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A vanguarda marxista do povo negro nos Estados Unidos

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A vanguarda marxista do povo negro nos Estados Unidos
Publicado 1ª vez2020
FonteParte do prefácio do livro Raça, classe e revolução

Aos olhos dos povos de todo o mundo, a história da luta de classes e das vanguardas radicais dos Estados Unidos está soterrada por muitas camadas de fantasia hollywoodiana. O que vemos, aqui da outra ponta do porrete,[1] é apenas a violência chauvinista dos exércitos estadunidenses no estrangeiro – e nos surpreendemos quando vemos que essa mesma violência também existe dentro do país, mirando sempre os povos pobres, no geral, e os não brancos em especial. E que ela produz, incansavelmente, uma resposta radical por parte das massas.

Boa parte do espanto que o Partido dos Panteras Negras – uma organização armada de militantes negros com ideias anticapitalistas – provoca internacionalmente tem raízes no desconhecimento da história das lutas operárias e lutas do povo negro nos Estados Unidos. Não poderemos, em umas poucas páginas, esmiuçar essa vasta história – em um país de proporções continentais e acentuada diversidade regional –, mas tentaremos oferecer um panorama sintético, apoiando-nos de relance sobre as trajetórias de algumas figuras e organizações.

A massa explorada e oprimida do povo negro estadunidense esteve sob o olhar do movimento comunista já desde seu início. Ainda em 1847, referindo-se à “escravidão dos negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte”, Karl Marx já demonstrava compreender a centralidade da exploração dos negros escravizados na acumulação capitalista, não só em suas épocas originárias, mas ainda nos tempos do revolucionário alemão:

A escravidão direta é o eixo da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito, etc. Sem a escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. A escravidão valorizou as colônias, as colônias criaram o comércio universal, o comércio que é a condição da grande indústria. Por isso, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância.[2]

A Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876, a chamada I Internacional), no geral, manteve uma posição crítica ao colonialismo e, de maneira mais indireta, ao racismo. Durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, a Internacional tomou uma firme posição em defesa da União, contra o escravagismo do Sul confederado. Em sua carta ao presidente Lincoln, Marx frisa:

Enquanto os operários, as verdadeiras potências políticas do Norte, permitiram que a escravatura corrompesse a sua própria república, enquanto perante o Negro – dominado e vendido sem o seu consentimento – se gabaram da elevada prerrogativa do trabalhador de pele branca de se vender a si próprio e de escolher o seu próprio amo, foram incapazes de atingir a verdadeira liberdade do trabalho ou de apoiar os seus irmãos europeus na sua luta pela emancipação; mas esta barreira ao progresso foi varrida pelo mar vermelho da guerra civil. Os operários da Europa sentem-se seguros de que, assim como a Guerra da Independência Americana iniciou uma nova era de ascendência para a classe média, também a Guerra Americana Contra a Escravatura o fará para as classes operárias. Consideram uma garantia da época que está para vir que tenha caído em sorte a Abraham Lincoln, filho honesto da classe operária, guiar o seu país na luta incomparável pela salvação de uma raça agrilhoada e pela reconstrução de um mundo social.[3]

Mas, apesar do atento olhar teórico de Marx, fato é que os primeiros marxistas estadunidenses (majoritariamente emigrados alemães, entre os quais destacaram-se Joseph Weydemeyer, Hermann Schlüter e Friedrich Sorge) demorariam décadas para superar as barreiras que os separavam das massas trabalhadoras daquele país, em especial suas camadas negras. O movimento operário espalhava-se pelos Estados Unidos, é verdade, mas rasgado por imensas contradições raciais, e sob o predomínio crescente das alas mais chauvinistas da aristocracia operária.[4]

Esse movimento operário em pujante expansão continha, em seu interior, uma ala esquerda – mas que, longe de ser hegemônica, nesse momento como sempre depois, era fuzilada e perseguida. Em maio de 1886, a polícia abriu fogo contra os operários no Largo de Haymarket e processou dezenas de anarquistas, entre as centenas de presos do dia (episódio que daria origem às celebrações do 1o de Maio pela Internacional Socialista). Enquanto isso, no mesmo ano em que o proletariado revolucionário era derrotado em Chicago, a Federação Americana do Trabalho (AFL)[5] era fundada por Samuel Gompers, trabalhador da indústria de cigarro que se tornaria presidente desta organização desde então até 1924, de modo quase ininterrupto – uma longevidade política muito comum no sindicalismo patronal. Gompers[6] e a direção da AFL, além de suas visões abertamente anticomunistas, também tiveram um papel de destaque na disseminação do racismo no movimento operário estadunidense.

