade de trabalho fixada na massa duplicada de ouro e de prata, seu valor cairia de metade, a procura tendo permanecido a mesma e a oferta tendo dobrado. Ou então, será que, por acaso, a lei de proporcionalidade se confundiria desta vez com a lei tão desdenhada da oferta e da procura? Esta justa proporcionalidade do sr. Proudhon é com efeito de tal modo elástica, ela se presta a tantas variações, a tantas combinações e permutas, que bem poderia coincidir uma vez com a relação entre a oferta e a procura.

Tornar "toda mercadoria aceitável na troca, se não de fato, pelo menos de direito", baseando-se no papel que representam o ouro e a prata, é desconhecer este papel. O ouro e a prata não são aceitáveis de direito senão porque o são de fato, e o são de fato porque a organização atual da produção tem necessidade de um agente universal de troca. O direito não é senão o reconhecimento do fato.

Como vimos, o exemplo do dinheiro como aplicação do valor passado ao estado de constituição não tinha sido escolhido pelo sr. Proudhon senão para fazer passar de contrabando toda a sua doutrina de permutabilidade, ou seja, para demonstrar que toda mercadoria avaliada pelo seu custo de produção deve chegar ao estado de moeda. Tudo isso estaria certo, se não fosse o inconveniente de que precisamente o ouro e a prata, enquanto moeda, são de todas as mercadorias as únicas que não são determinadas pelo seu custo de produção: e isso é de tal modo verdadeiro que na circulação elas podem ser substituídas pelo papel. Enquanto houver uma certa proporção, observada entre as necessidades e circulação e a quantidade de moeda emitida, seja moeda em papel, em ouro, em platina ou cobre, não se poderá falar de uma proporção a observar entre o valor intrínseco (o custo de produção) e o valor nominal da moeda. Sem dúvida, no comércio internacional, a moeda é determinada, como qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho. Mas é que também o ouro e a prata, quando passam para o comércio internacional, são meios de troca como produto e não como moeda, o que equivale a dizer que perdem este caráter de "fixidade e autenticidade", de "consagração pelo soberano", que formam para o sr. Proudhon o seu caráter específico. Ricardo compreendeu tão bem esta verdade que, depois de ter baseado todo o seu sistema no valor determinado pelo tempo de trabalho, e depois de ter dito que "o ouro e a prata, assim como todas as outras mercadorias, não têm valor senão na proporção da quantidade de trabalho necessária para os produzir e fazê-los chegar ao mercado", acrescenta que o valor da moeda não é determinado pelo tempo de trabalho fixado na sua matéria, mas somente pela lei da oferta e da procura.

"Embora o papel não tenha valor intrínseco, se se limitar a sua quantidade, seu valor de troca pode, contudo, igualar o valor de uma moeda metálica da mesma denominação ou de barras avaliadas em espécie. É ainda pelo mesmo princípio, ou seja, pela limitação da quantidade da moeda, que peças de baixo teor podem circular com o mesmo valor que elas teriam tido se seu peso e teor fossem os fixados pela lei e não de acordo com o valor intrínseco do metal puro que contivessem. Eis porque na história das moedas inglesas vemos que nosso numerário jamais foi depreciado na mesma proporção em que foi alterado. A razão está em que jamais ele foi multiplicado na proporção de sua depreciação" (Ricardo, loc. cit.).

Eis o que observa J. B. Say a respeito desta passagem de Ricardo:

"Este exemplo deveria bastar, parece-me, para convencer o autor de que a base de qualquer valor é, não a quantidade de trabalho necessária para produzir uma mercadoria, mas a necessidade que se tem dela, equilibrada pela sua raridade."

Assim, a moeda, que para Ricardo não é mais um valor determinado pelo tempo de trabalho, do que se aproveita J. B. Say como exemplo para convencer Ricardo de que os outros valores não poderiam também ser determinados pelo tempo de trabalho, esta moeda, digo, tomada por J. B. Say como exemplo de um valor determinado exclusivamente pela oferta e pela procura, torna-se para o sr. Proudhon o exemplo por excelência da aplicação do valor constituído... pelo tempo do trabalho.

Para terminar, se a moeda não é um "valor constituído" pelo tempo de trabalho, ela muito menos ainda poderia ter qualquer cousa de comum com a justa "proporcionalidade" do sr. Proudhon. O ouro e a prata são sempre permutáveis porque têm a função particular de servir como agente universal de troca, e de nenhum modo porque existem numa quantidade proporcional ao conjunto das riquezas; ou, para dizer ainda melhor, eles são sempre proporcionais porque, os únicos entre todas as mercadorias, servem de moeda, de agente universal da troca, seja qual for a sua quantidade em relação ao conjunto das riquezas.

"A moeda em circulação não deveria jamais ser abundante a ponto de regurgitar; pois, se se baixar o seu valor, aumentar-se-á na mesma proporção a quantidade, e aumentando o seu valor, diminuir-se-á a sua quantidade " (Ricardo).

"Que imbróglio é a economia política!" exclama o sr. Proudhon.

"Maldito ouro!" exclama comicamente um comunista (pela boca do sr. Proudhon). Seria o mesmo que dizer: maldito trigo, malditas vinhas, malditos carneiros! Pois,

"do mesmo modo como o ouro e a prata, todo valor comercial deve chegar à sua exata e rigorosa determinação".

A ideia de fazer chegar os carneiros e as vinhas ao estado de moeda não é nova. Na França, ela pertence ao século de Luís XIV. Nessa época, como o dinheiro começasse a estabelecer todo o seu poderio, era motivo de queixas a depreciação de todas as outras mercadorias, e todos aguardavam com ansiedade o momento em que "todo valor comercial" pudesse ser levado à sua exata e rigorosa determinação, ao estado de moeda. Eis aqui o que já encontramos em Bois-Guillebert, um dos mais antigos economistas da França:

"O dinheiro, então, com este aparecimento de concorrentes em grande número, que serão as próprias mercadorias restabelecidas no seu justo valor, será colocado nos seus limites naturais" (Économistes financiers du XVIII?º siècle, pág. 422, ed. Daire).

Vê-se que as primeiras ilusões da burguesia são também as últimas.

O excedente do trabalho

"Encontramos nas obras de economia política esta hipótese absurda: Se o preço de todas as cousas fosse dobrada... Como se o preço de todas as cousas não fosse a proporção das coisas, e como se pudesse dobrar uma proporção, uma relação, uma lei! (Proudhon, t. I, pág. 81). Os economistas caíram neste erro, por não terem sabido fazer a aplicação da "lei de proporcionalidade" e do "valor constituído".

Infortunadamente, na própria obra do sr. Proudhon, t, I, pág. 110, encontra-se esta hipótese absurda:

"se o salário subisse de modo geral, os preços de todas as coisas subiria".

Ademais, se se encontra nas obras de economia política a frase em questão, ali também encontramos sua explicação.

"Quando se diz que o preço de todas as mercadorias sobe ou baixa, exclui-se sempre uma ou outra das mercadorias: a mercadoria excluída é em geral o dinheiro ou o trabalho." (Encyclopcedia Metropolitana or Universal Dictionary of Knowledge, vol. IV, no artigo Political Economy, por Senior, London, 1836). (Ver também, sobre esta expressão, J. Stuart Mill, Essays on some unsettled questions of political economy, London, 1844, e Tooke, An history of prices, etc. London, 1838).

Passemos agora à segunda aplicação do "valor constituído", e de outras proporcionalidades cujo único defeito é de serem pouco proporcionadas; e vejamos se o sr. Proudhon é aí mais feliz do que na monetização dos carneiros.

"Um axioma geralmente admitido pelos economistas é o de que todo trabalho deve deixar um excedente. Esta proposição é para mim de uma verdade universal e absoluta: é o corolário da lei da proporcionalidade, que se pode considerar como o sumário de toda a ciência econômica. Mas, peço perdão aos economistas, o princípio de que todo trabalho deve deixar um excedente não tem sentido na sua teoria, e não é suscetível de nenhuma demonstração" (Proudhon).

Para provar que todo trabalho deve deixar um excedente, o sr. Proudhon personifica a sociedade: ele cria uma sociedade-pessoa, sociedade que não é, bem longe disso, a sociedade das pessoas, pois que tem suas leis à parte nada tendo de comum com as pessoas de que se compõe a sociedade, assim como sua "inteligência própria", que não é a inteligência comum dos homens, mas uma inteligência que não é dotada do senso comum. O sr. Proudhon reprova aos economistas o não terem compreendido a personalidade deste ser coletivo. Queremos opor-lhe a seguinte passagem de um economista americano que reprova nos outros economistas precisamente o contrário:

"A entidade moral (the moral entity), o ser gramatical (the grammatical being) chamado sociedade foi revestido de atribuições que não têm existência real senão na imaginação daqueles que com uma palavra fazem uma cousa... Eis o que deu lugar a muitas dificuldades e a deploráveis enganos na economia política " (Th. Cooper, Lectures on the Elements of Political Economy, Columbia, 1826). "Este princípio do excedente do trabalho, continua o sr. Proudhon, não é verdadeiro para os indivíduos senão porque ele emana da sociedade, que lhes confere assim o benefício de suas próprias leis."

O sr. Proudhon quererá dizer com isso simplesmente que a produção do indivíduo social ultrapassa a do indivíduo isolado? É deste excedente da produção dos indivíduos associados sobre a dos indivíduos não associados que o sr. Proudhon quer falar? Se for assim, poderemos citar-lhe cem economistas que exprimiram esta simples verdade sem todo o misticismo de que se cerca o sr. Proudhon. Eis o que diz, por exemplo, o sr. Sadler:

"O trabalho combinado apresenta resultados que o trabalho individual jamais seria capaz de produzir. Assim, à medida que a humanidade aumenta em número, os produtos da indústria reunida excederão de muito a importância de uma simples adição calculada sobre este aumento... Tanto nas artes mecânicas como nos trabalhos da ciência, um homem pode atualmente fazer mais num dia que um indivíduo isolado durante toda a sua vida. O axioma dos matemáticos, segundo o qual o todo é igual às partes reunidas, não é verdadeiro quando aplicado a este assunto. Quanto ao trabalho, este grande pilar da existência humana (the great pillar of human existence), pode-se dizer que o produto dos esforços acumulados excede de muito tudo aquilo que os esforços individuais e separados poderão jamais produzir " (T. Sadler, The law of popvtr lation, London, 1830).

Voltemos ao sr. Proudhon. O excedente do trabalho, diz ele, explica-se pela sociedade-pessoa. A vida desta pessoa segue leis opostas às que fazem o homem agir como indivíduo, cousa que ele quer provar com "fatos".

"A descoberta de um processo econômico não pode jamais dar ao inventor um lucro igual ao que proporciona à sociedade... Já se notou que as empresas ferroviárias são uma fonte de riqueza menor para os que as exploram do que para o Estado... O preço médio do transporte das mercadorias em veículos de tração animal é de 18 cêntimos por tonelada e por quilômetro, sendo as mercadorias carregadas e descarregadas nos armazéns. Calculou-se que por este preço uma empresa ferroviária comum não obteria senão 10% de lucro líquido, resultado aproximadamente igual ao de uma empresa de transporte de tração animal. Mas admitamos que a celeridade do transporte por estrada de ferro esteja para a de tração animal como 4 está para 1: como na sociedade o tempo é o próprio valor, com igualdade de preço a estrada de ferro apresentará sobre a tração animal uma vantagem de 400%. Contudo, esta vantagem enorme, muito real para a sociedade, está bem longe de se realizar na mesma proporção para a empresa que explora a tração animal, pois, enquanto proporciona à sociedade uma melhor-valia de 400%, não retira, a empresa, 10%. Com efeito, suponhamos, para tornar a cousa ainda mais sensível, que a empresa ferroviária eleve suas tarifas para 25 cêntimos, o da empresa de tração animal permanecendo em 18: a primeira perderá imediatamente todas as suas consignações. Expedidores, destinatários, toda gente voltará à "malbrouke", à carroça, se for preciso. A locomotiva será abandonada: uma vantagem social de 400% será sacrificada a uma perda de 35%. A razão disso é fácil de descobrir: a vantagem que resulta da rapidez da estrada de ferro é inteiramente social, e cada indivíduo dela não participa senão numa proporção mínima (não nos esqueçamos de que não se trata neste momento senão dos transportes de mercadorias), enquanto que a perda atinge direta e pessoalmente o consumidor. Um benefício social igual a 400 representa para o indivíduo, numa sociedade de somente um milhão de homens, quatro décimos de milésimo; enquanto que uma perda de 33% para o consumidor suporia um "déficit" social de 33 milhões" (Proudhon).

Pode-se admitir que o sr. Proudhon exprima uma celeridade levada ao quádruplo por 400% da celeridade primitiva; mas que ponha em relação a porcentagem de celeridade com a porcentagem do lucro e que forme uma proporção entre duas relações que, podendo ser medidas separadamente por porcentagens, são, contudo, incomensuráveis entre elas — é estabelecer uma proporção entre as porcentagens e deixar de lado as denominações.

Porcentagens são sempre porcentagens, 10% e 400% são comensuráveis: estão um para o outro assim como 10 está para 400. Logo, conclui o sr. Proudhon, um lucro de 10% vale quarenta vezes menos do que uma celeridade quadruplicada. Para salvar as aparências, ele diz que, para a sociedade, o tempo é o valor (time is money). Este erro provém do fato de se lembrar ele confusamente de que existe uma relação entre o valor e o tempo do trabalho, apressando-se em assimilar o tempo do trabalho ao tempo do transporte, o que equivale a dizer que identifica os foguistas, os guardas e outros poucos trabalhadores, cujo tempo de trabalho não é senão o tempo de transporte, com a sociedade inteira. Desse modo, eis a celeridade transformada em capital, e neste caso, ele tem plenamente razão de dizer: "Um lucro de 400% será sacrificado a uma perda de 35 % ". Depois de ter estabelecido como matemático esta estranha proposição, ele nos dá a explicação da mesma como economista.

"Um lucro social igual a 400 representa para o indivíduo, se a sociedade for somente de um milhão de homens, quatro décimos de milésimo." De acordo: mas não se trata de 400, trata-se de 400%, e um lucro de 400% representa para o indivíduo 400%, nem mais nem menos. Seja qual for o capital, os dividendos serão determinados sempre na relação de 400%. Que faz o sr. Proudhon? Ele toma as porcentagens pelo capital, e como se receasse que sua confusão não fosse bastante manifesta, bastante "sensível", continua:

"Uma perda de 33% para o consumidor suporia um "déficit" social de 33 milhões"; 33% de perda para o consumidor permanecem 33% de perda para um milhão de consumidores. Como pode dizer em seguida o sr. Proudhon que o "déficit" social, no caso de uma perda de 33%, se eleva a 33 milhões, quando não conhece nem o capital social nem mesmo o capital de um só dos interessados? Assim, não bastava ao sr. Proudhon ter confundido o capital e as porcentagens; ele vai além de si mesmo identificando o capital empregado numa empresa e o número dos interessados.

"Suponhamos, com efeito, para tornar a cousa ainda mais sensível", um capital determinado. Um lucro social de 400%, repartido por milhão de participantes, interessados cada um em 1 franco, dá 4 francos de lucro, por indivíduo, e não 0,0004, como pretende o sr. Proudhon. Do mesmo modo, uma perda de 33% para cada um dos participantes representa um "déficit" social de 330.000 francos e não de 33 milhões (100:33 = 1.000.000: 330.000).

O sr. Proudhon, preocupado com sua teoria da sociedade pessoal, esquece-se de fazer a divisão por 100, obtendo assim 330.000 francos de perda; mas 4 francos de lucro por indivíduo perfazem para a sociedade 4 milhões de francos de lucro. Resta para a sociedade um lucro líquido de 3 milhões 670.000 francos. Esta conta exata demonstra justamente o contrário daquilo que quis demonstrar o sr. Proudhon: é que os lucros e perdas da sociedade não estão em razão inversa aos lucros e perdas dos indivíduos.

Depois de ter retificado estes simples erros de puro cálculo, vejamos um pouco as consequências às quais se chegaria se se quisesse admitir para as estradas de ferro esta relação entre celeridade e capital, tal como o sr. Proudhon a apresenta, menos os erros de cálculo. Suponhamos que um transporte quatro vezes mais rápido custe quatro vezes mais; este transporte não daria menos lucro que a tração animal que é quatro vezes mais lento e tem a quarta parte das despesas. Assim, se a tração animal cobra 18 cêntimos, a estrada de ferro poderia cobrar 72 cêntimos. Esta seria de acordo com o "rigor matemático" a consequência das suposições do sr. Proudhon, sempre sem os seus erros de cálculo. Mas eis que subitamente ele nos diz que se, em vez de 72 cêntimos a estrada de ferro não cobrasse senão 25, ela perderia imediatamente todas as suas consignações. Decididamente, é preciso voltar à "malbrouke", e mesmo à carroça. Entretanto, se tivéssemos um conselho a dar ao sr. Proudhon, esse seria o de não se esquecer em seu "Programa da associação progressiva" de fazer a divisão por 100. Mas, pobre de nós, não poderemos esperar que nosso conselho seja ouvido, pois o sr. Proudhon está de tal modo encantado com seu cálculo "progressivo" correspondente à "ocasião progressiva", que exclama com muita ênfase:

"Já fiz ver no capítulo II, pela solução da antinomia do valor, que vantagem de qualquer descoberta útil é incomparavelmente menor para o inventor, faça ele o que fizer, do que para a sociedade; levei a demonstração deste ponto até o rigor matemático!"

Voltemos à ficção da sociedade pessoa, ficção que não tinha outro fim senão o de provar esta simples verdade: uma invenção nova que permita produzir com a mesma quantidade de trabalho uma maior quantidade de mercadorias faz baixar o valor venal do produto. A sociedade consegue, pois um lucro, não obtendo mais valores permutáveis, mas obtendo mais mercadorias pelo mesmo valor. Quanto ao inventor, a concorrência faz cair sucessivamente seu lucro até o nível geral dos lucros. O sr. Proudhon provou esta proposição como o queria fazer? Não. Isso não o impede de censurar aos economistas o ter deixado de fazer esta demonstração. Para provar-lhe o contrário, citaremos apenas Ricardo e Lauderdale — Ricardo, chefe da escola que determina o valor pelo tempo do trabalho, Lauderdale, um dos mais intransigentes defensores do valor pela oferta e procura. Desenvolveram ambos a mesma tese.

"Aumentando constantemente a facilidade da produção, diminuímos constantemente o valor de algumas das cousas produzidas anteriormente, embora por este meio não somente tornamos maior a riqueza nacional, como aumentamos a faculdade de produzir para o futuro... Quando por meio de máquinas ou dos nossos conhecimentos de física forçamos os agentes naturais a executarem a obra que os homens antes executavam, o valor permutável dessa obra, como consequência, cai. Se se precisasse de dez homens para porem em movimento um moinho de trigo, e se se descobrisse que por meio de vento ou água o trabalho destes dez homens pudesse ser poupado, a farinha que seria o produto da ação do moinho cairia de valor desde esse momento, proporcionalmente à soma de trabalho poupado; e a sociedade seria enriquecida com todo o valor das cousas que o trabalho destes homens poderia produzir, os fundos destinados ao sustento dos trabalhadores não sofrendo com isso a menor diminuição" (Ricardo).

Lauderdale, por sua vez, diz:

"O lucro dos capitais provém sempre do fato de suprirem eles uma porção de trabalho que o homem deveria executar com suas mãos, ou do fato de levarem a efeito uma porção de trabalho acima dos esforços pessoais do homem e que este não poderia executar por si mesmo. O pequeno lucro que obtêm em geral os proprietários das máquinas, em comparação com o preço do trabalho que suprem, fará talvez nascer dúvidas sobre a justeza desta opinião. Uma bomba a vapor, por exemplo, tira num dia mais de água de uma mina de carvão do que trezentos homens transportando o líquido sobre as costas, mesmo com o auxílio de tinas; e não é de duvidar que ela substitua o trabalho dos homens com muito menos despesas. Esse é o caso de todas as máquinas. O trabalho que se fazia por meio da mão do homem, a qual substituíram, elas devem fazê-lo por um preço mais baixo... Suponhamos que uma patente seja dada ao inventor de uma máquina que faz o trabalho de quatro; como o privilégio exclusivo impede qualquer concorrência, menos a que resulta do trabalho dos operários, é claro que o salário destes, em toda a duração do privilégio, será a medida do preço que o inventor deve conferir aos seus produtos. Isto significa que, para assegurar o uso, ele exigirá um pouco menos que o salário do trabalho que a máquina supre. Mas ao expirar o privilégio, outras máquinas da mesma espécie serão usadas e concorrerão com a sua. Ele regulará então seu preço pelo princípio geral, fazendo-o depender da abundância das máquinas. O lucro dos fundos empregados... embora resulte de um trabalho substituído, é enfim regulado, não pelo valor deste trabalho mas, como em todos os outros casos, pela concorrência entre os proprietários dos fundos; e o grau do mesmo é sempre fixado pela proporção entre a quantidade dos capitais oferecidos para esta função e a procura que se "manifesta".

Vemos, por fim, que, enquanto o lucro for maior do que nas outras indústrias, haverá capitais que se lançarão na indústria nova, até que a taxa dos lucros tenha descido ao nível comum. Acabamos de ver que o exemplo da estrada de ferro não era muito adequado para lançar alguma luz sobre a ficção da sociedade pessoa. Contudo, o sr. Proudhon retoma intrepidamente a sua exposição:

"Esclarecidos estes pontos, nada mais fácil do que explicar como o trabalho deve deixar a cada produtor um excedente".

O que agora se segue pertence à antiguidade clássica. É um conto poético feito para repousar o leitor das fadigas que lhe deve ter causado o rigor das demonstrações matemáticas que o precedem. O sr. Proudhon dá à sociedade pessoa o nome de Prometeu, cujos altos feitos ele glorifica nestes termos:

"Prometeu, logo ao sair do seio da natureza, acorda para a vida numa inércia cheia de encantos, etc., etc. Prometeu põe-se à obra e, desde o primeiro dia, o primeiro dia da segunda criação, a produção de Prometeu, isto é, sua riqueza, seu bem-estar, é igual a dez. No segundo dia, Prometeu divide seu trabalho, e sua produção torna-se igual a cem. No terceiro dia, e em cada um dos dias seguintes, Prometeu inventa máquinas, descobre novas utilidades dos corpos, novas forças na natureza... cada passo de sua indústria, a soma de sua produção se eleva e lhe anuncia um aumento de felicidade. E, enfim, como para ele consumir é produzir, é claro que cada dia de consumo, não fazendo desaparecer senão o produto da véspera, deixa um excedente de produção para o dia seguinte".

Este Prometeu do sr. Proudhon é uma personagem engraçada, tão fraca em matéria de lógica como em economia política. Enquanto este novo Prometeu apenas nos ensina a divisão do trabalho, o emprego das máquinas, a exploração das forças naturais e do poder científico, multiplicando as forças produtivas dos homens e dando um excedente em comparação com o que produz o trabalho isolado, ele não teve senão a infelicidade de ter chegado muito tarde. Mas desde que Prometeu se põe a misturar produção com consumo, ele se torna realmente grotesco. Consumir, para ele, é produzir; ele consome no dia seguinte o que produziu na véspera, e é assim que tem sempre um dia a haver; este dia adiantado é o seu "excedente de trabalho". Mas consumindo no dia seguinte aquilo que produziu na véspera, terá sido preciso que no primeiro dia, que não teve véspera, ele tenha trabalhado para dois dias, a fim de ter depois um dia adiantado. Como pôde Prometeu conseguir no primeiro dia este excedente sem que houvesse então nem divisão de trabalho, nem máquinas, nem outros conhecimentos das forças físicas a não ser a do fogo? Assim, a questão, mesmo tendo sido levada "até o primeiro dia da segunda criação", não deu um passo à frente. Esta maneira de explicar as coisas se prende ao mesmo tempo ao grego e a hebraico, é ao mesmo tempo mística e alegórica, e dá perfeitamente ao sr. Proudhon o direito de dizer:

"Demonstrei pela teoria e pelos fatos o princípio de que todo trabalho deve deixar um excedente."

Os fatos são o famoso cálculo progressivo; a teoria é o mito de Prometeu.

"Mas, continua o sr. Proudhon, este princípio tão exato quanto uma proposição de aritmética, está ainda longe de ser válido para todo o mundo. Enquanto que, pelo progresso da indústria coletiva, cada dia de trabalho individual obtém um produto cada vez maior, e, como consequência necessária, enquanto que o trabalhador, com o mesmo salário, deveria tornar-se cada dia mais rico, existem na sociedade Estados que prosperam e outros que decaem".

Em 1770, a população dos Reinos Unidos da Grã-Bretanha era de 15 milhões, e a população produtiva de 3 milhões. O poder científico da produção igualava, aproximadamente, uma população de 12 milhões de indivíduos a mais: havia, pois, em suma, 15 milhões de forças produtivas. Assim, o poder produtivo estava para a população como 1 está para 1, e o poder científico estava para o poder manual como 4 está para 1.

Em 1840 a população não ia além de 30 milhões: a população produtiva era de 6 milhões, enquanto que o poder científico atingia 650 milhões, o que significa que ele estava para a população inteira assim como 21 está para 1, e para o poder manual como 108 está para 1.

Na sociedade inglesa, o dia de trabalho adquiriu, pois, em setenta anos, um excedente de 2.700% de produtividade, o que significa que em 1840 produziu vinte e sete vezes mais do que em 1770. Segundo o sr. Proudhon, seria necessário colocar esta questão: por que o operário inglês de 1840 não se tornou vinte e sete vezes mais rico do que o de 1770? Colocando semelhante questão, supor-se-ia naturalmente que os ingleses teriam podido produzir estas riquezas, sem que as condições históricas nas quais elas foram produzidas, tais como acumulação privada dos capitais, a divisão moderna do trabalho, a oficina automática, a concorrência anárquica, salariato, enfim, tudo o que se baseia sobre o antagonismo das classes tivesse existido. Ora, essas eram, precisamente as condições de existência necessárias para o desenvolvimento das forças produtivas e do excedente de trabalho. Assim, foi preciso, para obter este desenvolvimento das forças produtivas e este excedente de trabalho, que houvesse classes que prosperassem e outras que definhassem.

Que é, pois, afinal, este Prometeu que o sr. Proudhon ressuscitou? É a sociedade, são as relações sociais baseadas no antagonismo das classes. Essas relações são, não relações entre indivíduo e indivíduo, mas entre operário e capitalista, entre rendeiro e proprietário de terras, etc. Anulai estas relações e tereis destruído toda a sociedade, e vosso Prometeu não será mais do que um fantasma sem braços nem pernas, ou seja, sem oficina automática, sem divisão de trabalho, privado enfim de tudo aquilo que lhe havia sido dado a princípio para que pudesse obter este excedente de trabalho.

Se, pois, na teoria, bastava, como faz o sr. Proudhon, interpretar a fórmula do excedente do trabalho no sentido da igualdade, sem ter em consideração as condições atuais da produção, deveria bastar, na prática, fazer entre os operários uma repartição igualitária de todas as riquezas atualmente adquiridas, sem nada mudar nas condições atuais da produção. Esta partilha não asseguraria um grau muito grande de conforto a cada um dos participantes.

Mas o sr. Proudhon não é tão pessimista como se poderia supor. Como a proporcionalidade é tudo para ele, não poderia deixar de ver no Prometeu tal como nos apresenta, isto é, na sociedade atual, um começo de realização de sua ideia favorita.

"Mas por toda parte o progresso da riqueza, ou seja, a proporcionalidade dos valores, é também a lei dominante; e quando os economistas opõem às queixas do partido social o aumento progressivo da fortuna pública e as melhorias introduzidas na condição das classes mesmo as mais desventuradas, eles proclamam, sem que o percebam, uma verdade que é a condenação de suas teorias".

Que é, com efeito, a riqueza coletiva, a fortuna pública? É a riqueza da burguesia, e não a de cada burguês em particular. Pois bem! Os economistas não fazem outra coisa senão demonstrar como, nas relações de produção tais como existem, a riqueza da burguesia se desenvolveu e como deve ainda aumentar. Quanto às classes operárias, é ainda uma questão muito contestada a de saber se sua condição melhorou depois do crescimento da riqueza pretensamente pública. Se os economistas nos citam, em apoio de seu otimismo, o exemplo dos operários ingleses que trabalham na indústria algodoeira, eles não veem a sua situação senão nos raros momentos de prosperidade do comércio. Estes momentos de prosperidade estão, nas épocas de crise e de estagnação, na "justa proporcionalidade" de 3 para 10. Mas talvez ainda, falando de melhoria, os economistas tenham querido falar destes milhões de operários que tiveram de perecer, nas Índias Orientais, para proporcionarem ao milhão e meio de operários ocupados na Inglaterra na mesma indústria três anos de prosperidade sobre dez.

Quanto à participação temporária no aumento da riqueza pública, é diferente. O fato de participação temporária explica-se pela teoria dos economistas. Ele é sua confirmação e de nenhum modo sua "condenação", como diz o sr. Proudhon. Se houvesse alguma coisa a condenar, isso seria certamente o sistema do sr. Proudhon, que reduziria, como o demonstramos, o operário ao mínimo de salário, apesar do aumento das riquezas. Não é senão reduzindo-o ao mínimo de salário, que ele terá feito uma aplicação da justa proporcionalidade dos valores, do "valor constituído" — pelo tempo de trabalho. É porque o salário, em consequência da concorrência, oscila acima e abaixo do preço dos víveres necessários ao sustento do operário, que este pode participar por pouco que seja do desenvolvimento da riqueza coletiva, mas podendo também morrer de miséria. Essa é toda a teoria dos economistas, que não se deixam iludir.

Depois de suas longas divagações a respeito das estradas de ferro, de Prometeu e da nova sociedade a ser reconstituída com o "valor constituído", o sr. Proudhon se recolhe; a emoção o domina e ele exclama num tom paternal:

"Eu adjuro os economistas a se interrogarem um momento, no silêncio de seu coração, longe dos preconceitos que os perturbam e sem ter em consideração os empregos que ocupam ou que esperam ocupar, os interesses que desservem, os sufrágios que ambicionam, as distinções onde sua vaidade se embala, e que digam se até hoje o princípio segundo o qual todo trabalho deve deixar um excedente lhes havia aparecido com esta cadeia de preliminares e de consequências que nós levantamos".

Notas

  1. Como qualquer outra teoria, a do sr. Bray encontrou partidários que se deixaram enganar pelas aparências. Fundou-se em Londres, em Sheffield, em Leeds e em muitas outras cidades da Inglaterra, equitable-labour-exchange-bazars. Estes bazares, depois de terem absorvido capitais consideráveis, chegaram todos eles a falências escandalosas. Perdeu-se para sempre o gosto por tais cousas: aviso ao sr. Proudhon!

A metafísica da economia política

O método

Eis-nos em plena Alemanha! Teremos agora de falar metafísica, sem deixar de falar, ao mesmo tempo, economia política. E, nisto também, não fazemos senão seguir as "contradições" do sr. Proudhon. Ainda há pouco ele nos forçava a falar inglês, de nos tornar nós mesmos sofrivelmente ingleses. Agora a cena muda. O sr. Proudhon nos transporta para a nossa cara pátria e nos obriga a readquirir, sem consultar-nos a vontade, a nossa qualidade de alemão.

Se o inglês transforma os homens em chapéus, o alemão transforma os chapéus em ideias. O inglês é Ricardo, rico banqueiro e distinto economista; o alemão é Hegel, simples professor de filosofia na Universidade de Berlim.

Luís XV, último rei absoluto, e que representava a decadência da realeza francesa, tinha ligado à sua pessoa um médico que era o primeiro economista da França. Este médico, este economista representava o triunfo iminente e seguro da burguesia francesa. O doutor Quesnay fez da economia política uma ciência; ele a resumiu no seu famoso Tableau économique. Além dos mil e um comentários que apareceram sobre esse "quadro", possuímos um do próprio doutor. É a "análise do quadro econômico", seguida de "sete observações importantes."

O sr. Proudhon é um outro doutor Quesnay. É o Quesnay da metafísica da economia política.

Ora, a metafísica, a filosofia inteira se resume, segundo Hegel, no método. É preciso, pois, que procuremos esclarecer o método do sr. Proudhon, que é pelo menos tão tenebroso quanto o "Tableau économique". É por isso que apresentamos sete observações, mais ou menos importantes. Se o doutor Proudhon não ficar satisfeito com nossas observações, ele que se torne em abade Baudeau e dê, ele próprio, a "explicação do método econômico-metafísico".

Primeira observação

"Nós não fazemos uma história segundo a ordem do tempo, mas segundo a sucessão das ideias. As fases ou categorias econômicas são, na sua manifestação, às vezes contemporâneas às vezes intervertidas... As teorias econômicas não têm menos, por isso, a sua sucessão lógica e sua série no entendimento: é esta ordem que nós nos gabamos de haver descoberto" (Proudhon, t. I, pág. 146).

Decididamente, o sr. Proudhon quis meter medo aos franceses, atirando-lhes à face frases quase-hegelianas. Temos, assim, de lidar com dois homens: em primeiro lugar com o sr. Proudhon, e depois com Hegel. Em que se distingue o sr. Proudhon dos outros economistas? E Hegel, que papel desempenha na economia política do sr. Proudhon?

Os economistas exprimem as relações da produção burguesa, a divisão do trabalho, o crédito, a moeda, etc., como categorias fixas, imutáveis, eternas. O sr. Proudhon, que tem diante de si estas categorias já formadas, quer nos explicar o ato de formação, a geração destas categorias, princípios, leis, ideias, pensamentos.

Os economistas nos explicam como se produz nestas relações dadas, mas o que eles não nos explicam é como estas relações se produzem, isto é, o movimento histórico que as faz nascer. O sr. Proudhon, tendo tomado estas relações como princípios, categorias, pensamentos abstratos, não tem senão, que pôr em ordem estes pensamentos, que se encontram dispostos alfabeticamente no fim de qualquer tratado de economia política. Os materiais dos economistas são constituídos pela vida ativa e atuante dos homens, os do sr. Proudhon, pelos dogmas dos economistas. Mas desde que não se visa o movimento histórico das relações da produção, das quais as categorias não são senão a expressão teórica, desde que não se quer ver mais nestas categorias senão ideias, pensamentos espontâneos, independentes das relações reais, somos sem dúvida forçados a indicar como origem destes pensamentos o movimento da razão pura. Como a razão pura, eterna, impessoal faz nascer estes pensamentos? Como procede para os produzir?

Se tivéssemos a intrepidez do sr. Proudhon em matéria de hegelianismo, diríamos: ela se distingue nela mesma dela mesma. Que significa isto? A razão impessoal não tendo fora dela terreno sobre o qual possa se pôr, nem objeto a que se possa opor, nem sujeito com que se possa compor, ela se vê forçada a dar uma cambalhota, pondo-se, opondo-se e compondo-se — posição, oposição, composição. Recorrendo ao grego, temos a tese, a antítese e a síntese. Quanto aos que não conhecem a linguagem hegeliana, nós lhes apresentamos a fórmula sacramental: afirmação, negação e negação da negação. Eis o que tudo isto significa. Não se trata certamente do hebraico, e que isso não desagrade ao sr. Proudhon; mas é a linguagem desta razão tão pura, separada do indivíduo. Em vez do indivíduo comum, com sua maneira comum de falar e de pensar, não temos outra coisa senão esta maneira comum toda pura menos o indivíduo.

Devemos nos espantar de que todas as coisas, em última abstração, pois há abstração e não análise, se apresentem no estado de categoria lógica? Devemos nos espantar de que, deixando cair pouco a pouco tudo o que constitui o "individualismo" de uma casa, fazendo abstração dos materiais de que ela se compõe e da forma que a distingue, chegássemos a não ter mais que um corpo — pois fazendo abstração dos limites deste corpo não teríamos logo senão um espaço — de que, enfim, fazendo abstração das dimensões deste espaço, acabaríamos por não ver mais senão a quantidade em toda a sua pureza, a categoria lógica? À força de abstrair assim de todo sujeito todos os pretensos acidentes, animados ou inanimados, homens ou coisas, temos razão de dizer que em última abstração chegamos a ter como substância as categorias lógicas. Assim os metafísicos que, fazendo estas abstrações, imaginam fazer análise, e que, à medida que se afastam cada vez mais dos objetos, imaginam se aproximar deles a ponto de penetrá-los, têm, por sua vez, razão de dizer que as coisas aqui da terra são bordados, cuja talagarça é formada pelas categorias lógicas. Eis o que distingue o filósofo do cristão. O cristão não tem senão uma encarnação do Logos, a despeito da lógica; o filósofo não acaba nunca com as encarnações. Que tudo o que existe, que tudo o que vive sobre a terra e sob a água, possa, à força de abstração, ser reduzido a uma categoria lógica; e que, deste modo, todo o mundo real possa submergir no mundo das abstrações, no mundo das categorias lógicas — quem se espantará com isso?

Tudo o que existe, tudo o que vive sobre a terra e sob a água, não existe, não vive senão por um movimento qualquer. Assim, o movimento da história produz as relações sociais, o movimento industrial nos dá os produtos industriais, etc.

Do mesmo modo como à força de abstração transformamos todas as coisas em categorias lógicas, do mesmo modo não temos senão de fazer abstração de qualquer caráter distintivo dos diferentes movimentos, para chegarmos ao movimento em estado abstrato, ao movimento puramente formal, à fórmula puramente lógica do movimento. Se encontramos nas categorias lógicas a substância de todas as coisas, imaginamos encontrar na fórmula lógica do movimento o método absoluto, que não somente explica todas as coisas, mas que implica ainda o movimento da coisa.

É este método absoluto de que Hegel fala nestes termos:

"O método é a força absoluta, única, suprema, infinita, à qual nenhum objeto poderia resistir; é a tendência da razão em se reconhecer ela própria em todas as coisas" (Lógica, t.III).

Toda coisa sendo reduzida a uma categoria lógica, e todo movimento, todo ato de produção ao método, segue-se naturalmente que todo conjunto de produtos e de produção, de objetos e de movimento, se reduz a uma metafísica aplicada. O que Hegel fez em relação à religião, ao direito, etc., o sr. Proudhon procura fazer em relação à economia política.

Que é, pois, assim este método absoluto? A abstração do movimento. Que é a abstração do movimento? O movimento no estado abstrato. Que é o movimento no estado abstrato? A fórmula puramente lógica do movimento ou o movimento da razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Em se pôr, em se opor, em se compor, em se formular como tese, antítese, síntese, ou então em se afirmar, em se negar, em negar sua negação.