A partir de 1890, a AFL começou a dedicar-se abertamente à organização exclusiva dos trabalhadores mais qualificados, excluindo progressivamente trabalhadores negros e mulheres no geral de suas fileiras. Além disso, a Federação aprovou a manutenção da política de segregação em sindicatos filiados a ela, especialmente nos ramos ferroviário e da construção civil.[7] Em 1901, diante da crescente imigração de trabalhadores chineses para os Estados Unidos, a AFL emitiu o panfleto intitulado Algumas razões para a exclusão dos chineses. Carne vs. Arroz. Masculinidade americana contra coolielismo[8] asiático.[9] Não bastasse a pressão política pela exclusão legal dos trabalhadores chineses do mercado de trabalho, a AFL organizou boicotes às indústrias que os contratassem. Fica evidente, portanto, a associação ideológica que esse sindicalismo reformista predominante estabelecia com o chauvinismo branco desde suas origens – o que ajudaria a explicar, também, a posterior associação do sindicalismo patronal à máfia italiana, especialmente nas categorias ligadas ao setor de transporte, nas quais os capangas desta ajudavam a quebrar piquetes de greves radicais e a calar sindicalistas dissidentes.

Uma primeira explosão de repúdio a esses métodos sindicais se cristalizaria já em junho de 1905, com a fundação da IWW (Trabalhadores Industriais do Mundo)[10] naquela mesma Chicago operária e revoltosa. Buscando unificar o proletariado anticapitalista e criticando a exclusão sindical dos trabalhadores menos qualificados, a convenção inaugural da IWW foi composta por figuras como Eugene V. Debs (ícone dos apoiadores contemporâneos do social-reformista Bernie Sanders), James Connolly (o revolucionário irlandês), Daniel de Leon (marxista estadunidense)[11] e Lucy Parsons (operária negra anarcocomunista e cônjuge de Albert Parsons, um dos mártires de Haymarket).

Em paralelo a essas lutas no interior do movimento operário, do ponto de vista da produção intelectual, atribui-se ao jornalista negro Timothy Thomas Fortune (1856-1928) uma das primeiras expressões da aproximação de um intelectual negro com o marxismo. Em seu livro de 1884,[12] embora não cite Marx, Fortune critica as relações de produção capitalistas com um vocabulário que seus intérpretes dizem estar bastante influenciado pelo discurso do movimento operário socialista de Nova York.[13]

Mas apenas anos mais tarde, com William Edward Burghardt “W.E.B.” Du Bois (1868-1963), o marxismo seria expressamente manejado pela vanguarda intelectual negra estadunidense a fim de responder a seus dilemas. Du Bois foi um membro do pioneiro Movimento Niágara, precursor da famosa Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP),[14] cujo Conselho Du Bois presidiu desde o início por muitos anos. Fundada em 12 de fevereiro de 1909, a NAACP combatia em duas frentes: na frente do trabalho educativo do povo negro e na frente judicial, abrindo diversos processos contra as chamadas Leis de Jim Crow, que privavam os negros de direitos civis. A NAACP seria considerada uma das maiores organizações de defesa dos direitos civis em todo o mundo, atingindo meio milhão de sócios em 1954. No ano seguinte, Rosa Parks, uma costureira que participava como secretária na NAACP, seria presa por recusar-se a obedecer à ordem de segregação racial em um ônibus na cidade de Montgomery, Alabama, e cuja prisão motivaria o movimento que seria denominado boicote aos ônibus de Montgomery – as primeiras fagulhas de uma ampla onda de mobilizações do povo negro estadunidense que culminaria, por fim, na obtenção de plenos direitos civis formais.

Ao longo da trajetória da NAACP, Du Bois figurou como sua ala esquerda. Em 1911, já se aproximava do Partido Socialista da América. Em 1926, após visitar a União Soviética, retornava aos Estados Unidos afirmando que o socialismo parecia oferecer um rumo para a igualdade racial.[15] Du Bois escreveu uma série de artigos em defesa do marxismo como ciência. Além disso, crítico das igrejas negras – que, segundo Du Bois, embotavam a sensibilidade do povo negro, tornando-o passivo ao racismo –, simpatizavam também com o ateísmo do materialismo marxista.[16]