Como faz a razão para se afirmar, para se apresentar como categoria determinada? É a tarefa da própria razão e de seus apologistas.

Mas, uma vez que conseguiu a se afirmar como tese, esta tese, este pensamento, oposto a ele mesmo, se desdobra em dois pensamentos contraditórios, o positivo e o negativo, o sim e o não. A luta destes dois elementos antagonistas, encerrados na antítese, constitui o movimento dialético. O sim tornando-se não, o não tornando-se sim, o sim tornando-se ao mesmo tempo sim e não, o não tornando-se ao mesmo tempo não e sim, os contrários se equilibram, se neutralizam, se paralisam. A fusão destes dois pensamentos contraditórios constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Este pensamento novo se desenvolve ainda em dois pensamentos contraditórios, que se fundem por sua vez numa nova síntese. Nesse trabalho de reprodução nasce um grupo de pensamentos. Este grupo de pensamentos segue o mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antítese um grupo contraditório. Destes dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo de pensamentos que é a sua síntese.

Do mesmo modo como do movimento dialético das categorias simples nasce o grupo, do movimento dialético dos grupos nasce a série, e do movimento dialético das séries nasce todo o sistema.

Aplicai este método às categorias da economia política, e tereis a lógica e a metafísica da economia política, ou, em outros termos, tereis as categorias econômicas conhecidas de toda gente, traduzidas numa linguagem pouco conhecida, que lhes dá o ar de terem acabado de desabrochar numa cabeça de razão pura; de tal modo estas categorias parecem se engendrar uma das outras, se encadear e se enredar umas nas outras tão somente pelo trabalho do movimento dialético. Que o leitor não se espante com esta metafísica com toda a sua andaimaria de categorias, grupos, séries e sistemas. O sr. Proudhon, apesar dos grandes esforços que fez para escalar a altura do sistema das contradições, jamais conseguiu elevar-se acima dos dois primeiros degraus da tese e da antítese simples, e ainda não os alcançou senão duas vezes, e, numa dessas duas vezes, caiu de costas.

Não expusemos até agora senão a dialética de Hegel. Veremos mais tarde como o sr. Proudhon conseguiu reduzi-la às mais mesquinhas proporções. Para Hegel, tudo o que se passou e o que ainda se passa é justamente o que se passa em seu próprio raciocínio. Assim, a filosofia da história não é mais do que a história da filosofia, de sua própria filosofia. Não há mais "história segundo a ordem do tempo", mas apenas "a sucessão das ideias no entendimento". Ele acredita construir o mundo pelo movimento do pensamento, quando não faz mais do que reconstruir sistematicamente e ordenar de acordo com o método absoluto os pensamentos que estão na cabeça de toda gente.

Segunda observação

As categorias econômicas não são senão as expressões teóricas, as abstrações das relações sociais da produção. O sr. Proudhon, como verdadeiro filósofo, tornando as coisas pelo avesso, não vê nas relações reais senão as encarnações destes princípios, destas categorias, que dormitavam, diz-nos ainda o sr. Proudhon filósofo, no seio "da razão impessoal da humanidade".

O sr. Proudhon economista compreendeu muito bem que os homens fabricam os tecidos de lã, os tecidos de algodão e os de seda, em relações determinadas de produção. Mas o que ele não compreendeu é que estas relações sociais determinadas são também produzidas pelos homens, do mesmo modo como os tecidos de algodão, de linho, etc. As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho de mão dar-vos-á a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial.

Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com suas relações sociais.

Assim, estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios.

Há um movimento contínuo de aumento das forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias; de imutável não existe senão a abstração do movimento — mors immortalis.

Terceira observação

As relações de produção de toda sociedade formam um todo. O sr. Proudhon considera as relações econômicas como outras tantas fases sociais, engendrando uma a outra, resultando uma da outra como a antítese da tese, e realizando na sua sucessão lógica a razão impessoal da humanidade.

O único inconveniente que existe neste método é que, abordando o exame de uma única destas fases, o sr. Proudhon não possa explicá-la sem recorrer a todas as outras relações da sociedade, relações que, contudo, ele ainda não fez engendrar pelo seu movimento dialético. Quando, em seguida, o sr. Proudhon, por meio da razão pura, passa à criação das outras fases, ele procede como se tratasse de crianças recém-nascidas, esquecendo-se de que são da mesma idade que a primeira.

Assim, para chegar à constituição do valor, que para ele é a base de todas as evoluções econômicas, não podia dispensar a divisão do trabalho, a concorrência, etc. Contudo, na série, no entendimento do sr. Proudhon, na sucessão lógica, estas relações ainda não existiam.

Quando se constrói com as categorias da economia política o edifício de um sistema ideológico, os membros do sistema social são deslocados. Os diferentes membros da sociedade são transformados em outras tantas sociedades à parte, que chegam umas depois das outras. Como, com efeito, poderia a fórmula lógica do movimento, da sucessão, do tempo, explicar sozinha o corpo da sociedade, no qual todas as relações coexistem simultaneamente e se sustentam umas às outras?

Quarta observação

Vejamos agora quais as modificações que o sr. Proudhon introduz na dialética de Hegel ao aplicá-la à economia política.

Para o sr. Proudhon, toda categoria econômica tem dois lados, um bom e outro mau. Ele considera as categorias como o pequeno-burguês considera os grandes homens da história: Napoleão é um grande homem, ele fez muita cousa boa, mas também fez muita cousa má.

O lado bom e o lado mau, a vantagem e a desvantagem, considerados em conjunto, formam para o sr. Proudhon a contradição em cada categoria econômica.

Problema a resolver: conservar o lado bom, eliminando o mau.

A escravidão é uma categoria econômica como qualquer outra. Logo, ela tem também seus dois lados. Deixemos o lado mau e falemos do lado bom da escravidão: que fique bem entendido que se trata apenas da escravidão direta, da escravidão dos negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte.

A escravidão direta é o "pivot" da indústria burguesa, do mesmo modo como as máquinas, o crédito, etc. Sem a escravidão, não teríamos a indústria moderna. Foi a escravidão que deu às colônias o seu valor, foram as colônias que criaram o comércio mundial, é o comércio mundial que é a condição da grande indústria. Assim, a escravidão é uma categoria econômica da maior importância.

Sem a escravidão, a América do Norte, país dos mais progressistas, transformar-se-ia num país patriarcal. Tirai a América do Norte do mapa do mundo, e tereis a anarquia, a decadência completa do comércio e da civilização modernos. Fazei desaparecer a escravidão, e tereis anulado a América do mapa dos povos.

E também a escravidão, porque é uma categoria econômica, sempre esteve nas instituições dos povos. Os povos modernos conseguiram apenas disfarçar a escravidão em seu próprio país, tendo-a imposto sem disfarce ao novo mundo.

Como fará o sr. Proudhon para salvar a escravidão? Ele apresentará o problema , conservar o lado bom desta categoria econômica, e eliminar o mau.

Hegel não tem problemas a colocar. Não tem senão a dialética. O sr. Proudhon da dialética de Hegel tem apenas a linguagem. O movimento dialético, para ele, é a distinção dogmática do bom e do mau.

Tomemos, por um momento, o próprio sr. Proudhon como categoria. Examinemos seu lado bom e seu lado mau, suas vantagens e suas desvantagens.

Se ele tem sobre Hegel a vantagem de colocar problemas, os quais trata de resolver para o maior bem da humanidade, tem o inconveniente de ser atacado de esterilidade quando se trata de engendrar pelo trabalho de elaboração dialética uma categoria nova. O que constitui o movimento dialético é a coexistência dos dois lados contraditórios, a sua luta e a sua fusão numa categoria nova. Basta colocar o problema de eliminar o lado mau para se pôr termo ao movimento dialético. Não é a categoria que se põe e se opõe a ela mesma por sua natureza contraditória, é o sr. Proudhon que se emociona, se debate e se agita entre os dois lados da categoria.

Surpreendido assim num impasse, de onde é difícil de sair pelos meios legais, o sr. Proudhon dá um verdadeiro salto que o transporta de uma só vez a uma categoria nova. É então que se desvenda diante de seus olhos espantados a série no entendimento.

Ele toma a primeira categoria que aparece, e atribui-lhe arbitrariamente a qualidade de remediar os inconvenientes da categoria que se trata de depurar. Assim, os impostos corrigem, a dar-se crédito ao sr. Proudhon, os inconvenientes do monopólio; a balança do comércio, os inconvenientes dos impostos; a propriedade territorial, os inconvenientes do crédito.

Tomando assim sucessivamente as categorias econômicas uma a uma, e fazendo desta o antídoto daquela, o sr. Proudhon chega a fazer, com esta mistura de contradições e de antídotos para as contradições, dois volumes de contradições, que intitulou com propriedade: Le système des contradictions économiques.

Quinta observação

"Na razão absoluta todas estas ideias... são igualmente simples e gerais... Com efeito, não chegamos à ciência senão por uma espécie de superposição de nossas ideias. Mas a verdade em si é independente de suas figuras dialéticas e livre das combinações de nosso espírito" (Proudhon, t. II, pág. 97).

Eis como, de repente, por uma espécie de reviramento de que conhecemos agora o segredo, a metafísica da economia política tornou-se uma ilusão! Jamais o sr. Proudhon acertou tanto. Certamente, desde que o processo do movimento dialético se reduz ao simples processo de opor o bom ao mau, de colocar problemas tendendo a eliminar o mau e de apresentar uma categoria como antídoto para outra, as categorias não têm mais espontaneidade; a ideia "não funciona mais"; ela não tem mais vida em si mesma. Ela não se apresenta nem se decompõe mais em categorias. A sucessão das categorias tornou-se uma espécie de superposição. A dialética não é mais o movimento da razão absoluta. Não há mais dialética, há quando muito moral inteiramente pura.

Quando o sr. Proudhon falava da série no entendimento, da sucessão lógica das categorias, declarava positivamente que não queria apresentar a história segundo a ordem do tempo, ou seja, segundo o sr. Proudhon, a sucessão histórica na qual as categorias se manifestaram. Tudo se passava então para ele no éter puro da razão. Tudo devia decorrer deste éter por meio da dialética. Agora que se trata de pôr em prática esta dialética, a razão deixa de assisti-lo. A dialética do sr. Proudhon não corresponde à dialética de Hegel, e eis que o sr. Proudhon é levado a dizer que a ordem na qual apresenta as categorias econômicas não é mais a ordem na qual elas engendram umas as outras. As evoluções econômicas não são mais as evoluções da própria razão.

Que é, então, que o sr. Proudhon nos apresenta? A história real, ou seja, segundo o entendimento do sr. Proudhon, a sucessão segundo a qual as categorias se manifestaram na ordem dos tempos? Não. A história tal como se passa na própria ideia? Muito menos ainda. Desse modo, nem a história profana das categorias, nem sua história sagrada! Que história nos dá ele enfim? A história de suas contradições. Vejamos como elas marcham e como arrastam o sr. Proudhon.

Antes de abordar este exame, que dá lugar à sexta observação importante, temos ainda outro reparo de importância a fazer.

Admitamos com o sr. Proudhon que a história real, a história segundo a ordem dos tempos, é a sucessão histórica na qual as ideias, as categorias, os princípios se manifestaram.

Cada princípio teve seu século para se manifestar: o princípio de autoridade, por exemplo, teve o século XI, assim como o princípio de individualismo teve o século XVIII. De consequência em consequência, era o século que pertencia ao princípio, e não o princípio que pertencia ao século. Em outros termos, era o princípio que fazia a história, não era a história que fazia o princípio. Quando, em seguida, para salvar tanto os princípios quanto a história, se pergunta porque tal princípio se manifestou no século XI ou no século XVIII, de preferência a qualquer outro século, somos necessariamente levados a examinar de modo minucioso como eram os homens do século XI, como eram os homens do século XVIII, quais eram suas necessidades respectivas, suas forças produtivas, seu modo de produção, as matérias-primas de sua produção, enfim, quais eram as relações de homem a homem que resultavam de todas estas condições de existência. Aprofundar todas estas questões, não é fazer a história real, profana dos homens em cada século, apresentar estes homens ao mesmo tempo como autores e atores de seu próprio drama? Mas ao apresentardes os homens como atores e autores de sua própria história, tereis chegado, por um desvio, ao verdadeiro ponto de partida, pois que abandonastes os princípios eternos de que a princípio faláveis.

O sr. Proudhon não chegou a avançar muito no atalho que o ideólogo toma para alcançar a grande estrada da história.

Sexta observação

Tomemos com o sr. Proudhon o atalho a que aludimos.

Admitamos que as relações econômicas, consideradas como leis imutáveis, princípios eternos, categorias ideais, sejam anteriores aos homens ativos e atuantes; admitamos ainda que estas leis, estes princípios, estas categorias tivessem, desde a origem dos tempos, dormitado "na razão impessoal da humanidade". Já vimos que com todas estas eternidades imutáveis e imóveis não há mais história há quando muito história na ideia, ou seja a história que se reflete no movimento dialético da razão pura. O sr. Proudhon, dizendo que no movimento dialético as ideias não se diferenciam mais, anulou tanto a sombra do movimento como o movimento das sombras, por meio dos quais se poderia, ainda criar, quando muito, um simulacro de história. Em vez disso, ele imputa à história sua própria impotência, culpa tudo, até a língua francesa.

"Não é exato dizer, afirma o sr. Proudhon filósofo, que algo ocorre, algo se produz: na civilização como no universo, tudo existe, tudo age, em todos os tempos. O mesmo se passa com toda a economia social " (Tomo II, pág. 102).

Tal é a força produtora das contradições que funcionam e que fazem funcionar o sr. Proudhon que, querendo assim explicar a história, é obrigado a negá-la; querendo assim explicar o aparecimento sucessivo das relações sociais, nega que algo possa ocorrer; e querendo explicar a produção com todas suas fases, contesta que algo se possa produzir.

Assim, para o sr. Proudhon não há mais história, não há mais sucessão de ideias, e contudo seu livro subsiste sempre;: e este livro é precisamente, segundo a sua própria expressão, a história segundo a sucessão das ideias. Como encontrar uma fórmula, pois o sr. Proudhon é o homem das fórmulas, que o auxilie a transpor, de umsalto, todas as suas contradições?

Para isso ele inventou uma razão nova, que não é nem a razão absoluta, pura e virgem, nem a razão comum dos homens ativos e atuantes nos diferentes séculos, mas que é uma razão inteiramente à parte, a razão da sociedade pessoa, da humanidade como sujeito que, através da pena do sr. Proudhon, aparece também, às vezes, como gênio social, razão geral e, por último, como razão humana. Esta razão, ataviada de tantos nomes, faz-se contudo reconhecer a cada instante como a razão individual do sr. Proudhon, com o seu lado bom e o seu lado mau, seus antídotos e seus problemas.

"A razão não cria a verdade" — oculta nas profundezas da razão absoluta, eterna. Ela não pode senão desvendá-la. Mas as verdades que desvendou até o presente são incompletas, insuficientes e portanto contraditórias. Logo, as categorias econômicas, sendo elas mesmas verdades descobertas, reveladas pela razão humana, pelo gênio social, são igualmente incompletas e encerram o germe da contradição. Antes do sr. Proudhon, o gênio social não vira senão os elementos antagônicos, e não a fórmula sintética, ambos ocultos simultaneamente na razão absoluta. As relações econômicas, não fazendo senão realizar sobre a terra estas verdades insuficientes, estas categorias incompletas, estas noções contraditórias são, pois, contraditórias em si mesma, e apresentam os dois lados, um dos quais é bom, e o outro mau.

Encontrar a verdade completa, a noção em toda a sua plenitude, a fórmula sintética, que anule a economia, eis o problema do gênio social. Eis ainda porque, na ilusão do sr. Proudhon, o mesmo gênio social foi levado de uma categoria a outra, sem ter ainda conseguido, com toda a bateria de suas categorias, tirar de Deus, da razão humana, uma fórmula sintética.

"Em primeiro lugar, a sociedade (o gênio social), coloca um primeiro fato, emite uma hipótese... Verdadeira antinomia, cujos resultados antagônicos se desenrolam na economia social da mesma maneira como as consequências teriam podido ser deduzidas no espírito; de modo que o movimento industrial, seguindo em tudo a dedução das ideias, divide-se numa dupla corrente, uma de efeitos úteis, outra de resultados subversivos para constituir harmonicamente este princípio de dupla face e resolver esta antinomia, a sociedade fez surgir uma segunda, a qual será logo seguida por uma terceira, e tal será a marcha do gênio social, até que, tendo esgotado todas as suas contradições — suponho, mas isto não está provado, que a contradição na humanidade tenha um termo — ele volte de um salto a todas as suas posições anteriores e numa única fórmula resolva todos os seus problemas" (Tomo I, pág. 35).

Do mesmo modo como anteriormente a antítese se transformou em antídoto, a tese torna-se agora hipótese. Esta mudança de termos nada mais encerra que nos possa espantar, da parte do sr. Proudhon. A razão humana, que é nada menos que pura, não tendo uma visão completa das cousas, encontra a cada passo novos problemas a resolver. Cada nova tese que descobre na razão absoluta e que é a negação da primeira tese, torna-se para ela uma síntese, que aceita muito ingenuamente como a solução do problema em questão. É assim que esta razão se debate em contradições sempre novas, até que, não encontrando mais contradições, ela percebe que todas suas teses e sínteses não são senão hipóteses contraditórias. Na sua perplexidade, "a razão humana, o gênio social, volta de um salto a todas as suas posições anteriores e, numa só fórmula, resolve todos os seus problemas." Esta fórmula única, digamo-lo de passagem, constitui a verdadeira descoberta do sr. Proudhon. É o valor constituído.

Não se fazem hipóteses senão quando se tem em vista um fim qualquer. O fim que se propunha em primeiro lugar o gênio social que fala pela boca do sr. Proudhon era eliminar o que há de mau em cada categoria econômica, para não ficar senão o que nela existe de bom. Para ele o bom, o bem supremo, o verdadeiro fim prático, é a igualdade. E porque o gênio social se propunha a igualdade de preferência à desigualdade, à fraternidade, ao catolicismo, ou a qualquer outro princípio? Porque a "humanidade não realizou sucessivamente tantas hipóteses particulares senão tendo em vista uma hipótese superior", que é precisamente a igualdade. Em outras palavras: porque a igualdade é o ideal do sr. Proudhon. Ele imagina que a divisão do trabalho, o crédito e a fábrica, que todas as relações econômicas não foram inventadas senão em benefício da igualdade, e, não obstante tudo isso sempre acabou voltando-se contra ela. Do fato de a história e de a ficção do sr. Proudhon se contradizerem a cada passo, este último conclui que há contradição. Se há contradição, esta existe apenas entre sua ideia fixa e o movimento real.

Doravante o lado bom de uma relação econômica é aquele que afirma a igualdade; o lado mau é aquele que a nega e afirma a desigualdade. Toda nova categoria é uma hipótese do gênio social para eliminar a desigualdade engendrada pela hipótese precedente. Em resumo, a igualdade é a intenção primitiva, a tendência mística, o fim providencial que o gênio social tem constantemente diante dos olhos, ao andar em volta do círculo das contradições econômicas. Também é a Providência a locomotiva que faz andar toda bagagem econômica do sr. Proudhon melhor do que sua razão pura e evaporada. Ele consagrou à Providência um capítulo inteira, que se segue ao dos impostos.

Providência, fim providencial, eis as grandes palavras hoje utilizadas para explicar a marcha da história. De fato estas palavras não explicam nada. Trata-se quando muito de uma forma declamatória, de uma maneira como qualquer outra de parafrasear os fatos.

O que há de fato é que na Escócia as propriedades territoriais alcançaram um valor novo com o desenvolvimento da indústria inglesa. Esta indústria abriu novos escoadouros à lã. Para produzir lã em grande escala era preciso transformar os campos de lavoura em pastagens. Para efetuar esta transformação era preciso concentrar as propriedades. Para concentrar as propriedades, era preciso abolir os pequenos domínios feudais, expulsar milhares de rendeiros do lugar onde haviam nascido, e colocar em seu lugar uns poucos pastores guardando milhões de carneiros. Assim, por transformações sucessivas, a propriedade fundiária teve como resultado na Escócia a expulsão dos homens pelos carneiros. Dizei agora que o fim providencial da instituição da propriedade fundiária na Escócia tinha sido o de fazer expulsar os homens pelos carneiros, e tereis feito história providencial.

Certamente, a tendência à igualdade pertence ao nosso século. Dizer agora que todos os séculos anteriores, com necessidades, meios de produção, etc., inteiramente diferentes, trabalhavam providencialmente para a realização da igualdade, é, antes de tudo, colocar os meios e os homens de nosso século no lugar dos homens e meios dos séculos anteriores, e desconhecer o movimento histórico através do qual as gerações sucessivas transformavam os resultados adquiridos pelas gerações que as precediam. Os economistas sabem muito bem que a mesma cousa que era num caso a matéria trabalhada não é em outro senão a matéria-prima da nova produção.

Suponhamos, como faz o sr. Proudhon, que o gênio social tenha produzido, ou antes improvisado, os senhores feudais com o fim providencial de transformar os colonos em trabalhadores responsáveis e igualitários: e teríamos feito uma substituição de fins e de pessoas inteiramente digna desta Providência que na Escócia instituía a propriedade territorial, para se proporcionar o prazer perverso de fazer expulsar os homens pelos carneiros.

Entretanto, como o sr. Proudhon demonstra um interesse tão terno pela Providência, nós lhe lembramos a Histoire de l’Économie Politique de M. de Villeneuve-Bargemont que, também ele, corre atrás de um fim providencial. Este fim, não é mais a igualdade, é o catolicismo.

Sétima e última observação

Os economistas têm uma maneira singular de proceder. Não existe para eles senão duas espécies de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições da feudalidade são as instituições artificiais, as da burguesia são as instituições naturais. Eles se parecem nisto com os teólogos que, eles também, estabelecem duas espécies de religião. Toda religião que não é a sua é uma invenção dos homens, enquanto que a sua própria religião é uma emanação de Deus. Dizendo que as relações atuais — as relações da produção burguesa — são naturais, os economistas dão a entender que se trata de relações nas quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas de acordo com as leis da natureza. Logo, estas relações são elas mesmas leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, já existiu história, mas não existe mais. Existiu história, pois que existiram instituições de feudalidade, e que nestas instituições de feudalidade se encontram relações de produção inteiramente diferentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e portanto eternas.

A feudalidade também tinha o seu proletariado — a servidão, que encerrava todos os germes da burguesia. A produção feudal tinha também dois elementos antagônicos, que se designam igualmente pelo nome de lado bom e lado mau da feudalidade, sem se considerar que é sempre o lado mau que acaba levando vantagem sobre o bom. É o lado mau que produz o movimento que faz a história, constituindo a luta. Se, na época do reinado da feudalidade, os economistas, entusiasmados com as virtudes cavalheirescas, com a boa harmonia entre os direitos e os deveres, com a vida patriarcal das cidades, com o estado de prosperidade da indústria doméstica nos campos, com o desenvolvimento da indústria organizada por corporações, mestrados e juízos de ofício, enfim, com tudo o que constitui o lado bonito da feudalidade, se tivessem proposto o problema de eliminar tudo o que obscurece este quadro — servidão, privilégios, anarquia — que teria acontecido? Teriam sido destruídos todos os elementos que constituem a luta, e sufocado em seu germe o desenvolvimento da burguesia. Teria sido colocado o problema absurdo de eliminar a história.

Quando a burguesia venceu, não se cuidou mais nem do lado bom nem do lado mau da feudalidade. As forças produtivas que haviam sido desenvolvidas por ela, lhe foram incorporadas. Todas as antigas formas econômicas, as relações civis que lhes correspondiam, o estado político que era a expressão oficial da antiga sociedade civil, foram rompidos.

Assim, para bem julgar a produção feudal, é preciso considerá-la como um modo de produção fundado sobre o antagonismo. É preciso mostrar como a riqueza se produzia dentro deste antagonismo, como as forças produtivas se desenvolviam, ao mesmo tempo que o antagonismo das classes, como uma das classes o lado mau — o inconveniente da sociedade — ia sempre crescendo, até que as condições materiais de sua emancipação tivessem chegado ao ponto de maturidade. Não será bastante dizer que o modo de produção, as relações nas quais as forças produtivas se desenvolvem nada têm de leis eternas, mas que correspondem a um desenvolvimento determinado dos homens e de suas forças produtivas, e que uma mudança sobrevinda nas forças produtivas dos homens determina necessariamente uma mudança nas suas relações de produção? Como o que importa antes de tudo é não serem os homens privados dos frutos da civilização, das forças produtivas adquiridas, torna-se necessário romper as formas tradicionais nas quais elas foram produzidas. A partir desse momento, a classe revolucionária torna-se conservadora.

A burguesia começa com um proletariado que é ele próprio um resto do proletariado dos tempos feudais. No curso de seu desenvolvimento histórico, a burguesia desenvolve necessariamente seu caráter antagônico, que em seu início se apresenta mais ou menos disfarçado, não existindo senão em estado latente. À medida que a burguesia se desenvolve, desenvolve-se no seu seio um novo proletariado, um proletariado moderno: desenvolve-se uma luta entre a classe proletária e a classe burguesa, luta que, antes de ser sentida pelos dois lados, percebida, apreciada, compreendida, confessada e proclamada em voz alta, não se manifesta a princípio senão por conflitos parciais e momentâneos, por fatos subversivos. De outro lado, se todos os membros da burguesia moderna têm o mesmo interesse enquanto formam uma classe colocada diante de outra classe, eles têm interesses opostos, antagônicos, enquanto colocados uns diante dos outros. Esta oposição de interesses decorre das condições econômicas de sua vida burguesa. Torna-se assim cada dia mais claro que as relações de produção nas quais se move a burguesia não têm um caráter uno, um caráter simples, mas um caráter de duplicidade; que, nas mesmas relações nas quais se produz a riqueza, a miséria também se produz; que, nas mesmas relações nas quais há desenvolvimento das forças produtivas, há uma força produtora de repressão; que estas relações não produzem a riqueza burguesa, ou seja a riqueza da classe burguesa, senão destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes desta classe e produzindo um proletariado sempre crescente.

Quanto mais claro se torna este caráter antagônico, mais os economistas, os representantes científicos da produção burguesa se atrapalham com sua própria teoria; e diferentes escolas se formam.

Temos os economistas fatalistas, que na sua teoria se mostram tão indiferentes ante o que chamam os inconvenientes da produção burguesa, quanto o são os próprios burgueses na prática ante os sofrimentos dos proletários que os ajudam a adquirir as riquezas. Nesta escola fatalista há clássicos e românticos. Os clássicos, como Adam Smith e Ricardo, representam uma burguesia que, lutando ainda com os restos da sociedade feudal, trabalha apenas para depurar as relações econômicas das manchas feudais, para aumentar as forças produtivas e para dar à indústria e ao comércio um novo surto. O proletariado participando desta luta, absorvido neste trabalho febril, tem apenas sofrimentos passageiros, acidentais, e ele mesmo os considera como tais. Os economistas como Adam Smith e Ricardo, que são os historiadores desta época, não têm outra missão senão demonstrar como a riqueza é adquirida nas relações da produção burguesa, formular estas relações em categorias, em leis, e demonstrar o quanto estas leis, estas categorias são, para a produção das riquezas, superiores às leis e às categorias da sociedade feudal. A miséria não é a seus olhos senão a dor que acompanha todo nascimento, na natureza do mesmo modo como na indústria.

Os românticos pertencem à nossa época, na qual a burguesia está em oposição direta ao proletariado, na qual a miséria se engendra numa abundância tão grande quanto a riqueza. Os economistas apresentam-se então com ares de fatalistas enfastiados que, do alto de sua posição, atiram um soberbo olhar de desdém sobre os homens locomotivas que fabricam as riquezas. Copiam todos os desenvolvimentos conseguidos pelos seus predecessores, e à indiferença que nestes era ingenuidade torna-se neles coquetismo.

Segue-se a escola humanitária, que se preocupa com o lado mau das relações e a produção atual. Essa escola procura, por desencargo de consciência, paliar por pouco que seja os contrastes reais; deplora sinceramente o infortúnio do proletariado, a concorrência desenfreada dos burgueses entre eles mesmos; aconselha os operários a serem sóbrios, a trabalharem conscienciosamente e a fazerem poucos filhos; recomenda aos burgueses se entregarem à produção com um ardor refletido. Toda a teoria desta escola repousa sobre distinções intermináveis entre a teoria e a prática, entre os princípios e os resultados, entre a ideia e a aplicação, entre o conteúdo e a forma, entre a essência e a realidade, entre o direito e o fato, entre o lado bom e o lado mau.

A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Ela nega a necessidade do antagonismo; quer transformar todos os homens em burgueses; quer realizar a teoria na medida em que esta se distingue da prática e não encerra antagonismo. Não é preciso dizer que, na teoria, é fácil fazer abstração das contradições que se encontram a cada instante na realidade. Esta teoria tornar-se-ia então a realidade idealizada. Os filantropos querem, pois, conservar as categorias que exprimem as relações burguesas, sem o antagonismo que as constitui e que não pode ser separado delas. Eles imaginam combater seriamente a prática burguesa, e são mais burgueses que os outros.

Do mesmo modo como os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária. Enquanto o proletariado não se torna bastante desenvolvido para se constituir em classe, enquanto por consequência a própria luta do proletariado com a burguesia não tem ainda um caráter político e as forças produtivas não são ainda bastante desenvolvidas no seio da própria burguesia, para deixarem entrever as condições materiais necessárias à libertação do proletariado e à formação de uma sociedade nova, estes teóricos não são senão utopistas que, para obviar as necessidades das classes oprimidas, improvisam sistemas e põem-se à procura de uma ciência regeneradora. Mas, à medida que a história marcha e que com ela a luta do proletariado se desenha mais nitidamente, eles não têm mais necessidade de procurar a ciência no seu espírito, não têm senão de se inteirar daquilo que se passa diante de seus olhos e de se tornar o órgão disso. Enquanto procuram a ciência e apenas fazem sistemas, enquanto estão no começo da luta, não veem na miséria senão a miséria, sem ver nela o lado revolucionário, subversivo, que derrubará a velha sociedade. Desde este momento, a ciência produzida pelo movimento histórico, e nele se associando com pleno conhecimento de causa, cessa de ser doutrinária, e se torna revolucionária.

Voltemos ao sr. Proudhon.

Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau: é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom, ele o vê exposto pelos economistas; o lado mau, ele o vê denunciado pelos socialistas. Toma emprestado aos economistas a necessidade das relações eternas; toma emprestado aos socialistas a ilusão de não ver na miséria senão a miséria. Está de acordo com uns e outros querendo se conformar com a autoridade da ciência. A ciência, para ele, reduz-se às diminutas proporções de uma fórmula científica. É assim que o sr. Proudhon se gaba de ter feito a crítica da economia política e do comunismo: ele está abaixo de uma e de outra. Abaixo dos economistas, porque como filósofo, que tem à mão uma fórmula mágica, acreditou poder dispensar-se de entrar em pormenores puramente econômicos; abaixo dos socialistas, porque não tem nem coragem bastante nem luzes bastantes para se elevar, não fosse ainda que especulativamente, acima do horizonte burguês.

Ele pretende ser a síntese, e é um erro composto.

Ele quer planar como homem de ciência acima dos burgueses e dos proletários; e não é senão o pequeno-burguês, oscilando constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo.

A divisão do trabalho e as máquinas

A divisão do trabalho abre, segundo o sr. Proudhon, a série das evoluções econômicas.

Lado bom da divisão do trabalho "Considerada em sua essência, a divisão do trabalho é o modo segundo o qual se realiza a igualdade das condições e das inteligências" (T. I, pág. 93).
Lado mau da divisão do trabalho "A divisão do trabalho tornou-se para nós um instrumento de miséria" (T. I, pág. 99).
"O trabalho dividindo-se segundo a lei que lhe é própria, e que é a primeira condição de sua fecundidade, chega à negação de fins e se destrói a si mesmo" (T. I, pág. 94).
Problema a resolver Encontrar "a recomposição que anule os inconvenientes da divisão, mas que conserve ao mesmo tempo seus efeitos úteis" (T. I, pág. 97).

A divisão do trabalho é, segundo o sr. Proudhon, uma lei eterna, uma categoria simples e abstrata. É assim também preciso que a abstração, a ideia, a palavra lhe bastem para explicar a divisão do trabalho nas diferentes épocas da história. As castas, as corporações, o regime manufatureiro, a grande indústria devem ser explicados por esta única palavra dividir. Estudai bem, em primeiro lugar, o sentido de dividir, e não tereis a necessidade de estudar as numerosas influências que dão à divisão do trabalho um caráter determinado em cada época.

Certamente, reduzir as coisas às categorias do sr. Proudhon seria torná-las simples demais. A história não procede tão categoricamente. Foram necessários três séculos inteiros, na Alemanha, para que se estabelecesse a primeira grande divisão do trabalho, que é a separação entre as cidades e o campo. À medida que se modificava esta única relação entre a cidade e o campo, a sociedade inteira se modificava. Basta considerar esta única face da divisão do trabalho para terdes as repúblicas antigas ou a feudalidade cristã; a antiga Inglaterra com seus barões, ou a Inglaterra moderna com seus senhores do algodão (cotton-lords). Nos séculos XIV e XV, quando ainda não havia colônias e a América ainda não existia para a Europa, quando a Ásia não existia senão por intermédio de Constantinopla e o Mediterrâneo era o centro da atividade comercial, a divisão do trabalho tinha uma forma muito diferente, um aspecto muito diferente que o do século XVII, quando os espanhóis, os portugueses, os ingleses e os franceses tinham colônias estabelecidas em todas as partes do mundo. A extensão do mercado e sua fisionomia dão à divisão do trabalho nas diversas épocas uma fisionomia, um caráter que seria difícil deduzir apenas da palavra dividir, da ideia, da categoria.

"Todos os economistas — diz o sr. Proudhon — depois de Adam Smith, assinalaram as vantagens e os inconvenientes da lei de divisão, mas insistindo muito mais sobre as primeiras do que sobre os segundos, porque isso servia melhor ao seu otimismo, e sem que nenhum deles tivesse jamais perguntado o que podiam ser os inconvenientes de uma lei... Como poderá o mesmo princípio, acompanhado rigorosamente em suas consequências, conduzir a efeitos diametralmente opostos? Nenhum economista, nem antes nem depois de Smith, chegou sequer a perceber que havia aí um problema a esclarecer. Say chega até ao ponto de reconhecer que na divisão do trabalho a mesma causa que produz o bem engendra o mal."

A. Smith vai mais longe do que pensa o sr. Proudhon. Ele viu muito bem que,

"na realidade a diferença dos talentos naturais entre os indivíduos é bem menor do que o supomos. Estas disposições tão diferentes, que parecem distinguir os homens das diversas profissões, quando chegam à idade madura, não são tanto a causa quanto o efeito da divisão do trabalho".

A princípio, um carregador difere menos de um filósofo do que uma manhã de um lebréu. Foi a divisão do trabalho que colocou um abismo entre uma e outra cousa. Tudo isso não impede que o sr. Proudhon diga, noutro lugar, que Adam Smith nem mesmo suspeitava dos inconvenientes que produz a divisão do trabalho. É isso que ainda o faz dizer que J. B. Say foi o primeiro a reconhecer

"que na divisão do trabalho a mesma causa que produz o bem engendra o mal."

Mas ouçamos Lemontey: Suum cuique.

"O sr. J. B. Say deu-me a honra de adotar em seu excelente tratado de economia política, o princípio que enunciei no trecho sobre a influência moral da divisão do trabalho. O título um tanto frívolo de meu livro não lhe permitiu sem dúvida citar-me. Não posso atribuir senão a esse motivo o silêncio de um escritor com recursos suficientemente abundantes para não confessar um empréstimo tão modesto." (Lemontey, Oeuvres complètes, t. I, pág. 245, Paris, 1840).

Façamos-lhe esta justiça: Lemontey expôs de modo espiritual as consequências penosas da divisão do trabalho tal como existe nos nossos dias, e o sr. Proudhon nada encontrou para acrescentar a tal exposição. Entretanto, pois que, por culpa do sr. Proudhon, estamos agora empenhados nesta questão de prioridade, digamos ainda, de passagem, que, muito tempo antes do sr. Lemontey, e dezessete anos antes de Adam Smith, A. Ferguson (de quem Smith fora aluno) expôs nitidamente tal cousa num capítulo que trata especialmente da divisão do trabalho.

"Seria mesmo o caso de se duvidar se a capacidade geral de uma nação cresce em proporção do progresso das artes. Muitas artes mecânicas... triunfam perfeitamente quando destituídas de modo completo do auxílio da razão e do sentimento, e a ignorância é a mãe da indústria tanto quanto da superstição. A reflexão e a imaginação estão sujeitas a se extraviar: mas o hábito de mover o pé ou a mão não depende nem de uma nem de outra cousa. Assim, poder-se-ia dizer que a perfeição, relativamente às manufaturas, consiste em poder se passar do espírito, de maneira que sem esforço intelectual a fábrica possa ser considerada como uma máquina cujas peças são os homens... O oficial general pode ser muito hábil na arte da guerra, enquanto que todo o mérito do soldado se limita a executar alguns movimentos com o pé ou com a mão. Um pode ter ganho o que o outro perdeu... Numa época em que tudo está separado, a arte de pensar pode ela própria constituir uma ocupação à parte " (A. Ferguson, Essai sur lhistoire de la société civile, Paris, 1783).

Para terminar a exposição literária, negamos formalmente que

"todos os economistas tenham insistido muito mais sobre as vantagens do que sobre as desvantagens da divisão do trabalho."

Basta citar o nome de Sismondi.

Assim, no que diz respeito às vantagens da divisão do trabalho, o sr. Proudhon não tinha nenhuma outra cousa a fazer senão parafrasear mais ou menos pomposamente as frases gerais que toda gente conhece.

Vejamos agora como ele faz derivar da divisão do trabalho considerado como lei geral, como categoria, como pensamento, as desvantagens que a acompanham. Como pode acontecer que esta categoria, esta lei, implique a repartição desigual do trabalho com prejuízo do sistema igualitário do sr. Proudhon?

"Nesta hora solene da divisão do trabalho, o vento das tempestades começa a soprar sobre a humanidade. O progresso não se verifica para todos de uma maneira igual e uniforme;... ele começa por se apoderar de um pequeno número de privilegiados... É esta preferência de pessoas da parte do progresso que fez acreditar durante tanto tempo na desigualdade natural e providencial das condições, e que gerou as castas e constituiu hierarquicamente todas as sociedades" (Proudhon, t. I, pág. 97).