Eu não era e não sou um comunista. [...] Por outro lado, eu acreditava e ainda acredito que Karl Marx foi um dos maiores homens dos tempos modernos e que agarrou com firmeza nossas dificuldades quando disse que as bases econômicas, o modo pelo qual os homens ganham sua vida, é o fator determinante no desenvolvimento da civilização, na literatura, na religião e nos padrões básicos da cultura.[17]

Du Bois publicou mais de vinte livros ao longo de sua vida, entre os quais está o mais famoso, de 1935, Black Reconstruction in America,[18] ainda inédito em português. Nessa brilhante obra, Du Bois combate mitos racistas da época que marcavam o balanço historiográfico da Guerra Civil, tentando oferecer uma análise marxista abrangente. Uma das contribuições pioneiras do autor consiste em destacar a importância da “greve geral dos escravos” do Sul do país, facilitando a vitória militar do Norte na Guerra Civil. Além disso, Du Bois busca pela primeira vez oferecer uma explicação teórica materialista para o chauvinismo branco do qual padece o sindicalismo estadunidense. Segundo Du Bois, o chauvinismo branco consiste em um “salário psicológico” oferecido ao proletariado branco como forma de “mitigar” sua exploração por meio de uma divisão de ordens de status no interior da própria classe trabalhadora assalariada. As reflexões de Du Bois, aprofundando as considerações de Marx na já supracitada carta, serviriam, mais tarde, como ponto de partida e diálogo para pensadores como o revolucionário martinicano Franz Fanon.[19]

A partir de 1948, com o início das perseguições anticomunistas que resultariam no macarthismo, Du Bois é afastado da presidência da NAACP, uma vez que se recusava a esconder suas simpatias pelos países socialistas e confraternizava abertamente com personalidades autodeclaradas comunistas. Investigado pelo FBI ao longo dos anos 1950 por supostas “atividades antiamericanas”, em decorrência de seu envolvimento nos protestos contra a Guerra da Coreia e contra o militarismo imperialista no geral, Du Bois guina cada vez mais à esquerda, passando a defender abertamente o comunismo. Visita Mao Tsé-Tung na China, em 1959, e, em 1961, aos 93 anos, filia-se nos Estados Unidos ao Partido Comunista. Viveu seus últimos dias de vida em Gana, a convite do governo revolucionário de Kwame Nkrumah.[20]

Mas, por mais à esquerda que fosse a posição ocupada por Du Bois na NAACP, sua trajetória nos ajuda a compreender os limites centristas desta instituição, que muito cedo capitularia ao anticomunismo. Não é de espantar, portanto, que a militância radical do povo negro sempre tenha passado por fora da NAACP. Assim sendo, nos anos seguintes à fundação desta, uma grande influência dos emigrados caribenhos radicalizados (à direita e à esquerda) seria perceptível no nascente movimento negro estadunidense. Em 15 de julho de 1914, na Jamaica, Marcus Garvey fundaria a Associação Universal para o Progresso Negro (Unia),[21] sob o mote: “Um deus! Um objetivo! Um destino!.” Sua influência reacionária não tardaria a se fazer sentir nos Estados Unidos.[22] Mas, à esquerda, podemos nos lembrar de figuras como o caribenho Cyril Valentine Briggs (1888-1966), emigrado para os Estados Unidos em 1905 que fundaria, em 1917, a Irmandade Sangue Africano (ABB), uma associação de militantes negros, especialmente jamaicanos e outros emigrados, de orientação socialista.[23]

A ABB, inicialmente ligada ao Partido Socialista Americano, muito cedo romperia com este em direção ao Partido Comunista dos Estados Unidos (no qual Briggs ingressa em 1921 e, em 1929, já ocupa posição no Comitê Central). Aqui também vale aquilo que já dissemos em outra oportunidade: conforme avançava a cisão internacional do movimento socialista, cada vez mais a ala comunista, representada pela III Internacional, representava uma alternativa antirracista e anticolonial para os socialistas insatisfeitos com o chauvinismo e o “economicismo imperialista” da II Internacional.[24]

Por meio dos jornais da ABB, Cyril Briggs estabeleceria ardentes polêmicas com Marcus Garvey – em especial quando, em julho de 1921, Garvey reuniu-se com Kleagle Clarke, dirigente da Klu Klux Klan. Em resposta, Garvey processou Briggs por mais de uma vez, contando com o apoio dos tribunais burgueses contra o revolucionário comunista.[25]

O trabalho político de Briggs à frente da ABB cumpriria um papel fundamental para engrossar as fileiras negras do movimento comunista. Harry Haywood (1898-1985) – cujo irmão, Otto Haywood, ingressara no Partido Comunista dos Estados Unidos já em 1921 – é um exemplo de comunista negro recrutado a partir do trabalho de massas da ABB e da Liga da Juventude Comunista. Haywood passaria a fazer parte do Comitê Central do Partido de 1927 até 1938, após anos de estudos marxistas em Moscou. A partir de 1929, dirigiu o trabalho de agitação, propaganda e organização dos comunistas frente às massas trabalhadoras negras, em especial no Sul do país, no chamado Cinturão Negro, trabalhando especialmente na fundação de sindicatos inter-raciais, organizando os proletários agrícolas negros e combatendo os linchamentos, frequentes em um Sul cada vez mais infestado pela Klu Klux Klan.

Seu livro, Negro Liberation,[26] publicado em 1948, foi o primeiro grande estudo da questão racial nos Estados Unidos elaborado sob o ponto de vista da Internacional Comunista por um revolucionário negro. Como Haywood declararia mais tarde, em sua autobiografia Black Bolshevik,[27] seu trabalho sobre este livro teria sido subsidiado pelo cantor Paul Robeson com uma ajuda de cem dólares mensais.

Por sua vez, Paul Robeson (1898 – 1976) foi, provavelmente, o mais notório comunista afro-americano dos anos 1940 – não só graças a sua projeção como artista, mas também por seu depoimento perante o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso dos Estados Unidos, durante as perseguições do macarthismo. O cantor barítono, que fez parte da chamada Renascença do Harlem nos anos 1920, radicalizou-se por influência do movimento anti-imperialista. Convidado pelo cineasta Sergei Eisenstein para visitar a União Soviética em dezembro de 1934, Robeson logo gravaria uma versão em inglês do hino deste país, em sua homenagem.

Voltando aos Estados Unidos em 1936, encenaria o papel de Toussaint L’Ouverture na peça de C. L. R. James sobre a Revolução Haitiana. Em 1938, viajaria para a Espanha em plena Guerra Civil a fim de demonstrar seu apoio às tropas republicanas, cantando em hospitais e no front para ajudar a elevar o moral dos soldados.

Como Robeson afirmaria em seu corajoso depoimento ao Comitê de Atividades Antiamericanas:

Senhores, em primeiro lugar: onde quer que eu tenha estado no mundo, os primeiros a morrerem na luta contra o fascismo foram os comunistas. Coloquei muitas coroas de flores sobre túmulos comunistas. [...] Você quer calar todo negro que tenha coragem de se levantar pelos direitos de seu povo, pelos direitos dos trabalhadores – e eu estive em muitos piquetes com os metalúrgicos também. [...] Quando fui pela primeira vez à Rússia, em 1934... Na Rússia, eu me senti pela primeira vez como um ser humano completo. Nenhum preconceito de cor como no Mississipi. Nenhum preconceito de cor como em Washington. Foi a primeira vez que me senti um ser humano, em que não sentia a pressão da cor, como sinto nessa comissão hoje.

É bastante visível, portanto, o impacto que as visitas à União Soviética causavam sobre a percepção da vanguarda intelectual negra estadunidense – sendo aquele um país sem segregação racial institucional e que, além disso, criminalizara o racismo já em 1936, como já observamos.

Mas não só de viagens a Moscou se fez a influência das ideias marxistas sobre o povo negro estadunidense. Um exemplo da atuação destacada dos comunistas na luta em defesa do povo negro pode ser visto no caso dos Garotos Scottsboro, nove garotos negros entre 13 e 19 anos acusados no Alabama de estuprar duas mulheres brancas em um trem. Condenados à morte por um júri racista, em um julgamento relâmpago em 1931, os garotos contaram com a solidariedade irrestrita do Partido Comunista dos Estados Unidos, graças ao qual o caso chegou à Suprema Corte do país, inocentando quatro acusados e convertendo a condenação dos demais para uma pena de prisão. Em um só golpe, o Partido Comunista punha em evidência o racismo do sistema judicial burguês e combatia a bárbara pena de morte, ainda vigente em muitos estados dos Estados Unidos.

Foi durante essa campanha, inclusive, que aderiu ao Partido Comunista a revolucionária Claudia “Jones” Vera Cumberbatch (1915-1964), jornalista nascida em Trindade e Tobago e emigrada para os Estados Unidos em 1924. Jones ingressaria na Liga da Juventude Comunista e, logo após, seria destacada para a equipe editorial do Daily Worker [Diário operário], jornal do Partido. Eleita membro do Comitê Central em 1948, Jones foi uma pioneira do feminismo negro marxista, com a publicação, em 1949, de seu artigo Um fim à negligência em relação aos problemas da mulher negra!.