A divisão do trabalho fez as castas. Ora, as castas são os inconvenientes da divisão do trabalho; logo, foi a divisão do trabalho que engendrou os inconvenientes. Quod erat demonstrandum. Desejar-se-á ir mais longe para se saber o que levou a divisão do trabalho a dar lugar às castas, às constituições hierárquicas e aos privilegiados? O sr. Proudhon dir-vos-á: O progresso. E que é que fez o progresso? O limite. O limite para o sr. Proudhon, é a aceitação de pessoas da parte do progresso. Depois da filosofia vem a história. Não se trata mais nem da história descritiva, nem da história dialética, mas da história comparada. O sr. Proudhon estabelece um paralelo entre o operário impressor atual e o operário impressor da Idade Média, entre o operário do Creusot e o ferrador das aldeias, entre o homem de letras de nossos dias e o homem de letras da Idade Média, e faz pender a balança do lado daqueles que pertencem mais ou menos à divisão do trabalho tal como foi constituída ou transmitida pela Idade Média. Ele opõe a divisão do trabalho de uma época histórica à divisão do trabalho de outra época histórica. Era isso que o sr. Proudhon tinha a demonstrar? Não. Ele tinha de nos demonstrar os inconvenientes da divisão do trabalho em geral, da divisão do trabalho como categoria. Para que servirá, aliás, insistir sobre esta parte da obra do sr. Proudhon, se o vemos, um pouco mais adiante, retratar-se ele próprio, formalmente, de todos estes pretensos desenvolvimentos?

"O primeiro efeito do trabalho realizado por parcelas, continua o sr. Proudhon, depois da depravação da alma, é o prolongamento do dia de serviço, que cresce na razão inversa da soma de inteligência despendida... Mas como a duração do dia de trabalho não pode ir além de dezesseis a dezoito horas, e, desde que a compensação não pode provir do tempo, ela será tirada do preço, e o salário diminuirá... O que é certo, e que para nós é a única cousa a mostrar, é que a consciência universal não atribui um mesmo preço ao trabalho de um contra-mestre e à atividade de um servente. Há, pois, necessidade de redução relativamente ao preço do dia: de modo que o trabalhador, depois de ter sido afligido em sua alma por uma função degradante, não pode deixar de ser atingido também no corpo pela modicidade da recompensa."

Deixamos de lado o valor lógico destes silogismos, que Kant chamaria de paralogismos que manquejam.

Eis a substância:

A divisão do trabalho reduz o operário a uma função degradante; a esta função degradante corresponde uma alma depravada; à depravação da alma convém uma redução sempre crescente do salário. E para provar que esta redução dos salários convém a uma alma depravada, o sr. Proudhon diz, por desencargo de consciência, que é a consciência universal que assim o quer. A alma do sr. Proudhon estará incluída na consciência universal?

As máquinas são, para o sr. Proudhon, "a antítese lógica da divisão do trabalho", e, com o apoio da dialética, ele começa por transformar as máquinas em oficina.

Depois de haver suposto a oficina moderna, para fazer decorrer a miséria da divisão do trabalho, o sr. Proudhon supõe a miséria engendrada pela divisão do trabalho, para chegar à oficina e para poder apresentá-la como a negação dialética desta miséria. Depois de ter atingido o trabalhador no moral por uma função degradante, no físico pela modicidade do salário; depois de ter posto o operário na dependência do contra-mestre, e rebaixado seu trabalho até à atividade de servente, ele recorre de novo à fábrica e às máquinas para degradar o trabalhador "dando-lhe um patrão", e acaba seu aviltamento fazendo-o "decair da condição de artesão à de sedente". A bela dialética! E ainda se ficasse nisso; mas não, ele precisa de uma nova história da divisão do trabalho, não mais para a derivação das contradições, mas para reconstruir a oficina à sua maneira. Para chegar a esse fim, ele tem necessidade de esquecer tudo aquilo que disse sobre a divisão.

O trabalho organiza-se, divide-se de acordo com os instrumentos de que dispõe. O moinho de mão supõe uma divisão do trabalho diferente da do moinho a vapor. É, pois, ir de encontro à história querer começar pela divisão do trabalho em geral, para chegar em seguida a um instrumento específico de produção, as máquinas.

As máquinas não são uma categoria econômica, do mesmo modo como não poderia sê-lo o boi que puxa a charrua. As máquinas não são senão uma força produtiva. A oficina moderna, que se baseia no emprego das máquinas, é uma relação social de produção, uma categoria econômica.

Vejamos agora como as cousas se passam na brilhante imaginação do sr. Proudhon.

"Na sociedade, o aparecimento constante das máquinas é a antítese, a fórmula inversa do trabalho: é o protesto do gênio industrial contra o trabalho parcelário e homicida. Que é, com efeito, uma máquina? Uma maneira de reunir diversões partículas de trabalho, que a divisão tinha separado. Toda máquina pode ser definida como um resumo de diversas operações. Assim, pela máquina, haverá restauração de trabalhador... As máquinas, colocando-se na economia política contraditoriamente à divisão do trabalho, representam a síntese, opondo-se no espírito humano à análise... A divisão não fazia senão separar as diversas partes do trabalho, deixando cada qual entregar-se à especialidade que lhe agradasse mais: a oficina agrupa os trabalhadores, segundo a relação de cada parte ao todo... ela introduz o princípio de autoridade no trabalho... Mas isto não é tudo: a máquina ou a oficina, depois de ter degradado o trabalhador dando-lhe um patrão, acaba seu aviltamento fazendo-o decair da condição de artesão à de servente... O período que atravessamos neste momento, o das máquinas, se distingue por um caráter particular, é o salariato. O salariato é posterior à divisão do trabalho e à troca."

Uma simples observação ao sr. Proudhon. A separação das diversas partes do trabalho, deixando a cada qual a faculdade de se entregar à especialidade que mais lhe agradar, separação que o sr. Proudhon faz datar do começo do mundo, não existe senão na indústria moderna sob o regime da concorrência.

O sr. Proudhon faz-nos em seguida uma "genealogia." demasiado "interessante", para demonstrar como a oficina nasceu da divisão do trabalho, e o salariato da oficina.

  1. —Ele imagina um homem que notou que dividindo a produção em suas diversas partes, e fazendo executar cada uma por um operário à parte, multiplicar-se-iam as forças da produção.
  2. — Este homem, apanhando o fio desta ideia, diz a si mesmo que formando um grupo permanente de trabalhadores escolhidos para o objetivo especial que ele se propõe, obterá uma produção mais elevada, etc.
  3. — Este homem faz uma proposta a outros homens, para que eles possam compreender sua ideia e o fio de sua ideia.
  4. — Este homem, no início de sua indústria, trata de igual para igual seus companheiros que se tornam mais tarde seus operários.
  5. — É compreensível, com efeito, que esta igualdade primitiva teve de desaparecer rapidamente devido à posição vantajosa do patrão e a dependência do assalariado."

Eis ainda uma amostra do método histórico e descritivo do sr. Proudhon.

Examinemos agora, do ponto de vista histórico e econômico, se verdadeiramente a oficina, ou a máquina, introduziu o princípio de autoridade na sociedade posteriormente à divisão do trabalho; se ela reabilitou, de um lado, o operário, submetendo-o ao mesmo tempo, de outro lado, à autoridade; se a máquina é a recomposição do trabalho dividido, a síntese do trabalho oposta à sua análise.

A sociedade inteira tem isto de comum com o interior de uma oficina: ela também tem a sua divisão do trabalho. Se se tomasse por modelo a divisão do trabalho numa oficina moderna, para aplicá-lo a uma sociedade inteira, a sociedade melhor organizada para a produção das riquezas seria incontestavelmente a que não tivesse senão um só chefe, distribuindo as tarefas segundo uma regra determinada com antecedência aos diversos membros da comunidade. Mas não é isso o que se verifica. Enquanto que no interior da oficina moderna a divisão do trabalho é minuciosamente regulada pela autoridade do industrial, a sociedade moderna não tem outra regra, outra autoridade, para distribuir o trabalho, senão a livre concorrência.

Sob o regime patriarcal, sob o regime das castas, sob o regime feudal e corporativo, havia divisão do trabalho na sociedade inteira segundo regras fixas. Estas regras foram estabelecidas por um legislador? Não. Nascidas primitivamente das condições da produção material, elas não foram erigidas em leis senão bem mais tarde. Foi assim que estas diversas formas da divisão do trabalho se tornaram em outras tantas bases de organização social. Quanto à divisão do trabalho na oficina, ela era muito pouco desenvolvida em todas estas formas da sociedade.

Pode-se, mesmo, estabelecer como regra geral, que quanto menos a autoridade preside à divisão do trabalho no interior da sociedade, mais a divisão do trabalho se desenvolve no interior da oficina, e mais ela é aí submetida à autoridade de um só. Assim, a autoridade na oficina e a autoridade na sociedade, em relação à divisão do trabalho, estão em relação inversa uma da outra.

Convém ver agora o que é a oficina, na qual as ocupações são muito separadas, na qual a tarefa de cada operário é reduzida a uma operação muito simples, e onde a autoridade, o capital, agrupa e dirige os trabalhos. Como nasceu esta oficina? Para responder a esta pergunta, teríamos de examinar como a indústria manufatureira propriamente dita se desenvolveu. Quero me referir a esta indústria que não é ainda a indústria moderna, com suas máquinas, mas que já não é mais nem a indústria dos artesãos da Idade Média, nem a indústria doméstica. Não entraremos em grandes detalhes: não daremos senão alguns pontos sumários, para fazer ver que com fórmulas não se pode fazer história.

Uma das principais condições para a formação da indústria manufatureira era a acumulação de capitais, facilitada pela descoberta da América e pela introdução de seus metais preciosos.

Está suficientemente provado que o aumento dos meios de troca teve por consequência, de um lado, a depreciação dos salários e das rendas fundiárias e, de outro, o crescimento dos lucros industriais. Em outros termos: à medida em que a classe dos proprietários e a classe dos trabalhadores, os senhores feudais e o povo, decaíam, elevava-se a classe dos capitalistas, a burguesia.

Houve ainda outras circunstâncias que concorreram simultaneamente para o desenvolvimento da indústria manufatureira: o aumento das mercadorias postas em circulação desde que o comércio penetrou nas Índias Orientais pelo caminho do cabo da Boa Esperança, o regime colonial, o desenvolvimento do comércio marítimo.

Outro ponto que ainda não foi suficientemente apreciado na história da indústria é o licenciamento de numerosos séquitos dos senhores feudais, os membros subalternos dos quais, se tornaram vagabundos antes de entrar nas oficinas. A criação da oficina é precedida de uma vagabundagem quase universal nos séculos XV e XVI. A oficina encontrou ainda um poderoso apoio nos numerosos camponeses que, expulsos continuamente do campo pela transformação das terras de lavoura em pastagens e pela introdução de atividades agrícolas necessitando menos braços para a cultura das terras, afluíram às cidades durante séculos inteiros. A ampliação do mercado, a acumulação dos capitais, as modificações sobrevindas na posição social das classes, uma multidão de pessoas privadas de suas fontes de renda, eis outras tantas condições históricas da formação da manufatura. Não foram, como diz o sr. Proudhon, estipulações amistosas entre iguais, que reuniram os homens na oficina. Não foi nem mesmo no seio das antigas corporações que a manufatura teve nascimento. Foi o negociante que se tornou chefe da fábrica moderna, e não o antigo mestre das corporações. Em quase toda parte houve uma luta encarniçada entre a manufatura e os ofícios.

A acumulação e a concentração de instrumentos e de trabalhadores precedeu o desenvolvimento da divisão do trabalho no interior da oficina. Uma manufatura consistia muito mais na reunião de muitos trabalhadores e de muitos ofícios num só lugar, numa sala às ordens de um capital, do que na análise dos trabalhos e na adaptação de um operário particular a uma tarefa muito simples.

A utilidade de uma oficina consistia menos na divisão do trabalho propriamente dita do que na circunstância de ali se trabalhar numa escala maior, de se pouparem muitas pequenas despesas, etc. No fim do século XVI e no começo do século XVII, a manufatura holandesa mal conhecia a divisão.

O desenvolvimento da divisão do trabalho supõe a reunião dos trabalhadores numa oficina. Não há um exemplo sequer, nem no século XVI, nem no século XVII, de terem sido os diversos ramos de um mesmo ofício explorados separadamente ao ponto de bastar reuni-los num só lugar para se obter a oficina completa. Contudo, uma vez os homens e os instrumentos reunidos, a divisão do trabalho tal como existia sob a forma das corporações se reproduzia, se refletia necessariamente no interior da oficina.

Para o sr. Proudhon, que vê as cousas pelo avesso, se é que as vê, a divisão do trabalho, no sentido que lhe dá Adam Smith, precede a oficina que é uma condição de sua existência.

As máquinas propriamente ditas datam do fim do século XVIII. Nada mais absurdo que ver nas máquinas a antítese da divisão do trabalho, a síntese restabelecendo a unidade no trabalho dividido.

A máquina é uma reunião dos instrumentos de trabalho, e de nenhum modo uma combinação dos trabalhos para o próprio operário.

"Quando, pela divisão do trabalho, cada operação particular tenha sido reduzida ao emprego de um instrumento simples, a reunião de todos estes instrumentos, postos em ação por um só motor, constitui — uma máquina" (Babbage, Traité sur l’économie des machines, etc., Paris, 1833).

Instrumentos de trabalho simples, acumulação de instrumentos, instrumentos compostos, movimentação de um instrumento composto por um só motor manual, pelo homem, movimentação destes instrumentos pelas forças naturais, máquina, sistema de máquinas tendo um só motor, sistema de máquinas tendo um autômato — por motor — eis aí a marcha das máquinas.

A concentração dos instrumentos de produção e a divisão do trabalho são tão inseparáveis uma da outra como o são, no regime político, a concentração dos poderes públicos e a divisão dos interesses particulares. A Inglaterra com a concentração das terras, estes instrumentos de trabalho agrícola, tem igualmente a divisão do trabalho agrícola e a mecânica aplicada na exploração da terra. A França, que tem a divisão dos instrumentos, o regime parcelário, não tem em geral nem divisão do trabalho agrícola nem aplicação das máquinas à terra.

Para o sr. Proudhon, a concentração dos instrumentos de trabalho é a negação da divisão do trabalho. Na realidade deparamos ainda o contrário. À medida que a concentração dos instrumentos se desenvolve, a divisão se desenvolve também e vice-versa. Eis o que faz com que toda grande invenção na mecânica seja seguida de uma maior divisão do trabalho, e cada aumento na divisão do trabalho determine por sua vez novas invenções mecânicas.

Não é preciso lembrar que os grandes progressos da divisão do trabalho começaram na Inglaterra depois da invenção das máquinas. Assim, os tecelões e os fiandeiros eram em sua maioria camponeses, tal como ainda acontece nos países atrasados. A invenção das máquinas acabou de separar a indústria manufatureira da indústria agrícola. O tecelão e o fiandeiro, reunidos outrora numa só família, foram separados pela máquina. Graças à máquina, o fiandeiro pode morar na Inglaterra e o tecelão viver nas Índias Orientais. Antes da invenção das máquinas a indústria de um país manifestava-se principalmente através das matérias-primas produzidas em seu próprio solo: assim, na Inglaterra a lã, na Alemanha o linho, na França as sedas e o linho, nas Índias Orientais e no Levante o algodão, etc. Graças à aplicação da máquina e do vapor, a divisão do trabalho pôde tomar tais dimensões, que a grande indústria, separada do solo nacional, depende unicamente do mercado mundial, das trocas internacionais, de uma divisão de trabalho internacional. Enfim, a máquina exerce uma tal influência sobre a divisão do trabalho, que quando na fabricação de uma obra qualquer se tenha encontrado o meio de introduzir parcialmente a mecânica, a fabricação se divide logo em duas empresas independentes uma da outra.

Será preciso falar no fim providencial e filantrópico que o sr. Proudhon descobre na invenção e aplicação primitiva das máquinas?

Quando na Inglaterra o mercado tomou um desenvolvimento tal que o trabalho manual já não bastava para abastecê- lo, sentiu-se a necessidade das máquinas. Sonhava-se então com a aplicação da ciência mecânica, que já se completara no século XVIII.

A oficina automática teve seu início assinalado por atos que não podiam ser menos filantrópicos. As crianças eram obrigadas a trabalhar sob a ameaça do chicote e eram objeto de tráfico, fazendo-se contratos com as casas de órfãos. Aboliram-se todas as leis sobre a aprendizagem dos operários, porque, para nos servir das frases do sr. Proudhon, não se tinha mais necessidade senão de operários sintéticos. Enfim, a partir de 1825, quase todas as novas invenções resultaram de choques entre o operário e o industrial, que procurava a todo custo depreciar a especialidade do operário. Depois de cada nova greve, por pouco importante que fosse, surgia uma nova máquina. O operário via tão pouco na aplicação das máquinas uma espécie de reabilitação, de restauração, como diz o sr. Proudhon, que no século XVIII resistiu muito tempo ao império nascente do autômato.

"Wyatt, diz o doutor Ure, tinha descoberto os dedos de fiar" (a série de rolos estriados) muito tempo antes de Arkwright... A principal dificuldade não consistia tanto na invenção de um mecanismo automático... A dificuldade estava sobretudo na disciplina necessária para fazer os homens renunciar a seus hábitos irregulares no trabalho, e para identificá-los com a regularidade invariável de um grande autômato. Mas inventar e pôr em vigor um código de disciplina manufatureiro, que conviesse às necessidades e à celeridade do sistema automático, eis uma empresa digna de Hércules, eis a nobre obra de Arkwright".

Em suma, com a introdução das máquinas, a divisão do trabalho no interior da sociedade aumentou, a tarefa do operário no interior da oficina se simplificou, o capital foi reunido, o homem foi dividido ainda mais. O sr. Proudhon, querendo ser economista e abandonar por um momento "a evolução na série do entendimento", vai buscar sua erudição em A. Smith, no tempo em que a oficina automática apenas havia nascido. Com efeito, que diferença entre a divisão do trabalho tal como existia no tempo de Adam Smith, e tal como a vemos na oficina automática. Para que possamos compreendê-la bem, basta citar algumas passagens da "Filosofia das manufaturas" do doutor Ure.

"Quando A. Smith escreveu sua obra imortal sobre os elementos da economia política, o sistema automático de indústria era apenas conhecido. A divisão do trabalho parecia-lhe com razão o grande princípio do aperfeiçoamento em manufatura; ele demonstrou, na fábrica de alfinetes, que um operário se aperfeiçoando pela prática num só e mesmo ponto torna-se mais expedito e menos dispendioso. Em cada ramo de manufatura, ele viu que, segundo este princípio, certas operações, tais como o corte de fios de latão em comprimentos iguais, tornam-se de fácil execução; que outras, tais como a feitura e fixação das cabeças de alfinetes relativamente mais difíceis. E concluiu, assim, que se pode, como é natural, adaptar a cada uma destas operações um operário cujo salário corresponda à sua habilidade. É esta adaptação que é a essência dos trabalhos. Mas o que podia servir de exemplo útil no tempo do doutor Smith não seria apropriado hoje senão para induzir o público em erro, relativamente ao princípio real da indústria manufatureira. Com efeito, a distribuição, ou antes, a adaptação dos trabalhos às diferentes capacidades individuais, quase não entra no plano de ação das manufaturaras automáticas: ao contrário, em todos os lugares onde um processo qualquer exige muita destreza e mão segura, ele é retirado do braço demasiado hábil do operário e muitas vezes inclinado a irregularidades de vários gêneros, para entregá-lo a um mecanismo particular, cujo funcionamento automático é tão bem regulado que uma criança pode vigiá-lo.