Presa por quatro vezes pelo crime de ser uma imigrante envolvida em atividades políticas, Jones esteve sob risco de deportação em diversas momentos, até que, finalmente, recebeu asilo político no Reino Unido.

Esse breve rol de referências deve bastar para mostrar que o marxismo do Partido dos Panteras Negras não é, afinal, um raio em céu azul, mas o produto de uma longa trajetória de introdução e reformulação do marxismo no interior do movimento negro estadunidense, com grande contribuição, inclusive, do nascente movimento comunista do país.

Vale lembrar, também, que em 8 de março de 1964, Malcom X rompia à esquerda com a Nação do Islã, a organização do reacionário Elijah Muhammad.[28] Nessa sua cisão, Malcom se aproximava da retórica radical dos socialistas negros, denunciando a sociedade de classes e conclamando o povo negro à resistência armada aos linchamentos e à opressão que o vitimava.

Todo esse desenvolvimento do pensamento revolucionário negro convergia, então, para o interior de uma ampla onda de mobilização do povo negro, deflagrada pelo evento Rosa Parks e que culminaria com a famosa Marcha a Washington (aquela na qual Martin Luther King proclamaria o famoso discurso sobre seu sonho de igualdade racial: I have a dream), em 1963, e com a conquista dos direitos civis, em 1964.

A despeito desta vitória, os anos seguintes foram anos de uma intensa ofensiva reacionária. Em 1965, Malcom X seria assassinado – e os responsáveis, em tema controverso, supostamente teriam sido membros da Nação do Islã. Em 8 de fevereiro de 1968, a morte de três estudantes em meio às manifestações em Orangeburg, na Carolina do Sul, produziriam uma onda de indignação. Em 4 de abril do mesmo ano, o assassinato de Martin Luther King também contribuiria para deflagrar uma onda de revoltas em mais de 115 cidades, notadamente em Louisville, Baltimore e Washington.

Ao mesmo tempo que o movimento de massas conquistava a igualdade jurídica e política formal para o povo negro, lideranças destacadas eram assassinadas, e seguiam em alta os linchamentos contra negros, em especial no Sul, e a brutalidade policial nos centros urbanos. Não deveríamos nos espantar, então, que em 1966 tenha vindo à tona o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, pregando o armamento geral do povo negro e a mais obstinada luta direta contra a polícia reacionária – e que esse exemplo tenha se disseminado entre todos povos oprimidos dos Estados Unidos como um rastilho de pólvora.