O princípio do sistema automático é, pois, substituir pela arte mecânica a mão-de-obra, e substituir a divisão do trabalho entre os artesãos pela análise de um processo em seus princípios constituintes. De acordo com o sistema de operação manual, a mão-de-obra era geralmente o elemento mais dispendioso de um produto qualquer: mas, com o sistema automático, os talentos do artesão vão sendo progressivamente substituídos pela presença de simples vigilantes de mecânica.

A fraqueza da natureza humana é tal que quanto mais hábil o operário mais voluntarioso e intratável se torna, e, por conseguinte, menos é indicado para um sistema de mecânica ao conjunto do qual seus repentes caprichosos podem causar um mal considerável. O grande problema do manufatureiro dos nossos dias é, pois, combinando a ciência com seus capitais, reduzir a tarefa de seus operários a exercer sua vigilância e destreza, faculdades que se aperfeiçoam em sua juventude, quando são fixadas num só objeto.

Segundo o sistema das gradações do trabalho, é preciso fazer uma aprendizagem de muitos anos para que o olho e as mãos se tornem bastante hábeis para executar certas operações que exigem destreza em mecânica; mas segundo o sistema que decompõe um processo reduzindo-o aos seus princípios constitutivos, e que submete todas as partes em que é dividido ao funcionamento de uma máquina automática, pode-se confiar estas mesmas partes elementares a uma pessoa dotada de uma capacidade ordinária, depois de submetida a uma curta prova; pode-se mesmo, em caso de urgência, fazê-la passar de uma maquina para outra, de acordo com a vontade do diretor do estabelecimento. Tais mutações estão em oposição aberta com a antiga rotina que divide o trabalho e que atribui a um operário a tarefa de conformar a cabeça de um alfinete, e a outro a de afinar a ponta, trabalho cuja uniformidade tediosa os enerva... Entretanto, de acordo com o princípio de igualização, ou o sistema automático, as faculdades do operário não estão submetidas senão a um trabalho agradável, etc. Sua ocupação sendo vigiar o trabalho de um mecanismo bem regulado, ele a pode aprender em pouco tempo; e quando transfere seus serviços de uma máquina para outra, ele varia sua tarefa e desenvolve suas ideias, refletindo nas combinações gerais que resultam de sua atividade e de seus companheiros. Assim, este constrangimento das faculdades, este retraimento das ideias, este mal-estar do corpo que foram atribuídos não sem razão à divisão do trabalho, não podem, em circunstâncias ordinárias, ter lugar sob o regime de uma igual distribuição dos trabalhos.

O objetivo constante e a tendência de todo aperfeiçoamento no mecanismo é, com efeito, de dispensar inteiramente o trabalho do homem ou de diminuir o seu preço, substituindo pela indústria das mulheres e das crianças a do operário adulto, ou pelo trabalho de operários sem destreza e de hábeis artesãos... Esta tendência a empregar apenas crianças de olhar vivo e dedos ágeis no lugar de trabalhadores possuindo uma grande experiência, demonstra que o dogma escolástico da divisão do trabalho segundo os diferentes graus de habilidade foi enfim repudiado por nossos manufatureiros esclarecidos" (André Ure, Philosophie des manufactures ou Économie industrielle, t. I, cap. 1).

O que caracteriza a divisão do trabalho no seio da sociedade moderna, é que ela engendra as especialidades, as espécies, e com elas o idiotismo da profissão.

"Ficamos admirados, diz Lemontey, quando vemos entre os antigos a mesma personagem ser ao mesmo tempo, num grau eminente, filósofo, poeta, orador, historiador, sacerdote, administrador, general de exército. Nossas almas se espantam ante o aspecto de tão vasto domínio. Cada um planta sua sebe e se encerra no seu cercado. Ignoro se com esta separação o campo aumenta, mas sei que o homem se diminui."

O que caracteriza a divisão do trabalho na oficina automática é que nela o trabalho perde todo caráter de especialidade, Mas desde que todo desenvolvimento especial cesse, a necessidade de universalidade, a tendência para um desenvolvimento integral do indivíduo começa a se fazer sentir. A oficina automática faz desaparecer as espécies e o idiotismo da profissão.

O sr. Proudhon, não tendo nem mesmo compreendido este único lado revolucionário da oficina automática, dá um passo atrás, e propõe ao operário fazer não somente a duodécima parte de um alfinete, mas sucessivamente todas as doze partes. O operário chegaria assim à ciência e à consciência do alfinete. Eis o que é o trabalho sintético do sr. Proudhon. Ninguém contestará que fazer um movimento para a frente e outro para trás é fazer igualmente um movimento sintético.

Em resumo, o sr. Proudhon não foi além do ideal do pequeno-burguês. E para realizar este ideal, ele não imagina nada de melhor do que nos reconduzir ao companheiro, ou, quando muito, ao mestre-artesão da Idade Média. É bastante, diz ele num ponto qualquer de seu livro, haver feito uma só vez na vida uma obra-prima, ter se sentido homem uma só vez. Não está aí, tanto pelo fundo como pela forma, a obra-prima exigida pela corporação do ofício da Idade Média?

A concorrência e o monopólio

Lado bom da concorrência "A concorrência é tão essencial ao trabalho como a divisão... Ela é necessária ao advento da igualdade."
Lado mau da concorrência "O princípio é a negação de si mesmo. Seu efeito mais certo é de perder aqueles que arrasta."
Reflexão geral "Os inconvenientes que a acompanham, do mesmo modo que o bem que determina..., decorrem logicamente uns e outros do princípio."
Problema a resolver "Saber qual o princípio de acomodação que deve derivar de uma lei superior à própria liberdade."
"Não se poderia, pois, falar aqui em destruir a concorrência, coisa tão impossível quanto destruir a liberdade; trata-se de encontrar o equilíbrio, diria mesmo de boa vontade a polícia."

O sr. Proudhon começa por defender a necessidade eterna da concorrência contra os que querem substituí-la pela emulação.

Não existe "emulação sem objetivo", e como o "objeto de toda a paixão é necessariamente análogo à paixão, de uma mulher para o amante, do poder para o ambicioso, do ouro para o avaro, uma coroa para o poeta, o objeto da emulação industrial é necessariamente o lucro. A emulação não é outra coisa senão a própria concorrência."

A concorrência é a emulação tendo em vista o lucro. A emulação industrial será necessariamente a emulação tendo em vista o lucro, ou seja, a concorrência? O sr. Proudhon prova-o ao afirmá-lo. Vimo-lo afirmar, para ele, é provar, do mesmo modo como supor é negar.

Se o objeto imediato do amante é a mulher, o objeto imediato da emulação industrial é o produto e não o lucro.

A concorrência não é a emulação industrial, é a emulação comercial. Em nossos dias, a emulação industrial só existe tendo em vista o comércio. Há mesmo fases na vida econômica dos povos modernos em que toda gente é tomada de uma espécie de vertigem para obter lucro sem produzir. Esta vertigem de especulação, que ocorre periodicamente, põe a nu o verdadeiro caráter da concorrência que procura escapar à necessidade da emulação industrial.

Se disséssemos a um artesão do século XIV que os privilégios e toda a organização feudal da indústria iam ser suprimidos para se colocar em seu lugar a emulação industrial, a chamada concorrência, ele nos teria respondido que os privilégios das diversas corporações, mestrados, juízos de ofício, são a concorrência organizada. O sr. Proudhon não diz melhor ao afirmar que "a emulação não é outra coisa senão a própria concorrência".

"Ordenai que a partir de 1.° de janeiro de 1847 o trabalho e o salário sejam garantidos para toda gente: um imenso relaxamento de esforços sucederá sem demora à ardente tensão da indústria."

Em vez de uma suposição, de uma afirmação e de uma negação, temos agora uma ordem que o sr. Proudhon dá expressamente para provar a necessidade da concorrência, sua eternidade como categoria, etc.

Se se imaginar que não é preciso senão dar ordens para sair da concorrência, dela não se sairá jamais. E se se levarem as coisas até o ponto de propor a abolição da concorrência, conservando ao mesmo tempo o salário, ter-se-á proposto um contrassenso por decreto real. Mas os povos não procedem por meio de decreto real. Antes que tais ordens sejam baixadas, eles devem pelo menos ter mudado de alto a baixo suas condições de existência industrial e política, e, como consequência, toda a sua maneira de ser.

O sr. Proudhon responderá com sua imperturbável segurança que essa é a hipótese "de uma transformação de nossa natureza sem antecedentes históricos", e que teria o direito "de nos desviar da discussão", não sabemos em virtude de que decreto.

O sr. Proudhon ignora que a história inteira não é senão uma transformação contínua da natureza humana.

"Fiquemos nos fatos. A Revolução francesa foi feita tanto visando a liberdade industrial quanto a liberdade política; e ainda que a França, em 1789, não tenha percebido todas as consequências do princípio de que pedia a realização, digamo-lo em voz alta, ela não se enganou nem nos seus desejos, nem na sua expectativa. Qualquer pessoa que tentasse negá-lo perderia na minha opinião o direito à crítica: não discutiria jamais com um adversário que apresentasse como princípio o erro espontâneo de vinte e cinco milhões de homens... Por que pois, se á concorrência não tivesse sido um princípio de economia social, um decreto do destino, uma necessidade da alma humana, por que, em vez de abolir as corporações, mestrados e juízos de ofício, não se cuidou de reparar o todo?"

Assim, pois que os franceses do século XVIII aboliram as corporações, mestrados e juízos de ofício em vez de modificá-los, os franceses do século XIX devem modificar a concorrência em vez de aboli-la. Pois que a concorrência foi estabelecida na França, no século XVIII, como consequência de necessidades históricas, esta concorrência não deve ser destruída no século XIX, por motivo de outras necessidades históricas. O sr. Proudhon, não compreendendo que o estabelecimento da concorrência se ligava ao desenvolvimento real dos homens do século XVIII, faz da concorrência uma necessidade da alma humana, IN PARTIBUS INFIDELIUM.[2 1] Que teria ele feito do grande Colbert, no que diz respeito ao século XVII?

Depois da Revolução vem o presente estado de coisas. O sr. Proudhon aqui também seleciona fatos para mostrar a eternidade da concorrência, provando que todas as indústrias nas quais esta categoria não é ainda bastante desenvolvida, como na agricultura, estão num estado de inferioridade, de caducidade.

Dizer que há indústrias que ainda não estão à altura da concorrência, que outras ainda estão abaixo do nível da produção burguesa, é um palavreado que não prova de nenhum modo a eternidade da concorrência.

Toda a lógica do sr. Proudhon se resume nisto: a concorrência é uma relação social na qual desenvolvemos atualmente nossas forças produtivas. Ele dá a esta verdade, não desenvolvimentos lógicos, mas formas muitas vezes muito bem desenvolvidas, dizendo que a concorrência é a emulação industrial, o modo atual de ser livre, a responsabilidade no trabalho, a constituição do valor, uma condição para o advento da igualdade, um princípio de economia social, um decreto do destino, uma necessidade da alma humana, uma inspiração da justiça eterna, a liberdade na divisão, a divisão na liberdade, uma categoria econômica.

"A concorrência e a associação apoiam-se uma na outra. Longe de se excluírem, elas não são sequer divergentes. Quem diz concorrência, já supõe fim comum. A concorrência não é, pois, o egoísmo, e o erro mais deplorável do socialismo é de a ter considerado como a ruína da sociedade."

Quem diz concorrência diz fim comum, e isso prova, de um lado, que a concorrência é a associação; de outro, que a concorrência não é o egoísmo. E quem diz egoísmo não diz fim comum? Cada egoísmo se exerce na sociedade e pelo fato da existência da sociedade, isto é, dos fins comuns, das necessidades comuns, dos meios de produção comuns, etc., etc. Seria, por acaso, por isso que a concorrência e a associação de que falam os socialistas não são nem mesmo divergentes?

Os socialistas sabem muito bem que a sociedade atual é fundada na concorrência. Como poderiam eles acusar a concorrência pelo derrubamento da sociedade atual, que eles próprios querem derrubar? E como poderiam acusar a concorrência pelo derrubamento da sociedade futura, na qual eles veem, pelo contrário, o derrubamento da concorrência?

O sr. Proudhon diz, mais ainda, que a concorrência é o oposto do monopólio, e que, por consequência, ela não poderia ser o oposto da associação.

O feudalismo opunha-se, desde a sua origem, à concorrência, que ainda não existia. Seguir-se-ia que a concorrência não se opõe ao feudalismo?

De fato, sociedade, associação são denominações que se podem dar a todas as sociedades, tanto à sociedade feudal como à sociedade burguesa, que é a associação fundada na concorrência. Como, pois, poderá haver socialistas que somente com a palavra associação acreditam poder refutar a concorrência? E como o próprio sr. Proudhon poderá querer defender a concorrência contra o socialismo designando a concorrência apenas pela palavra de associação?

Tudo o que acabamos de dizer constitui o lado bonito da concorrência, tal como o entende o sr. Proudhon. Passemos agora ao lado mau, ou seja, ao lado negativo da concorrência, a seus inconvenientes, àquilo que ela tem de destruidor, de subversivo, de qualidades malfazejas.

O quadro que o sr. Proudhon nos apresenta tem algo de lúgubre.

A concorrência engendra a miséria, fomenta a guerra civil, "muda as zonas naturais", confunde as nacionalidades, perturba as famílias, corrompe a consciência pública, "subverte as noções de equidade, de justiça", de moral e, o que é pior, destrói o comércio probo e livre e não dá em compensação nem mesmo o valor sintético, o preço fixo e honesto. Ela desencanta toda gente, mesmo os economistas. Ela leva as coisas até o ponto de destruírem-se a si mesmas.

Depois de tudo o que o sr. Proudhon disse de mal, poderá haver para as relações da sociedade burguesa, para seus prin- (neste ponto há uma falha na edição transcrita - o texto em colchetes a seguir foi extraído da edição da Editora Leitura, Rio, 1955) [princípios e suas ilusões, um elemento mais dissolvente e mais destruidor que a concorrência?]

Notemos bem que a concorrência se torna cada vez mais destruidora para as relações burguesas, à medida que excita para uma criação febril novas forças produtivas, isto é, as condições materiais de uma sociedade nova. Sob este aspecto, pelo menos, o lado mau da concorrência teria algo de bom.

"A concorrência como posição ou fase econômica considerada em sua origem é o resultado necessário... da teoria das despesas gerais."

Para o sr. Proudhon, a circulação do sangue deve ser uma consequência da teoria de Harvey.

"O monopólio é o termo fatal da concorrência, que o engendra por uma negação incessante dela mesma. Esta formação do monopólio é já a sua justificação... O monopólio é o oposto natural da concorrência... mas desde que a concorrência é necessária, ela implica a ideia do monopólio, pois que o monopólio é como a sede de cada individualidade concorrente."

Regozijamo-nos com o sr. Proudhon pelo fato de ter podido aplicar bem, uma vez pelo menos, a sua fórmula de tese e antítese. Toda gente sabe que o monopólio moderno é engendrado pela própria concorrência.

Quanto ao conteúdo, o sr. Proudhon se limita a imagens poéticas. A concorrência fazia "de cada subdivisão do trabalho como que uma soberania em que cada indivíduo se colocava com sua força e independência". O monopólio é "a sede de cada individualidade concorrente". A soberania vale pelo menos a sede.

O sr. Proudhon não fala senão do monopólio moderno engendrado pela concorrência. Mas nós sabemos todos que a concorrência foi engendrada pelo monopólio feudal. Assim, primitivamente, a concorrência foi o contrário do monopólio, e não o monopólio o contrário da concorrência. Logo, o monopólio moderno não é uma simples antítese, é, ao contrário, a verdadeira síntese.

Tese: O monopólio feudal anterior à concorrência.

Antítese: A concorrência.

Síntese: O monopólio moderno, que é a negação do monopólio feudal na medida em que ele supõe o regime da concorrência, e que é a negação da concorrência na medida em que é monopólio.

Assim, o monopólio moderno, o monopólio burguês, é o monopólio sintético, a negação da negação, a unidade dos contrários. É o monopólio no estado puro, normal, racional. O sr. Proudhon está em contradição com sua própria filosofia quando faz do monopólio burguês o monopólio no estado cru, simplista, contraditório, espasmódico. O sr. Rossi, que o sr. Proudhon cita várias vezes a propósito do monopólio, parece ter melhor compreendido o caráter sintético do monopólio burguês. Em seu Cours d’Économie polítique, ele estabelece distinção entre os monopólios artificiais e os monopólios naturais. Os monopólios feudais, diz ele, são artificiais, isto é, arbitrários; os monopólios burgueses são naturais, isto é, racionais.

O monopólio é uma boa coisa, argumenta o sr. Proudhon, pois que é uma categoria econômica, uma emanação "da razão impessoal da humanidade". A concorrência é também uma boa coisa, pois que é, ela também, uma categoria econômica. Mas o que não é bom é a realidade do monopólio e a realidade da concorrência. E o que é ainda pior é que a concorrência e o monopólio se devoram mutuamente. Que fazer? Procurar a síntese destes dois pensamentos eternos, arrancá-la do seio de Deus onde se encontra desde tempos imemoriais.

Na vida prática, encontra-se não somente a concorrência, o monopólio e o antagonismo de ambos, mas também sua síntese, que não é uma fórmula, mas um movimento. O monopólio produz a concorrência, a concorrência produz o monopólio. Os monopólios fazem concorrência uns aos outros, os concorrentes tornam-se monopolizadores. Se os monopolizadores restringem a concorrência entre eles por meio de associações parciais, a concorrência aumenta entre os operários; e quanto mais a massa dos proletários aumenta diante dos monopolizadores de uma nação, mais a concorrência se torna desenfreada entre os monopolizadores das diferentes nações. A síntese é tal que o monopólio não pode se manter senão passando continuamente pelos embates da concorrência.

Para engendrar dialeticamente os impostos que vêm depois do monopólio, o sr. Proudhon nos fala do gênio social que, depois de haver seguido intrepidamente o seu caminho em zigue-zague,

"depois de ter andado com passo seguro, sem arrependimento e sem parada, depois de ter chegado ao ângulo do monopólio, dirige para trás um olhar melancólico, e após uma reflexão profunda, sobrecarrega de impostos todos os objetos da produção, e cria, toda uma organização administrativa, a fim de que todos os empregos sejam entregues ao proletariado e pagos pelos homens do monopólio".

Que dizer deste gênio que, estando em jejum, passeia em zigue-zague? E que dizer deste passeio que não teria outro fim senão de aniquilar os burgueses por meio dos impostos, enquanto que os impostos servem precisamente para dar aos burgueses os meios de se conservarem como classe dominante?

Somente para fazer entrever a maneira como o sr. Proudhon trata os detalhes econômicos, bastará dizer que, segundo ele, o imposto sobre o consumo teria sido estabelecido tendo em vista a igualdade e como meio de auxílio ao proletariado.

O imposto sobre o consumo não teve o seu verdadeiro desenvolvimento senão depois do advento da burguesia. Nas mãos do capital industrial, ou seja da riqueza sóbria e econômica que se mantém, se reproduz e aumenta pela exploração direta do trabalho, o imposto sobre o consumo era um meio de explorar a riqueza frívola, feliz, pródiga dos grandes senhores que não faziam outra coisa senão consumir. James Stuart expôs muito bem este objetivo primitivo do imposto sobre o consumo nas suas Pesquisas sobre os princípios da Economia política, que publicou dez anos antes de A. Smith.

"Na monarquia pura, diz ele, os príncipes parecem algo enciumados com o aumento das riquezas, e majoram por isso os impostos visando aqueles que se tornam ricos — impostos sobre a produção. No governo constitucional, eles visam principalmente aqueles que se tornam pobres — impostos sobre o consumo. Assim, os monarcas criam um imposto sobre a indústria;... por exemplo a captação e o imposto sobre as propriedades dos plebeus estão em proporção com a opulência suposta daqueles que a elas estão sujeitos. Cada pessoa é taxada de acordo com o lucro que se supõe que aufira. Nos governos constitucionais, os impostos são cobrados geralmente sobre o consumo. Cada pessoa é taxada de acordo com a despesa que faz."

Quanto à sucessão lógico dos impostos, da balança do comércio, do crédito — observaremos somente que a burguesia inglesa, que chegou no reinado de Guilherme de Orange à sua constituição política, criou de uma só vez um novo sistema de impostos, o crédito público e o sistema dos direitos de proteção, assim que se viu no estado de desenvolver livremente suas condições de existência.

Este apanhado bastará para dar ao leitor uma ideia justa das elucubrações do sr. Proudhon sobre a polícia e o imposto, a balança do comércio, o crédito, o comunismo e a população. Desafiamos a mais indulgente das críticas a tratar estes capítulos de maneira séria.

A propriedade ou a renda fundiária

Em cada época histórica a propriedade tem se desenvolvido de modo diferente e numa série de relações sociais inteiramente diversas. Assim, definir a propriedade burguesa não é senão fazer a exposição de todas as relações sociais da produção burguesa.

Querer dar uma definição da propriedade como se se tratasse de uma relação independente, de uma categoria à parte, de uma ideia abstrata e eterna, isso não poderia ser senão uma ilusão de metafísica ou de jurisprudência.

O sr. Proudhon, embora pareça referir-se à propriedade em geral, não trata senão da propriedade territorial, da renda fundiária.

"A origem da renda, como propriedade, é por assim dizer extraeconômica: ela reside em considerações de psicologia e de moral que não se relacionam senão de muito longe com a produção das riquezas" (T. II, pág. 266).

Assim, o sr. Proudhon se reconhece incapaz de compreender a origem econômica da renda e da propriedade. Ele admite que esta incapacidade o obriga a recorrer a considerações de psicologia e moral, as quais, com efeito, relacionando-se de muito longe com a produção das riquezas, relacionam-se, no entanto, de muito perto com a exiguidade de sua visão histórica. O sr. Proudhon afirma que a origem da propriedade tem algo de místico e de misterioso. Ora, ver mistério na origem da propriedade, isto é, transformar em mistério a relação da própria produção com a distribuição dos instrumentos de produção, não é, para falar a linguagem do sr. Proudhon, renunciar a qualquer pretensão no que diz respeito à ciência econômica? O sr. Proudhon

"limita-se a lembrar que na sétima época da evolução econômica — o crédito — tendo a ficção feito desvanecer a realidade, e estando a atividade humana ameaçada de perder-se no vácuo, tornara-se necessário ligar mais fortemente o homem à natureza; ora, a renda foi o preço deste novo contrato" (T. II, pág. 266).

O homem dos quarenta escudos pressentiu um futuro Proudhon: "Senhor criador, com a vossa permissão: sei que cada pessoa é senhora de seu mundo; mas jamais me fareis acreditar que o mundo em que nos encontramos seja de vidro." Era vosso mundo, onde o crédito era um meio para se perder no vácuo, é muito possível que a propriedade se tenha tornado necessária para ligar o homem à natureza. No mundo da população real, no qual a propriedade territorial precede sempre o crédito, o horror vacui do sr. Proudhon não poderia existir. Uma vez admitida a existência da renda, seja qual for aliás a sua origem, vemo-la se debater contraditoriamente entre o rendeiro e o proprietário territorial. Qual é o último termo deste debater, ou, em outras palavras, qual é a quantidademédia da renda? Eis o que diz o sr. Proudhon:

"A teoria de Ricardo responde a esta questão. No início da sociedade, quando o homem, novo sobre a terra, não tinha diante de si senão a imensidade das florestas, e quando a terra era vasta e a indústria apenas começava a nascer, a renda tinha de ser nula. A terra, ainda modificada pelo trabalho, era um objeto de utilidade; não era um valor de troca: ela era comum, não social. Pouco o pouco, a multiplicação das famílias e o progresso da agricultura fizeram ver quanto valia a terra. O trabalho veio dar ao solo o seu valor: daí nasceu a renda. Quanto mais, com a mesma quantidade de trabalho, era uma terra capaz de oferecer os seus frutos, mais era estimada; e a tendência dos proprietários foi sempre de se atribuir a totalidade dos produtos do solo, menos o salário do rendeiro, isto é, menos o custo de produção. Assim, a propriedade vem em seguida ao trabalho para tirar-lhe tudo aquilo que, no produto, ultrapasse as despesas reais. Cumprindo o proprietário um dever místico e representado diante do colono a comunidade, o rendeiro não é mais, nas previsões da Providência, senão um trabalhador responsável, que deve dar conta à sociedade de tudo o que recolhe a mais de seu salário legítimo... Em essência e destinação, a renda é, pois, um instrumento de justiça distributiva, um dos mil meios que o gênio econômico põe em ação para chegar à igualdade. É um imenso cadastro executado contraditoriamente pelos proprietários e rendeiros, sem colisão possível, num interesse superior, e cujo resultado definitivo deve ser o de tornar igual a posse da terra entre os exploradores do solo e os industriais... Não faltava senão esta magia da propriedade para arrancar do colono o excedente do produto que ele não pode deixar de considerar como seu e do qual acredita ser o autor exclusivo. A renda, ou melhor, a propriedade, destruiu o egoísmo agrícola e criou uma solidariedade que nenhuma potência, nenhuma repartição de terras teria feito nascer... Presentemente, obtido o efeito moral da propriedade, resta fazer a distribuição da renda."

Toda esta torrente de palavras se reduz antes de tudo a isto: Ricardo diz que o excedente do preço dos produtos agrícolas sobre o seu custo de produção, incluindo-se o lucro e os juros comuns do capital, dá a medida da renda. O sr. Proudhon faz melhor. Ele faz o proprietário intervir, como um Deus ex machina que tira do colono todo o excedente de sua produção relativamente ao custo da produção. Serve-se da intervenção do proprietário para explicar a propriedade, da intervenção do rendeiro para explicar a renda. Responde ao problema colocando o mesmo problema e o aumentando ainda de uma sílaba.

Observemos ainda que, determinando a renda pela diferença da fecundidade da terra, o sr. Proudhon lhe atribui uma nova origem, pois que a terra, antes de ser avaliada segundo os diferentes graus de fertilidade, "não era", segundo ele, "um valor de troca, mas era comum." Em que se tornou, pois, esta ficção da renda que tinha tido nascimento na necessidade de reconduzir à terra o homem que ia se perder no infinito do vácuo?

Desembaracemos agora a doutrina de Ricardo das frases providenciais, alegóricas e místicas nas quais o sr. Proudhon teve o cuidado de envolvê-la.

A renda, no sentido de Ricardo, é a propriedade territorial no estado burguês: ou seja a propriedade feudal submetida às condições da produção burguesa.

Vimos que, segundo a doutrina de Ricardo, o preço de todos os objetos é finalmente determinado pelo custo de produção, inclusive o lucro industrial; em outros termos, pelo tempo de trabalho empregado. Na indústria manufatureira, o preço do produto obtido com o mínimo de trabalho regula o preço de todas as outras mercadorias da mesma espécie, visto que se podem multiplicar ao infinito os instrumentos de produção menos custosos e mais produtivos, e que a concorrência determina necessariamente um preço de mercado, ou seja, um preço comum para todos os produtos da mesma espécie.

Na indústria agrícola, ao contrário, é o preço do produto obtido com a maior quantidade de trabalho que regula o preço de todos os produtos da mesma espécie. Em primeiro lugar, não se pode, como na indústria manufatureira, multiplicar à vontade os instrumentos de produção do mesmo grau de produtividade, isto é, os terrenos do mesmo grau de fecundidade. Em seguida, à medida que a população aumenta, passam a ser explorados terrenos de uma qualidade inferior, ou a ser feitos no mesmo terreno novos investimentos de capital, proporcionalmente menos produtivos do que os primeiros. Em um e outro caso, faz-se uso de uma maior quantidade de trabalho para obter um produto proporcionalmente menor. Tendo as necessidades da população tornado indispensável este acréscimo de trabalho, o produto do terreno de uma exploração mais custosa tem o seu escoamento forçado da mesma maneira como o do terreno de uma exploração que produz mais em conta. Como a concorrência nivela o preço do mercado, o produto da terra melhor será pago tão caro quanto o da terra inferior. É o excedente do preço dos produtos da terra de melhor qualidade sobre o custo de sua produção que constitui a renda. Se se tivesse sempre à disposição terras do mesmo grau de fertilidade; se se pudesse, como na indústria manufatureira, recorrer sempre a máquinas menos custosas e mais produtivas, ou se os segundos investimentos de capitais produzissem tanto quanto os primeiros, então o preço dos produtos agrícolas seria determinado pelo preço dos artigos produzidos pelos melhores instrumentos de produção, como constatamos para os preços dos produtos manufaturados. Mas também, a partir desse momento, a renda teria desaparecido.

Para que a doutrina de Ricardo seja verdadeira de uma maneira geral, é preciso ainda que os capitais possam ser aplicados livremente nos diferentes ramos da indústria; que uma concorrência fortemente desenvolvida entre os capitalistas tenha levado os lucros a uma taxa igual; que o rendeiro não seja mais que um capitalista industrial que peça, para a aplicação de seu capital na terra, um lucro igual àquele que tiraria de seu capital se este fosse aplicado numa manufatura qualquer; que a exploração agrícola esteja submetida ao regime da grande indústria; enfim, que o próprio proprietário territorial não vise mais que a renda monetária.

Pode acontecer que a renda ainda não exista, como na Irlanda, embora o arrendamento de terras tenha ali tomado um extremo desenvolvimento. Sendo a renda o excedente não somente sobre o salário, mas também sobre o lucro industrial, ela não poderia existir nos lugares onde a renda do proprietário não é senão uma retirada feita sobre o salário.

Ora, bem longe de fazer do explorador da terra, do rendeiro um simples trabalhador, e de "tirar do colono o excedente do produto que ele não pode deixar de considerar como seu", a renda põe em presença do proprietário territorial o capitalista industrial, em vez do escravo, do servo, do tributário, do assalariado.

E também decorreu um grande lapso de tempo antes de o rendeiro feudal haver sido substituído pela capitalista industrial. Na Alemanha, por exemplo, esta transformação começou apenas no último terço do século XVIII. Foi somente na Inglaterra que esta relação entre o capitalista industrial e o proprietário territorial conheceu todo o seu desenvolvimento.

Enquanto não havia senão o colono do sr. Proudhon, não havia renda. Desde que existe renda, o colono não é rendeiro mas o operário, o colono do rendeiro. Diminuição do trabalhador, reduzido ao papel de simples operário, jornaleiro, assalariado, trabalhando para o capitalista industrial; intervenção do capitalista industrial, explorando a terra como qualquer fábrica; transformação do proprietário territorial de pequeno soberano em usurário vulgar — eis as diferentes relações expressas pela renda.

A renda, no sentido de Ricardo, é a agricultura patriarcal transformada em indústria comercial, o capital industrial aplicado à terra, a burguesia das cidades transplantada para o campo. A renda, em vez de ligar o homem à natureza, não fez senão ligar a exploração da terra à concorrência. Uma vez constituída em renda, a propriedade territorial é ela própria o resultado da concorrência, pois que desde então passa a depender do valor venal dos produtos agrícolas. Como renda, a propriedade territorial é mobilizada e torna-se um efeito de comércio. A renda não é possível senão a partir do momento em que o desenvolvimento da indústria das cidades e a organização social resultante forçam o proprietário territorial a visar apenas o lucro venal, a relação monetária de seus produtos agrícolas, e a ver, enfim, na sua propriedade territorial, apenas uma máquina de cunhar moeda. A renda separou tão perfeitamente do solo, da natureza, o proprietário territorial, que ele não tem nem mesmo necessidade de conhecer suas terras, como acontece na Inglaterra. Quanto ao rendeiro, ao capitalista industrial e ao operário agrícola, eles não estão mais ligados à terra que exploram do que o industrial e o operário das manufaturas ao algodão ou à lã; eles não se sentem ligados senão ao preço de sua exploração, ao produto monetário. Daí as jeremiadas dos partidos reacionários, que pedem com todas suas forças a volta à feudalidade, à boa vida patriarcal, aos costumes simples e às grandes virtudes de nossos antepassados. A sujeição do solo às leis que regem todas as outras indústrias é e será sempre objeto de condolências interessadas. Assim, pode-se dizer que a renda se tornou a força motriz que lançou o idílio no movimento da história.

Ricardo, depois de ter apresentado a produção burguesa como necessária para determinar a renda, aplica-a contudo à propriedade territorial de todas as épocas e de todos os países.

Trata-se de devaneios comuns a todos os economistas, que apresentam as relações da produção burguesa como categorias eternas.

Do fim providencial da renda, que é, para o sr. Proudhon a transformação do colono em trabalhador responsável, ele passa à retribuição igualitária da renda.

A renda, como acabamos de ver, é constituída pelo preço igual dos produtos de terras desiguais em fertilidade, de maneira que um hectolitro de trigo que tenha custado 10 francos é vendido por 20 francos, se o custo de produção atingir, numa terra de qualidade inferior, 20 francos.

Na medida em que a necessidade obriga a aquisição de todos os produtos agrícolas levados ao mercado, o preço do mercado é determinado pelas despesas de produção do produto mais custoso. É, pois, esta igualação de preço, resultante da concorrência e não da fertilidade diferente das terras, que proporciona ao proprietário da terra melhor uma renda de 10 francos em cada hectolitro vendido pelo seu rendeiro.

Suponhamos por um instante que o preço do trigo seja determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-lo, e veremos que o hectolitro de trigo obtido no melhor terreno será vendido a 10 francos, enquanto que o hectolitro de trigo obtido no terreno de qualidade inferior será pago a 20 francos. Admitida essa hipótese, o preço médio do mercado deveria ser de 15 francos, enquanto que, segundo a lei da concorrência, ele é de 20 francos. Se o preço médio fosse de 15 francos, não haveria lugar para nenhuma distribuição, nem igualitária nem qualquer outra, pois não haveria renda. A renda só existe pelo fato de ser vendido por 20 francos o hectolitro de trigo que custa ao produtor 10 francos. O sr. Proudhon supõe a igualdade do preço de mercado para custos de produção desiguais, para chegar à repartição igualitária do produto da desigualdade.

Compreendemos que economistas como Mill, Cherbulliez, Hilditsch e outros tenham pedido que a renda seja atribuída ao Estado a fim de servir para a liquidação dos impostos. Vemos aí a franca expressão de ódio que o capitalista industrial vota ao proprietário de terras, que lhe parece uma inutilidade, uma superfetação no conjunto da produção burguesa.

Mas fazer pagar o hectolitro de trigo a 20 francos, para em seguida fazer uma distribuição geral dos 10 francos que se tirou a mais dos consumidores, isso bastará para que o gênio social prossiga melancolicamente em seu caminho de zigue-zagues, e vá dar com a cabeça num ângulo qualquer.

A renda torna-se, através da pena do sr. Proudhon,

"um imenso cadastro, executado contraditoriamente pelos proprietários e os rendeiros... um interesse superior, e cujo resultado definitivo deve tornar igual a posse da terra entre os exploradores do solo e os industriais".

Para que um cadastro qualquer, constituído pela renda, tenha um valor prático, é preciso que se permaneça nas condições da sociedade atual.

Ora, demonstramos que o arrendamento pago pelo rendeiro ao proprietário exprime a renda com alguma exatidão apenas nos países mais avançados na indústria e no comércio. E mesmo este arrendamento encerra frequentemente os juros proporcionados ao proprietário pelo capital incorporado à terra. A situação dos terrenos, a vizinhança das cidades, e muitas outras circunstâncias, influem sobre o arrendamento e modificam a renda. Estas razões peremptórias bastariam para provar a inexatidão de um cadastro baseado sobre a renda.

De outro lado, a renda não poderia ser índice constante do grau de fertilidade de um terreno, pois que a aplicação moderna da química altera a cada instante a natureza da terra, e os conhecimentos geológicos começam em nossos dias a anular toda a antiga estimação da fertilidade relativa; foi apenas há cerca de vinte anos que se amanharam vastas terras situadas nos condados orientais da Inglaterra, terras que permaneciam sem cultivar por não terem sido bem apreciadas as relações entre o húmus e a composição da camada inferior.

Assim, a história, longe de apresentar, com a renda, um cadastro já formado, não faz senão alterar, anular inteiramente os cadastros já formados.

Afinal, a fertilidade não é uma qualidade tão natural como se poderia supor: ela está ligada intimamente às relações sociais atuais. Uma terra pode ser muito fértil para a cultura do trigo, e no entanto o preço do mercado poderá levar o cultivador a transformá-la em pastagem artificial e a torná-la assim infértil.

O sr. Proudhon não improvisou o seu cadastro, que não vale nem mesmo o cadastro comum, senão para dar um corpo ao fim providencialmente igualitário da renda.

"A renda, continua o sr. Proudhon, é o juro proporcionado por um capital que não se extingue jamais, ou seja, a terra. E como o capital não é susceptível de qualquer aumento quanto à matéria, mas somente de uma melhoria indefinida quanto ao uso, acontece que, enquanto que o juro e o lucro do empréstimo (mutuum) tende a diminuir continuamente em consequência da abundância dos capitais, a renda tende a aumentar sempre pelo aperfeiçoamento da indústria, do qual resulta o melhoramento do uso da terra... Tal é, em sua essência, a renda" (Tomo II, pág. 265).

Desta vez, o sr. Proudhon vê na renda todos os sintomas do juro, com a diferença de que ela provém de um capital de natureza específica. Este capital, é a terra, capital eterno, "que não é susceptível de nenhum aumento quanto à matéria, mas somente de uma melhoria indefinida quanto ao uso". Na marcha progressiva da civilização, os juros apresentam uma tendência contínua para a baixa, enquanto que a renda tende continuamente para a alta. Os juros baixam por motivo da abundância dos capitais; a renda sobe com os aperfeiçoamentos conseguidos pela indústria, os quais têm como consequência uma utilização sempre mais inteligente da terra.

Tal é, em sua essência, a opinião do sr. Proudhon.

Examinemos em primeiro lugar até que ponto é acertado dizer que a renda é o juro do capital.