Notas

  1. Referência à chamada Big Stick Policy, ou Política do Porrete Grande, denominação dada ao estilo de diplomacia usado pelo presidente Theodore Roosevelt Jr. (presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909), como corolário da Doutrina Monroe (1823), segundo a qual os Estados Unidos deveriam exercer sua política externa como forma de deter as intervenções europeias, principalmente britânicas, no continente americano. Dessa maneira o país assumiu a hegemonia dentro do continente, camuflando seu imperialismo sob o discurso de uma “América para os americanos.”
  2. Karl Marx, Miséria de Filosofia, p. 127.
  3. Idem, Obras Escolhidas, p. 282.
  4. Aristocracia operária é o termo utilizado por Lênin para designar as camadas de trabalhadores assalariados dos países imperialistas que, conseguindo obter melhoras parciais nas suas condições de vida como resultado dos superlucros de seus capitalistas nas colônias, passaram a apoiar a política imperialista de suas burguesias nacionais.
  5. Em inglês, American Federation of Labour.
  6. Gompers foi alvo de muitos ataques por parte de Lênin, que o considerava o maior chefe do oportunismo nos Estados Unidos. Sobre essa crítica, vide o Prefácio de Imperialismo, estágio superior do capitalismo (ensaio popular); ou o Capítulo VI de Esquerdismo, doença infantil do comunismo, bem como o artigo In America, de 1912 (inédito em português).
  7. Ernest Obadele-Stark, Black Unionism in the Industrial South.
  8. Em inglês, no original, coolielism. Em tradução livre: “servilismo”. A expressão data de meados do século XVII e remonta ao termo hindi qulī (क़ुली), que significa “trabalhador (diarista)”. Provavelmente é um empréstimo de uma língua turcomana (por meio do persa), possivelmente uma redução do árabe ghulam, “servo”, “criado”. Da metade para o fim do século XIX nos Estados Unidos, o termo coolie e tudo que estava associado com o “estereótipo coolie” passaram a ser usados para satirizar ou depreciar os imigrantes de origem chinesa, especialmente os operários e donos de lavanderias ou restaurantes.
  9. Philip F. Rubio, A History of Affirmative Action, 1619-2000.
  10. Em inglês, Industrial Workers of the World.
  11. De Leon é citado e elogiado por Lênin algumas vezes em sua obra. Um exemplo dessa referência pode ser visto no Capítulo 6 de Esquerdismo, doença infantil do comunismo.
  12. T. Thomas Fortune, Black and White: Land, Labor, and Politics in the South [Negro e branco: terra, trabalho e política no sul].
  13. Vide Seth Moglen, “Introduction”, em T Thomas Fortune, Black and White: Land, Labor, and Politics in the South, ou McPherson, citado por Moglen, que designa Fortune como “quase marxista”.
  14. Em inglês, National Association for the Advancement of Colored People.
  15. David Levering Lewis, W. E. B. Du Bois: Biography of a Race 1868–1919.
  16. Ibidem, p. 549.
  17. W. E. B Du Bois, Dusk of Dawn: An Essay Toward an Autobiography of a Race Concept, p. 151.
  18. Black Reconstruction in America: An Essay Toward a History of the Part Which Black Folk Played in the Attempt to Reconstruct Democracy in America, 1860–1880 [Reconstrução negra na América: um ensaio para uma história do papel desemprenhado pela gente negra na tentativa de reconstruir a democracia na América, 1860-1880].
  19. Para conhecer o pensamento de Fanon, vide Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista.
  20. Para conhecer o pensamento de Nkrumah, vide Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista.
  21. Em inglês, Universal Negro Improvement Association.
  22. Sobre o reacionarismo de Garvey, vide Cyril Briggs, A convenção negra; Ryan Miniot, The Black Left’s War on Marcus Garvey and Garveyism; Douglas Barros; Jones Manoel, Vocês querem um Hitler negro? Crítica ao Black Money; Vinicius Souza, Pan-africanismo, historicidade e disputa de narrativas.
  23. Destacamos também o nome do sociólogo Oliver Cox, nascido em Trindade e Tobago em 1901 e emigrado para os Estados Unidos em 1919, famoso por sua interpretação marxista do fascismo e por sua contribuição fundadora para a teoria do sistema-mundo.
  24. Vide Vladímir Ilitch Uliánov Lênin, A falência da Segunda Internacional; e, sobre as diferenças entre a II e a III Internacional em matéria de antirracismo, Jones Manoel; Gabriel Landi Fazzio (orgs.). Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista, p. 31-45.
  25. Nos anos 1930, Briggs seria expulso do Partido Comunista, acusado de ser divisionista. Era época de emergência do chamado browderismo, expressão da tática centrista da Frente Popular nos Estados Unidos, que apregoava adiar a luta socialista em nome da unidade democrática antifascista – e, como consequência, exigia aos povos oprimidos que moderassem sua luta, em nome de “não afastar aliados”. Briggs retornaria ao ao Partido Comunista dos Estados Unidos em 1948 após a queda de Earl Browder de sua direção. Para a crítica da tática de Frente Popular e do browderismo, vide Francisco Martins Rodrigues, Anti-Dimitrov: meio século de derrota da revolução (1935-1985).
  26. Libertação negra, em tradução livre, inédito em português.
  27. Bolchevique Negro, em tradução livre, publicada em 1978 e também inédito em português. Vale destacar que Haywood foi expulso do Partido Comunista dos Estados Unidos ao final dos anos 1950, acusado de ser “esquerdista”, conforme o Partido guinava para teorias revisionistas como resultado da hegemonia do krushevismo soviético sobre o movimento comunista internacional.
  28. Figura tão importante quanto controversa na história do movimento negro nos Estados Unidos. Liderou o grupo Nação do Islã desde 1934 até sua morte, em 1975. Malcom X, que originalmente foi seu protegido, tornou-se grande crítico das concepções sectárias e dos métodos reacionários de Elijah Muhammad, chamado “honorável” por seus seguidores. As críticas de Malcom provocaram revolta entre as bases da Nação do Islã, motivando o atentado que pôs um fim sangrento a sua trajetória da radicalização política. George Lincoln Rockwell, fundador do Partido Nazi Americano, definiu Muhammad como “o Hitler do homem negro”.