Para o proprietário territorial, a renda representa o juro do capital que lhe custou a terra, ou que obteria se a vendesse. Mas comprando ou vendendo a terra, ele não compra ou vende senão a renda. O preço que ele paga para ficar com a renda é regulado pela taxa do juro em geral e nada tem a ver com a natureza mesma da renda. O juro dos capitais aplicados em terras é, em geral, inferior ao juro dos capitais aplicados nas manufaturas ou no comércio. Assim, para aquele que não faz distinção entre o juro que a terra representa para o proprietário e a própria renda, o juro da terra capital diminui ainda mais que o juro dos outros capitais. Mas não se trata do preço de compra ou de venda da renda, do valor venal da renda, da renda capitalizada, trata-se da própria renda.

O arrendamento pode implicar ainda, além da renda propriamente dita, o juro do capital incorporado à terra. O proprietário recebe então esta parte do arrendamento não como proprietário, mas como capitalista; não é, entretanto, da renda propriamente dita, de que temos de falar.

A terra, enquanto não é explorada como meio de produção, não é um capital. A terra capital pode ser aumentada do mesmo modo como todos os outros instrumentos de produção. Não se acrescenta nada à matéria, para usar a linguagem do sr. Proudhon, mas multiplicam-se as terras que servem de instrumento de produção. Basta aplicar a terras, já transformadas em meio de produção, novas somas de capital, para aumentar a terra capital sem nada acrescentar à terra matéria, ou seja, à extensão da terra. A terra matéria do sr. Proudhon é a terra como limite. Quanto à eternidade que ele atribui à terra, admitimos que ela tenha esta virtude como matéria. A terra capital não é mais eterna do que qualquer outro capital.

O ouro e a prata, que dão juros, são tão duráveis e eternos quanto a terra. Se o preço do ouro e da prata baixa, enquanto que o da terra sobe, isso não resulta certamente de sua natureza mais ou menos eterna.

A terra capital é um capital fixo, mas o capital fixo gasta-se do mesmo modo como os capitais circulantes. Os melhoramentos feitos na terra têm necessidade de renovação e conservação ; eles não duram senão algum tempo e têm isso de comum com todos os outros melhoramentos utilizados para transformar a matéria em meio de produção. Se a terra capital fosse eterna, certos terrenos apresentariam um aspecto muito diferente do que têm hoje, e veríamos a campagna romana, a Sicília, a Palestina, em todo o esplendor de sua antiga prosperidade.

Há mesmo casos em que a terra capital poderia desaparecer, permanecendo incorporados ao solo os melhoramentos introduzidos.

Em primeiro lugar, isso acontece todas as vezes que a renda propriamente dita se anula pela concorrência de novos terrenos mais férteis; em segundo lugar, os melhoramentos que poderiam ter um valor numa certa época deixam de o ter a partir do momento em que se tornaram universais pelo desenvolvimento da agronomia.

O representante da terra capital não é o proprietário territorial, mas o rendeiro. O rendimento que a terra proporciona como capital é o juro e o lucro industrial e não a renda, Há terras que produzem este juro e este lucro e que não produzem renda.

Em resumo, a terra, enquanto dá juro, é a terra capital, e, como terra capital, ela não dá uma renda, não constitui a propriedade territorial. A renda resulta das relações sociais nas quais se faz a exploração. Ela não poderia resultar da natureza mais ou menos árdua, mais ou menos durável da terra. A renda provém da sociedade e não do solo.

Segundo o sr. Proudhon, "a melhoria no uso da terra" — consequência "do aperfeiçoamento da indústria" — é causa da alta contínua da renda. Esta melhoria faz, ao contrário, com que ela baixe periodicamente.

Em que consistem, em geral, todos os melhoramentos, seja na agricultura, seja na manufatura? Consistem em produzir mais com o mesmo trabalho, em produzir tanto, ou mesmo mais com menos trabalho. Graças a estes melhoramentos, o rendeiro fica dispensado de empregar uma maior quantidade de trabalho para um produto proporcionalmente menor. Ele não tem necessidade de recorrer a terrenos inferiores, e as parcelas do capital aplicadas sucessivamente no mesmo terreno permanecem igualmente produtivas. Logo, estes melhoramentos, longe de fazerem subir continuamente a renda, como diz o sr. Proudhon, são, ao contrário, outros tantos obstáculos que se opõem à sua alta.

Os proprietários ingleses do século XVII sentiam tão bem esta verdade, que se opuseram ao progresso da agricultura, receando que diminuíssem seus rendimentos. (Ver Petty, economista inglês do tempo de Carlos II).

As greves e as coalizões dos operários

"Todo movimento de alta nos salários não pode ter outro efeito senão o de uma alta do trigo, do vinho, etc., isto é, o efeito de uma escassez. Pois, que é o salário? É o preço de custo do trigo, etc.; é o preço integral de todas as cousas. Vamos ainda mais longe: o salário é a proporcionalidade dos elementos que compõem a riqueza e que são consumidos reprodutivamente todos os dias pela massa dos trabalhadores. Ora, dobrar os salários... é atribuir a cada um dos produtores uma parte maior que seu produto, o que é contraditório; e se a alta não atingir senão um pequeno número de indústrias, provocar-se-á uma perturbação geral nas trocas, numa palavra, uma escassez... É impossível, eu o declaro, que as greves seguidas de aumento de salários não levem a um encarecimento geral: isso é tão certo como dois e dois são quatro" (Proudhon, t. I, págs. 110 e 111).

Negamos todas estas asserções, menos que dois e dois são quatro.

Em primeiro lugar, não há encarecimento geral. Se o preço de todas as cousas dobrar ao mesmo tempo que o salário, não haverá alteração nos preços, haverá mudanças apenas nos termos.

Em segundo lugar, uma alta geral dos salários não pode jamais produzir um encarecimento mais ou menos geral das mercadorias. Efetivamente, se todas as indústrias empregassem o mesmo número de operários em relação com o capital fixo ou com os instrumentos de que elas se servem, uma alta geral dos salários produziria uma baixa geral dos lucros e o preço corrente das mercadorias não sofreria nenhuma alteração.

Mas como a relação entre o trabalho manual e o capital fixo não é a mesma nas diferentes indústrias, todas as indústrias que relativamente empregam uma maior massa de capital fixo e menos operários, serão forçadas, mais cedo ou mais tarde, a baixar o preço de suas mercadorias. No caso contrário, no qual o preço de suas mercadorias não baixa, seu lucro se elevará acima da taxa comum dos lucros. As máquinas não são trabalhadores assalariados. Assim, a alta geral dos salários atingirá menos as indústrias que empregam, em comparação com as outras, mais máquinas que operários. Mas a concorrência tendendo sempre a nivelar a taxa dos lucros, aqueles que se elevam acima da taxa ordinária, não poderiam ser senão passageiros. Assim, à parte algumas oscilações, uma alta geral dos salários trará em vez de encarecimento geral, como diz o sr. Proudhon, uma baixa parcial, isto é, uma baixa no preço corrente das mercadorias que se fabricam principalmente com o auxílio das máquinas.

A alta e a baixa do lucro e dos salários não exprimem senão a proporção na qual os capitalistas e os trabalhadores participam do produto de um dia de trabalho, sem influírem, na maior parte dos casos, sobre o preço do produto. Mas que "as greves seguidas de aumento de salários levem a um encarecimento geral, e mesmo a uma escassez" — são dessas ideias que não podem nascer senão no cérebro de um poeta incompreendido.

Na Inglaterra, as greves têm dado regularmente lugar à invenção e ao emprego de algumas máquinas novas. As máquinas eram, pode-se dizer, a arma que os capitalistas empregavam para abater o trabalho especializado em revolta. A self-acting mule [máquina de fiar automática], a maior invenção da indústria moderna, pôs fora de combate os fiandeiros revoltados. Mesmo que as coalizões e as greves não tivessem outro efeito senão o de fazer reagirem contra elas as consequências do gênio mecânico, elas teriam de qualquer modo exercido uma influência imensa sobre o desenvolvimento da indústria.

"Leio, continua o sr. Proudhon, num artigo publicado pelo sr. Léon Faucher... setembro de 1845, que depois de algum tempo os operários ingleses perderam o hábito das coalizões, o que é, sem dúvida, um progresso, pelo qual não devemos senão felicitá-los: mas acho que esta melhoria no moral dos operários decorre sobretudo de sua instrução em matéria econômica. Não é dos manufatureiros, exclamava no "meeting" de Bolton, um operário fiandeiro, que os salários dependem. Nas épocas de depressão os patrões não são, por assim dizer, senão o chicote de que se arma a necessidade, e queiram eles ou não, é preciso que o utilizem. O princípio regulador é a relação entre a oferta e a procura; e os patrões não têm este poder... Até que enfim, exclama o sr. Proudhon, eis os operários bem vestidos, operários modelos, etc., etc., etc. Esta miséria faltava à Inglaterra: ela não atravessará o estreito" (Proudhon, t. I, págs. 261 e 262).

De todas as cidades da Inglaterra, Bolton é aquela onde o radicalismo está mais desenvolvido. Os operários de Bolton, segundo se admite, não podiam ser revolucionários. Quando da grande agitação que se verificou na Inglaterra visando a abolição das leis relativas aos cereais, os fabricantes ingleses não acreditaram poder fazer frente aos proprietários territoriais sem pôr à frente os operários. Mas como os interesses dos operários não se opunham menos aos dos fabricantes que os interesses destes aos dos proprietários territoriais, era natural que os fabricantes levassem desvantagem nos comícios dos operários. Que fizeram os fabricantes? Para salvar as aparências, eles organizaram "meetings" compostos em grande parte de contramestres, de pequeno número de operários que lhes eram devotados e dos amigos do comércio propriamente ditos. Quando, em seguida, os verdadeiros operários tentaram, como em Bolton e em Manchester, participar do debate para protestarem contra estas demonstrações factícias, a entrada lhes foi proibida, com a alegação de que se tratava de um ticket-meeting. Entendem-se por esta palavra os comícios dos quais só podem participar pessoas munidas de ingressos. Entretanto, os cartazes, afixados nas paredes, haviam anunciado comícios públicos. Todas as vezes que havia reuniões como essas os jornais dos fabricantes apresentavam um noticiário vistoso e pormenorizado sobre os discursos pronunciados. Não é preciso dizer que eram os contramestres que pronunciavam esses discursos. Os jornais de Londres os reproduziam literalmente. O sr. Proudhon teve a infelicidade de tomar os contramestres por operários comuns e lhes dá a ordem de não atravessarem o estreito.

Se em 1844 e em 1845 as greves davam menos na vista do que antes, é porque 1844 e 1845 eram os dois primeiros anos de prosperidade para a indústria inglesa depois de 1837. Contudo, nenhuma das trade-unions havia sido dissolvida.

Ouçamos agora os contramestres de Bolton. Segundo eles, os fabricantes não são os donos do salário, porque eles não são os donos do preço do produto, porque não são os donos do mercado mundial. Por este motivo davam a entender que não era preciso fazer coalizões para tirar dos patrões um aumento de salário. O sr. Proudhon, ao contrário, proíbe-lhes as coalizões, receando que uma coalizão seja seguida por uma alta de salários, que ocasionaria uma carestia geral. Não temos necessidade de dizer que apenas num ponto há entendimento cordial entre os contramestres e o sr. Proudhon: é que uma alta de salários equivale a uma alta nos preços dos produtos.

Mas o receio de uma carestia será a verdadeira causa do rancor do sr. Proudhon? Não. Ele, de boa fé, não perdoa aos contramestres de Bolton o não determinarem o valor pela oferta e pela procura e o fato de não fazerem muito caso do valor constituído, do valor que passou ao estado de constituição, da constituição do valor, inclusive a permutabilidade permanente e todas as outras proporcionalidades de relações e relações de proporcionalidade, apoiadas pela Providência.

"A greve dos operários é ilegal, e não é apenas o Código Penal que diz isso, é o sistema econômico, é a necessidade da ordem estabelecida. Que cada operário disponha livremente como indivíduo de sua pessoa e de seus braços, isso pode ser tolerado: mas que os operários tentem por coalizões exercer violência contra o monopólio, é o que a sociedade não pode tolerar" (Tomo I, págs. 235 e 237).

O sr. Proudhon pretende fazer passar um artigo do Código Penal por um resultado necessário e geral das relações da produção burguesa.

Na Inglaterra as coalizões são autorizadas por um ato do Parlamento e foi o sistema econômico que forçou o Parlamento a dar esta autorização por meio da lei. Em 1825, quando, com o ministro Huskisson, o Parlamento foi levado a modificar a legislação, para pô-la ainda mais de acordo com um estado de cousas resultante da livre concorrência, ele teve necessariamente de abolir todas as leis que proibiam as coalizões dos operários. Quanto mais se desenvolvem a indústria moderna e a concorrência, mais elementos existem que provocam e favorecem as coalizões, e desde que as coalizões se tornam um fato econômico, adquirindo cada dia maior consistência, elas não podem tardar a se tornar um fato legal.

Assim, o artigo do Código Penal prova quando muito que a indústria moderna e a concorrência não estavam ainda bem desenvolvidas no tempo da Assembleia Constituinte e do Império.

Os economistas e os socialistas estão de acordo num único ponto: a condenação das coalizões. Todavia, eles motivam de modo diferente seu ato de condenação.

Os economistas dizem aos operários: não entreis em coalizão. Entrando em coalizão, entravareis a marcha regular da indústria, impedireis os fabricantes de satisfazerem os pedidos, perturbareis o comércio e precipitareis a invasão das máquinas que, tornando o vosso trabalho inútil em parte, vos forçam a aceitar um salário ainda mais baixo. Aliás, seria agir em vão, pois vosso salário será sempre determinado pela relação entre a mão-de-obra oferecida e a mão-de-obra procurada e é um esforço tão ridículo quão perigoso o revoltar-vos contra as leis eternas da economia política.

Os socialistas dizem aos operários: não entreis em coalizão porque, afinal, o que é que ganhareis? Uma elevação de salários? Os economistas provarão até à evidência que os poucos níqueis que poderíeis ganhar, em caso de êxito, por alguns momentos, seriam seguidos de uma baixa permanente. Hábeis calculadores poderão vos provar que serão precisos anos para recuperardes, considerado apenas o aumento do salário, as despesas que tivestes de fazer para organizar e manter as coalizões.

E, na nossa qualidade de socialista, nós diremos que, pondo de lado esta questão de dinheiro, antes e depois não sereis menos operários e os patrões serão sempre os patrões. Assim, nada de coalizões, nada de política, pois promover coalizões não é fazer política?

Os economistas querem que os operários permaneçam na sociedade tal como ela se formou e tal como eles a consignaram e sancionaram nos seus manuais.

Os socialistas querem que os operários deixem onde ela se encontra, a sociedade velha, para poderem melhor entrar na sociedade nova que eles lhes preparam com tanta previdência.

Apesar de uns e de outros, apesar dos manuais e das utopias, as coalizões não cessaram um momento de se manifestar e de se ampliar com o desenvolvimento e o crescimento da indústria moderna. E isso se verifica a tal ponto nos nossos dias, que o grau atingido pelas coalizões num país assinala nitidamente o grau que ele ocupa na hierarquia do mercado mundial. A Inglaterra, onde a indústria atingiu o mais alto grau de desenvolvimento, apresenta as coalizões mais vastas e melhor organizadas.

Na Inglaterra, não se ficou nas coalizões parciais, que não tinham outro escopo senão uma greve passageira, e que desapareciam com ela. Formaram-se coalizões permanentes, trade-unions que constituem um baluarte para os operários nas suas lutas com os industriais. E presentemente todas estas trade-unions locais encontram um ponto de união na National Association of United Trades, cujo comitê central fica em Londres, e que já conta 80.000 membros. A formação destas greves, coalizões, trade-unions caminhou simultaneamente com as lutas políticas dos operários que constituem agora um grande partido político com a denominação de Cartista.

É sob a forma de coalizões que sempre se verificam as primeiras tentativas dos trabalhadores no sentido de se associarem.

A grande indústria aglomera num só lugar uma multidão de pessoas desconhecidas umas das outras. A concorrência divide seus interesses. Mas a manutenção do salário, este interesse comum que têm contra o patrão, reúne-as num mesmo pensamento de resistência — coalizão. Assim, a coalizão tem sempre um duplo objetivo, o de fazer cessar a concorrência entre os operários, para poderem fazer uma concorrência geral ao capitalista. Se o primeiro objetivo de resistência não foi senão a manutenção dos salários, à medida que os capitalistas por sua vez se reúnem num mesmo pensamento de repressão, as coalizões, a princípio isoladas, formam-se em grupos, e diante do capital sempre unido, a manutenção da associação torna- se mais necessária para os operários do que a do salário. Isto é de tal modo verdadeiro, que os economistas ingleses se mostram muito espantados de ver os operários sacrificarem uma boa parte do salário em favor das associações que, aos olhos destes economistas, não foram criadas senão para a defesa do salário. Nesta luta — verdadeira guerra civil — reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários para uma batalha futura. Uma vez chegada a esse ponto, a associação adquire um caráter político.

As condições econômicas tinham a princípio transformado a massa da população do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, esta massa já é uma classe diante do capital, mas não o é ainda em si mesma. Na luta, da qual assinalamos apenas algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe em si mesma. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe.

Mas a luta de classe com classe é uma luta política.

Na burguesia, temos duas fases a distinguir: aquela durante a qual ela se constituiu em classe sob o regime da feudalidade e da monarquia absoluta, e aquela em que, já constituída em classe, derrubou a feudalidade e a monarquia, para fazer da sociedade uma sociedade burguesa. A primeira destas fases foi a mais longa e nela foram necessários os maiores esforços. Ela também havia começado por coalizões parciais contra os senhores feudais.

Muitas pesquisas têm sido feitas para se poder descrever as diferentes fases históricas que a burguesia percorreu, desde a comuna até sua constituição como classe.

Mas quando se trata de se apresentar um relato exato das greves, das coalizões e das outras formas nas quais os proletários realizam diante de nossos olhos a sua organização como classe, vemos que certas pessoas são tomadas de um temor real, ostentando outras um desdém transcendental.

Uma classe oprimida é a condição vital de toda sociedade fundada no antagonismo das classes. A libertação da classe oprimida implica, pois necessariamente, a criação de uma sociedade nova. Para que a classe oprimida possa se libertar, é preciso que as forças produtivas já adquiridas e as relações sociais existentes não possam mais existir lado a lado. De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária. A organização dos elementos revolucionários como classe supõe a existência de todas as forças produtivas que podiam se engendrar no seio da velha sociedade.

Quererá isto dizer que depois da queda da antiga sociedade haverá uma nova dominação de classe, resumindo-se num novo poder político? Não.

A condição de libertação da classe trabalhadora é a abolição de todas as classes, do mesmo modo como a condição de libertação do Terceiro-Estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens.

A classe trabalhadora substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito, pois que o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil.

No período de espera, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de classe contra classe, luta que, levada à sua mais alta expressão, é uma revolução total. Aliás, devemos nos admirar de que uma sociedade, fundada na oposição das cousas, chegue à contradição brutal, a um choque corpo-a-corpo como última solução?

Não digais que o movimento social exclui o movimento político. Não haverá jamais movimento político que não seja social ao mesmo tempo.

Não será senão numa ordem de cousas na qual não haja mais classes e antagonismo de classes, que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas. Até lá, nas vésperas de cada remodelação geral da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre:

"O combate ou a morte: a luta sanguinária ou o nada. É assim que inelutavelmente se apresenta a questão. George Sand"

Notas

  1. Fora da realidade (literalmente, "nos países ocupados pelos infiéis": diz-se do bispo católico, cujo título é puramente honorífico).